domingo, 29 de outubro de 2023

Economia social de mercado (6): Aleluia!

1. Saúde-se a defesa, pela Ministra do Trabalho, numa conferência da UGT, da participação dos trabalhadores no governo das grandes empresas, que venho defendendo há muito como devendo fazer parte do património doutrinário obrigatório de um partido social-democrata (por exemplo, AQUI, AQUIAQUI), como instrumento de democracia económica, de paz social e de eficiência empresarial.

Tendo a "cogestão" empresarial sido fortemente defendida pelo PS nos idos da Revolução e da Constituinte, há quase meio século, esse compromisso foi-se desvanecendo progressivamente nos programas e na prática política do PS como partido de Governo.

2. Embora retomando a ideia, a Ministra remete a sua instituição para a negociação coletiva e o "diálogo social", excluindo, portanto, a intervenção legislalativa (entretanto prevista no projeto de revisão constitucional do PS) -, o que não vai dar a lado nenhum, quer pela previsível oposição dos acionistas, quer pela tradição confrontacional da cultura sindical em Portugal, como assinalei AQUIAQUI

Note-se, por exemplo, que, apesar de a própria Constituição estatuir a partipação dos trabalhadores na gestão das empresas públicas, em geral (CRP, art. 89º), tal não verifica, porém, em quase nenhuma, não somente porque a lei não a prevê (em clara inconstitucionalidade por omissão), mas também porque os respetivos trabalhadores a não exigem.

Esperemos ao menos que, embora tímida, esta abertura governamental proporcione o debate político e sindical que a importância do tema justifica.

sábado, 28 de outubro de 2023

História constitucional (5): Desvendando uma falsificação histórica


1. Durante todos estes anos fui ensinando aos meus alunos de Direito Constitucional a história "canónica" da chamada Súplica constitucional de 1808, durante a ocupação napoleónica, como tendo sido uma iniciativa espontânea de um pequeno e incerto grupo de "afrancesados" (ou seja, simpatizantes da Revolução francesa), pedindo a Napoleão um rei francês e uma constituição semelhante à que ele outorgara ao ducado de Varsóvia em 1807, a qual teria sido apresentada pelo "juiz do povo" de Lisboa (o presidente dos ofícios da capital) à Junta dos Três Estados do Reino, onde, porém, fora liminarmente rejeitada. 

Em suma, tratou-se de um efémero e inconsequente episódio, de escassa relevância na história político-constitucional nacional...

2. Ora, numa investigação da minha parceria com o meu colega José Domingues, de que agora damos conta na JN / História [imagens acima], vimos defender que, ressalvando a existência da dita Súplica, tudo o resto naquela narrativa foi inventado por José Acúrsio das Neves, na sua história das invasões napoleónicas publicada em 1810, a fim de esconder o verdadeiro projeto de integração de Portugal na Europa napoleónica, mediante a nomeação de um rei pelo imperador francês, em substituição da dinastia de Bragança, e a outorga de uma constituição, pondo fim à monarquia absoluta, projeto esse consubstanciado num "voto geral da Nação", devidamente documentado, que foi aprovado, subscrito e assumido por toda a elite política e social do País. 

A Súplica era uma concretização desse magno projeto, pelo que, não fora o fim da ocupação francesa pouco depois, teria resultado na primeira constituição nacional.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Aeroporto (8): E apesar disto, vai avançar?

Segundo os dados divulgados há pouco nesta reportagem da TVI, a opção por Alcochete, incluindo o aeroporto e a cidade aeroportuária complementar, implicaria o abate de 250 000 (duzentos e cinquenta mil) sobreiros! Resta saber quantos mais teriam de ser abatidos para edificar a nova "Lisboa II" que os escondidos promotores de Alcochete querem implantar à volta!

Será, porém, que este massacre ambiental vai impressionar minimanente a Comissão Técnica (pseudo)Independente, autoerigida em pouco discreta Comissão-Promotora-de-Alcochete?

Adenda
Um leitor pergunta qual é a dificuldade: «apesar de o sobreiro ser uma espécie legalmente protegida, há sempre duas maneiras de pôr a lei de lado, quando "valores mais altos de se alevantam" - ou contornar a lei com as habilidades que os juristas bem conhecem ou aprovar uma derrogaçãozinha...». Receio tal tentação, mas neste caso, seria demasiado escandaloso.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Aplauso (28): Educação em direitos humanos

O Diário de Coimbra de hoje relata que a rede de bibliotecas escolares do município de Coimbra adotou o livrinho de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, Livres e Iguais, com ilustrações de Ana Seixas, como leitura recomendada na sensibilização dos jovens para os direitos humanos.

É uma iniciativa que me apraz especialmente, pois o livrinho resultou de uma proposta minha, quando fui comissário para as comemorações dos 70 anos da DUDH e dos 40 anos da adesão de Portugal à CEDH, em 2018. Quanto contactei as duas celebradas autoras, ficaram tão entusiasmadas com a ideia, que o escreveram em poucas semanas! 

É bom saber que a obrinha - que já faz parte do Plano Nacional de Leitura - cumpre os propósitos com que foi idealizada e escrita.

domingo, 22 de outubro de 2023

Corporativismo (36): O teste do algodão

1. A Ordem dos Médicos protesta contra o facto de o novo estatuto lhe retirar o poder decisivo, que até agora tinha, na definição do número de internos a entrar nas especialidades e da competência para a sua formação, passando esse poder a caber ao Governo, ouvida a Ordem.

Mas é evidente que não pode haver recuo nesse ponto, pois um dos objetivos essenciais da revisão do quadro legislativo das ordens foi justamente acabar com as restrições por elas impostas à entrada nas respetivas profissões e respetivas especialidades. Dar este ponto como irreversivel constitui um verdadeiro "teste do algodão" da reforma das ordens profissionais.

2. Sucede que, como tenho referido várias vezes, a OM é, entre nós, a mais bem-sucedida das ordens na prática do "malthusianismo" profissional, passando pela sistemática oposição ao alargamento do numerus clausus na entrada nas faculdades de medicina, pelo veto à criação de novas faculdades e, por último, por esse controlo do número de internos nas especialidades e na habilitação das entidades com competência para as administrar. 

Era mais do que tempo de acabar com esse privilégio, que era a pedra de fecho dos mecanismos corporativos de restringir o acesso à profissão e ao respetivo mercado profissional, em favor dos que já lá estão, com os resultados que se conhecem quanto ao défice de médicos, aliás sempre negado pela OM, contra toda a evidência.

3. Às ordens compete supervisionar o exercício profissional dos seus membros quanto ao cumprimento das normas regulamentares e deontológicas e das boas práticas da profissão, bem como exercer a ação disciplinar contra os prevaricadores -, obrigação de que a OM pouco cuida, como é notório. 

Mas, tal como nas demais profissões "ordenadas", definir quem pode ser médico e quem os pode formar - ou seja, o acesso às profissões - é matéria que só o Estado deve ter o poder de decidir, de acordo com o interesse público, e não a Ordem dos Médicos, de acordo com os seus atávicos interesses corporativos

Laicidade (13): Um livro oportuno


No próximo sábado, dia 28 de outubro, pelas 16:00, vou intervir na apresentação pública deste livro sobre a Separação entre o Estado e a Religião, de Victor Correia, com um préfácio meu, que vai decorrer no histórico café Santa Cruz, em Coimbra. 

Além de uma esplicação do sentido e do valor do princípio da laicidade do Estado, em geral, que goza de proteção constitucional entre nós, o livro analisa a situação no nosso país, expondo as principais formas da sua violação por autoridades políticas e instituições públicas.

Corporativismo (53): Pior a emenda...

1. Considero perfeitamente absurda esta proposta de admitir mais do que uma ordem profissional por profissão, estabelecendo a concorrência entre elas, incluindo em matéria de regulação e disciplina profisssional.

As ordens profissionais são, antes de mais, entidades reguladoras públicas das respetivas profissões, em vez do Estado, com poderes oficiais de regulamentação, supervisão e disciplina profissional, em defesa dos interesses dos utentes (dada a "assimetria de informação" e de poderes entre as partes). Ora, de acordo com os cânones do Estado de direito, não pode haver concorrência na prossecução do mesmo interesse público, pelo que, neste aspeto, as ordens só podem ser unicitárias, uma por cada profissão "ordenada".

2. O problema das ordens não é a unicidade regulatória, mas sim a concomitante unicidade corporativa na representação e defesa do respetivo interesse profissional, que cancela a natural pluralidade e concorrência associativa que existe ou pode existir nas demais profissões.

Além de restringir a liberdade de associação profissional, constitucionalmente protegida, conferindo um inadmissível privilégio às profissões "ordenadas" (obrigatoriedade de inscrição e de quotização, além da visibilidade pública), a representação e defesa profissional oficial das ordens pode gerar óbvios conflitos de interesse com a sua missão básica, intrinsecamente pública, de regulação e disciplina profissional, em prol dos utentes, prejudicando esta, como frequentemente ocorre na sua prática.

3. Por isso, tenho vindo a defender a incompatibilidade dessa dualidade das ordens profisionais com os princípios do Estado de direito e da democracia liberal e a propor a sua redução à atividade reguladora, privando-as da missão de representação e defesa de interesses profissionais - um traço inequivocamente corporativista que indevidamente não foi questionado depois de 1976 -, a qual deve ser devolvida à liberdade e à pluralidade associativa, tal como noutras profissões.

Infelizmente, a recente revisão do quadro legal das ordens profissionais ficou bem aquém dessa necessária reforma, pelo que elas vão continuar a ser um abcesso institucional e um problema político na ordem constitucional liberal-democrática.

sábado, 21 de outubro de 2023

Razões para inquietação (4): O império do automóvel


1. Suscita a maior preocupação esta notícia do Expresso de que a «circulação automóvel bate recorde de uma década [e que o] consumo de combustível no 1º semestre deste ano é o mais alto desde 2010» (como mostra o gráfico junto, que acompanha a notícia), com as consequências inerentes: aumento da emissão de CO2, congestionamento das cidades e das estradas, degradação da qualidade de vida urbana, aumento da importação de combustíveis fósseis. 

Como se não bastasse a subida do poder de compra geral para aumentar o parque automóvel, o Governo ajuda com o subsídio fiscal aos combustíveis, a pretexto de combate à inflação, e com a redução das portagens em várias autoestradas; e a oposição ajuda, ao opor-se demagogicamente à subida do IUC dos automóveis mais antigos e mais poluentes. 

Mantemo-nos em estado de de negação: a transição climática não é compativel com a continuação do império do automóvel.


2. É evidente que não é assim que o País cumpre as suas abrigações em matéria de luta contra as alterações climáticas, que exige uma ação determimada de redução dos combutíveis fósseis e de descarbonização da economia. O automóvel elétrico pode reduzir a emissão de CO2, mas não resolve os demais problemas do excesso de automóveis nas cidades.

Enquanto vai avançando noutras geografias  - mercê das restrições à entrada e ao trânsito automóvel nas cidades, da universalização do estacionamento pago, etc. -, entre nós o ideal de cidades sem carros torna-se cada vez mais utópico.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Aplauso (26): Sensatez política

Apesar do título confuso, esta notícia parece querer dizer que, ao contrário do que fez erradamente em 2022, o Governo desistiu de travar a aplicação da fórmula legal de atualização das rendas no próximo ano - o que beneficiaria todos os inquilinos, mesmo os que não precisam, e prejudicaria todos os senhorios, mesmo os de menores recursos -, optando antes pelo subsídio público aos inquilinos que provem ter maiores dificuldades em suportar o aumento, como defendi AQUI a seu tempo.

A ser assim, é de aplaudir a resistência do Governo à pressão do PCP e do BE e do comentariado político com eles alinhado para derrogar mais uma vez a lei e dar mais um machadada na confiança dos investidores no mercado para arrendamento, o que seria um tiro no pé na política de habitação.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Não vale tudo (13): Desvergonha ocidental

[Fonte: AQUI]

A afirmação do Presidente norte-americano sobre o apoio à solução dos dois Estados para o conflito israelo-palestino, no momento em que Israel se prepara para esmagar manu militari Gaza e a sua população, constitui uma despudorada manifestação de hipocrisia e de má-fé política, sabendo-se que os Estados Unidos têm emprestado sempre o seu apoio político e militar à sistemática ação de Israel, desde a sua criação, em 1948, para inviabilizar tal solução, primeiro pela ocupação e confisco militar do território palestino (1949, 1967), depois pela anexação progressiva de Jerusalém oriental e da Cisjordânia, confinando os palestinianos a pequenos fragmentos descontínuos das suas antigas terras (como os mapas acima mostram), numa deliberada campanha de limpeza étnica, sendo essa a verdadeira causa das desesperadas e ocasionais tentativas de reação armada por parte dos movimentos radicais palestinos contra a humilhação e a espoliação israelita .

Ao recuperar cinicamente a ideia dos dois Estados que os próprios Estados Unidos ajudaram friamente a liquidar, Washington junta a desvergonha ao vitupério.

Adenda
O inequívoco apoio dos Estados Unidos ao massacre de Gaza em curso - um intolerável exercício de punição coletiva -, lança às urtigas o discurso de Washington sobre a "ordem mundial baseada em regras", a defesa dos direitos humanos e a condenação dos "crimes de guerra", em que vinha investindo, a propósito da invasão da Ucrânia, para expor a Rússia ao isolamento internacional. Depois deste aplauso mal disfarçado à vingativa destruição de Gaza por Israel - terrorismo de Estado contra terrorismo sectário -, todo esse discurso se desfaz em supina hipocrisia. Moscovo agradece...

Adenda 2
Um leitor considera que a punição coletiva de toda a população de Gaza por causa do atentado do Hamas só vai aumentar o ódio palestiniano contra Israel e reforçar o apoio popular ao grupo radical, «pela coragem em enfrentar o opressivo colonialismo israelita». Concordo: a coabitação entre israelitas e palestinos torna-se ainda mais problemática. Resta saber se esse não é justamente o objetivo da extrema-direita nacionalista que governa Israel, para justificar a repressão e o estado de guerra permanente...

domingo, 15 de outubro de 2023

Memórias acidentais (23): O cerco à Assembleia Constituinte

1. Um dos episódios mais marcantes na história da Assembleia Constituinte (1975-76), de que fui testemunha pessoal, como deputado que era do PCP, foi o cerco ao palácio de São Bento, de 12 para 13 de novembro de 1975, por uma enorme manifestação dos sindicatos da construção civil, vinda desde o ministério do Trabalho (à Praça de Londres), cerco que manteve os deputados confinados durante longas 36 horas.

Ouvindo os revoltados comentários de muitos deputados de outros partidodos nos corredores nessa longa noite, não tive dúvidas de que o sequestro do único órgão eleito do poder político de então aumentava seriamente a hipótese de uma operação para fazer valer a "ordem democrática" contra a "anarquia revolucionária", de que se falava desde o verão -, que veio a ser o 25 de Novembro, que pôs termo ao processo revolucionário

2. O episódio do cerco constitui o objeto de um livro da jornalista Isabel Nery, acabado de publicar (na imagem), a qual dá hoje uma entrevista ao Diário de Notícias sobre o tema.

Concordando em geral com a versão dos acontecimentos nessa entrevista, tenho, porém, dois pontos de divergência. Em primeiro lugar, penso que a autora não tem razão quando escreve que os deputados do PCP, do MDP e da UDP tinham liberdade de saída e entrada do Palácio. Se bem me lembro, no que diz respeito pelo menos ao PCP - o qual, embora solidário com a luta sindical da construção civil, não apoiou o cerco -, os seus deputados, entre os quais se encontravam dirigentes do Partido, também sofreram o confinamento, e a única derrogação de que me dei conta foi a saída de uma deputada do Barreiro, que conhecia alguém no piquete sindical, e que na noite do dia 12 foi autorizada a sair para buscar abastecimentos, o que fez.

De resto, se esses deputados podiam sair, porque é que haveriam de voltar? A verdade é que nenhum deixou o Palácio.

3. Discordo igualmente da aproximação, admitida pela autora, desse cerco de 1975 com os recentes episódios do assalto e invasão violenta e destrutiva do Congresso dos Estados Unidos e do palácio do Planalto em Brasília, em ambos os casos organizados por forças da extrema-direita para contestar os resultados das eleiçoes presidencias nos dois países, constituindo, portanto, verdadeiras tentativas de golpe de Estado.

Ora, sem desvalorizar a gravidade do caso de 1975, em Lisboa, o que é facto é que não houve nenhuma invasão, muito menos depredação, do Palácio de São Bento, nem menção dela, e o cerco, protagonizado por sindicatos sem nenhum apoio partidário explícito, não visava pôr em causa nenhumas eleições nem operar qualquer subversão das instituições políticas existentes. O referido paralelismo parece-me, por isso, de todo infundado.

Adenda
Um leitor recorda que o verdadeiro alvo da manifestação sindical era o Governo, tendo sido também cercada a residência oficial do PM, situada na cerca posterior do Palácio de São Bento, e que no início da manifestação, o chefe do Governo, Pinheiro de Azevedo, se dirigiu aos manifestantes a partir da varanda do Palácio, dando lugar às vaias daqueles, pelo que a Constituinte terá sido uma «vitima colateral à mão» da ira dos manifestantes.

sábado, 14 de outubro de 2023

Como era de temer (6): Quando Israel compete com o Hamas

1. Como era de recear, o governo israelita resolveu enveredar por práticas de olho-por-olho e dente-por-dente em resposta ao ataque terrorista do Hamas, com o bloqueio total a Gaza, incluindo o corte de energia, de combustível e de água a 2 milhões de habitantes do território, a imposição do abandono da cidade de Gaza pela população (1 milhão), o bombardeamento maciço de alvos civis e equipamentos públicos -, tudo formas de punição coletiva de má memória, em flagrante violação das normas do direito da guerra e do direito humanitário.

Ao contrário dos grupos terroristas, um alegado Estado de direito, como Israel, não pode tomar as populações civis como reféns e vítimas coletivos da sua luta antiterrorista, sob pena de se parecer com eles.

2. Tão grave como este verdadeiro terrorismo de Estado israelita é a complacência e o cinismo ocidental  perante o massacre de Gaza em curso, limitando-se a solicitar deferentemente ao governo israelita que não dê uma resposta "desproporcionada", quando é evidente que não há limites de nenhuma espécie na punitiva contraofensiva de Tel-Aviv. Uma vergonha!

Mais uma vez surge a questão da duplicidade de critérios ocidental: com que legitimidade e credibilidade é que a Nato e os seus membros, incluindo Portugal, podem continuar a condenar os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia, como têm feito, se são coniventes com os praticados por Israel contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia à vista de toda a gente?!

Adenda
Quando o MNE nacional se limita a esperar que «a matança de palestinianos em Gaza não seja desordenada», está tudo dito! Nem o Secretário de Estado norte-americano seria tão cínico. Revoltante!

Adenda 2
Um leitor pergunta porque uso palestinos/as, em vez de palestinianos/as, como é corrente. Na verdade, uso ambas as formas, mas dei em pensar que é preferível usar a primeira: também dizemos argentinos/as para os nacionais da Argentina, e não argentinianos/as, ou filipinos/as, para os das Filipinas, e não filipinianos/as.

Novo aeroporto (7): O mistério do PSD

1. Subitamente, o líder do PSD veio colocar em causa a credibilidade da Comissão Técnica Independente sobre o novo aeroporto, constituída pelo Governo com o seu acordo, ameaçando tirar-lhe o tapete, se o relatório final daquela não se revelar «100% independente»

Trata-se, porém, de uma reação tardia e inconsequente. Tardia, porque desde o início são claros os indícios de que na CTI o jogo tem um vencedor antecipado - Alcochete; inconsequente, porque a tímida ameaça do PSD em nada vai demover a Comissão, e depois do veredicto desta nada haverá a fazer, apressando-se o Governo a ratificá-lo -, ufanando-se de ter dado solução a uma das grandes questões em que o País se consumia há décadas. 

Pior do que isso, se nessa altura se demarcar, o PSD corre o risco de ser acusado de recusar ex post facto o resultado de um jogo cujas regras e cujo árbitro aceitou.

2. A independência da CTI ficou em crise desde o princípio, com a nomeação da sua presidente, que fez parte do grupo de trabalho que no LNEC tinha fundamentado, durante o I Governo Sócrates, o abandono da Ota a favor de Alcochete. Esse manifesto conflito de interesses era bastante para impedir a sua nomeação, ou para levá-la a não aceitar -, o que sintomaticamente não acorreu.

Depois disso, somaram-se os indícios de parti pris em favor de Alcochete: a invenção de novas opções improvaveis na margem sul do Tejo, só para tornar natural a escolha de uma localização para essas bandas; a afirmação de que Santarém só estava entre as localizações a estudar porque constava a lista do Governo; o "esquecimento" dos custos orçamentais e dos custos de acesso para os utentes, na primeira lista de critérios a utilizar na avaliação; a nomeação de notórios "campeões" de Alcochete para a Comissão de Acompanhamento; a contratação de vários defensores de Alcochete pela CTI, incluindo a seleção, por adjudicação direta, do autor de um dos principais estudos.

Quando as cartas estão marcadas, só por cinismo político é que se pode esperar que a solução indicada ou favorecida pela CTI seja "100% independente".

3. O líder do PSD não pode ignorar que a solução de Alcochete - cujos promotores, sintomaticamente, não dão a cara - é, desde há duas décadas, uma gigantesca aposta financeiro-imobiliária, que consiste na edificação de uma espécie de "Lisboa-B" à volta do novo aeroporto, servida por novos acessos rápidos rodoviários e ferroviários, envolvendo bancos e grupos financeiros, construtoras e empresas imobiliárias, consultoras e escritórios de engenharia, todos à espera do devido prémio financeiro para os seus investimentos.

Não sendo crível que o PSD esteja disponível para desafiar tais interesses, a sua tardia e inconsequente dúvida sobre a independência da CTI constitui um verdadeiro mistério.

Adenda
Citando esta opinião de um especialista de há meses, um leitor pergunta se faz sentido escolher a localização e o tipo do novo aeroporto «antes da projetada privatização da TAP e de conhecer a preferência do grupo aéreo que a vai gerir». Boa questão. 

Adenda 2
Pegando na questão dos «poderosos promoteres-mistério de Alcochete», sendo publicamente conhecidos os de Santarém e do Montijo, um leitor entende que devia haver haver uma cabal investigação sobre isso (aquisição de terrenos, empréstimos hipotecários, bancos envolvidos, etc.) e pergunta se, «havendo inquéritos parlamentares por tudo e por nada», se não se justifica um neste caso. Boa provocação!

Adenda 3
Um leitor considera que a recente "filtragem" para a imprensa da hipótese-fantasma de Vendas Novas - não se vê para que população! - é uma «simples cortina de fumo para dar a impressão de que ainda considera alternativas a Alcochete» e mostra que, «ao instumentalizar os media "amigos" desta maneira, a CTI já perdeu qualquer escrúpulo na "venda" da sua pré-decisão». Tem razão!

Adenda 4
Outro leitor pergunta: «se a decisão já está tomada, por que é que os defensores das outras lozalizações continuam a colaborar com a Comissão, legitimando o jogo viciado?» Boa pergunta!

Adenda 5
Se a CPI foi capturada desde o início pelo lobby de Alcochete, o mesmo se diga da tal Comissão de Acompanhamento, como se mostra aqui, quanto ao seu presidente. Avaliação independente? - uma "piada" de mau gosto!

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Contra a corrente (4): O orçamento pródigo

1. A capa do Público de hoje ilustra bem o anunciado "bodo" orçamental para o ano que vem: aumentos substanciais de remunerações, de pensões, de prestações e transferências sociais e das dotações orçamentais em geral, acompanhados de uma redução de impostos, principalmente do IRS, acima do esperado. Tudo somado (mais outas medidas afins, como o aumento sem precedente do SMN), o orçamento vai traduzir-se num considerável aumento da despesa pública e do rendimento disponível da generalidade dos portugueses. 

A boa saúde das finanças públicas e o ano eleitoral (eleições europeias) justificam a generosidade orçamental. Restam, porém, duas dúvidas: (i) esse aumento substancial do poder de compra agregado não é contraditório com a luta em curso contra a inflação, tornando-a mais resistente? (ii) será que o aumento estrutural da despesa pública que este orçamento provoca é sustentável quanto os atuais ventos financeiros favoráveis se inverterem e o PRR da UE findar?

2. Às benesses orçamentais não escaparam as propinas do ensino superior, mas uma vez congeladas, derrogando a fórmula legal da sua atualização.  Desde 2015, incluindo reduções e congelamentos, o seu valor real não cessou de diminuir, reduzindo a sua contribuição para o financiamento das instituições.

Com isso, as IES tornam-se financeiramente menos autónomas e o orçamento do Estado tem de compensar esse défice de autofinanciamento, em vez de reforçar, como devia, o financiamiento das bolsas de estudos dos estudantes com menores recursos, enquanto favorece os que têm mais. A meu ver, uma opção errada.

3.  Há que saudar, porém, uma medida contra esta geral prodigalidade orçamental, que é o fim do chamado "IVA zero" para um pacote de bens alimentares e afins, o qual é substituído por uma ajuda monetária ao poder de compra das famílias mais carenciadas, como aqui defendi na altura.
Mais vale corrigir tarde um erro do que nunca; mas é pena que, entretanto, não tenham sido cobradas centenas de milhões de euros em IVA a pessoas que em nada precisam de tal subsídio. Mesmo em períodos de "vacas gordas" orçamentais, não se compreende que se deite dinheiro público à rua.

Adenda
Só numa caricatura é que se pode defender que o Governo cooptou a agenda política do PSD. Tal não se aplica obviamente aos traços essenciais do orçamento: aumento da despesa pública em vários pp, aumento do salário mínimo sem precedentes (e isento de IRS), aumento do abono de família e do subsídio de desemprego, subida das pensões de valor baixo e médio acima da inflação, baixa generalizada do IRS para os rendimentos do trabalho, sem nenhuma redução quanto aos rendimento de capital nem do IRC (que foi sempre a prioridade do PSD), proograma IRS Jovem, aumento do apoio às rendas de famílias de menores rendimentos, etc. etc. Claramente, a objetividade da análise foi cooptada pelo sectarismo político.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Euroeleições 2024 (1): O PSD em dificuldades

1. A sondagem eleitoral hoje publicada é preocupante para o PSD, que voltou a ser claramente suplantado pelo PS, depois de não ter conseguido mais do que um equívoco empate, durante a longa novela do inquérito à TAP, com os "casos" de Pedro Nuno Santos e de Galamba à mistura, inescrupulosamente explorados pelo PR, que fragilizaram o Governo.

É certo que não é facil a oposição contra um Governo que tem a seu favor um boa situação económica e financeira, em grande parte "cortesia" do PRR da UE, o que explica o crescimento do emprego, o aumento das pensões e das prestações sociais, as medidas para atenuar o impacto social da inflação, além de algumas importante reformas já no terreno ou em vias de execução (despenalização da eutanásia, descentralização municipal, protorregionalização das CCDR, ordens profissionais, gestão do SNS, escolha de localização do novo aeroporto, avanço do TGV...). 

Mas a essa dificuldade tem-se somado no partido líder da oposição o manifesto défice de liderança e de clara alternativa de governo (programa e equipa), os equívocos sobre a relação com o Chega, o rasteiro oportunismo de algumas propostas avulsas, como a recuperação do tempo de serviço dos professores, alinhando com a esquerda radical, etc. Por este caminho, o PSD não vai lá...

2. Neste quadro, o eventual insucesso do PSD nas eleições europeias de maio do próximo ano - e somente uma clara vitória lhe serve -, poderá ser o dobre de finados de Montenegro à frente do partido e dar lugar à uma disputa pela sua substituição, seja pela nova estrela ascendente (Moedas), como alguns observadores prognosticam, seja pelo regresso de sénior Passos Coelho, para dar novo alento ao partido. 

Contudo, esse insucesso eleitoral também retira ao PR qualquer pretexto para dissolver a AR e antecipar eleições parlamentares. O embate político ficará, portanto, adiado para 2026, no fim da legislatura. Mas, sendo desde a origem um partido de poder, como vai o PSD resistir a 11 anos fora dele (um record...), sem abalos internos? 

Assim, não! (7): Gestão imobiliária incompetente

Segundo esta notícia do Expresso, a «Segurança Social tem 425 imóveis devolutos e €20 milhões de rendas por cobrar»

Ora, sendo manifesto o défice do parque imobiliário (sobretudo habitacional) nacional, é imperdoável que uma instituação pública com as responsabilidades financeiras da Segurança Social tenha centenas de imóveis sem utilização; além disso, sendo a Segurança Social financeiramente autónoma, não se compreende que não cobre ao Estado a renda devida pelos seus prédios por ele ocupados. O Estado não tem direito à utilização gratuita dos imóveis de instituições públicas autónomas.

A Segurança Social deve uma cabal explicação pública ao País.

SNS em questão (26): Respostas que faltam

Nos posts desta série, tenho vindo a deixar as minhas dúvidas sobre a sustentabilidade do atual modelo de SNS em Portugal, e penso que nenhuma reforma do mesmo pode ser bem-sucedida sem a resposta a esta questão crucial: como é que se justifica que, tendo havido desde 2015 um aumento substancial do financimento e dos recursos humanos do SNS, a situação de crise não só se não atenuou como se agravou?

É evidente que por cada milhão de euros a mais e por cada milhar de profissionais a mais deveria haver um aumento correspondente dos cuidados de saúde prestados (consultas, exames, intervenções cirúrgicas, etc.). Mas onde estão essas contas? Como responder à acusação de que desde a pandemia a ineficiência do SNS se agravou, em vez de se reduzir? Como se pode ter um SNS eficiente, sem uma credível avaliação de desempenho de serviços e de profisssionais e sem fazer depender o financiamento dos primeiros e a remuneração dos segundos dessa avaliação (como, de resto, sucede no setor privado)?

domingo, 8 de outubro de 2023

Como era de temer (5): Contra o laxismo orçamental

1. Sem surpresa, dados os seus pressupostos ideológicos, os partidos à esquerda do PS e os opinadores a eles afetos, vieram defender o gasto público imediato do esperado excedente orçamental do corrente ano. Também sem surpresa para quem me lê, entendo que tal ideia deve ser frontalmente rejeitada pelo Governo, por três motivos principais: 
     - como argumentei aqui, a "folga orçamental" é em grande medida conjuntural e "artificial", derivada essencialmente do empolamento da receita fiscal decorrente da inflação; 
     -  num processo inflacionista como o que está em curso, a pior coisa que se pode fazer é lançar dinheiro a rodos sobre a economia, aumentando o poder de compra e, portanto, pressionando ainda mais a inflação; 
      - com a elevada dívida pública que o País tem, a primeira prioridade orçamental de um Governo responsável deve ser reduzir o seu peso, para aliviar os seus enormes custos em juros, assim libertando fundos para os orçamentos futuros.

Não é somente pelo prémio político - o segundo excedente orçamental da democracia - nem somente para obter boas notações das agências de rating - como tem sucedido -, mas sim por sentido de responsabilidade financeira, que o Governo deve manter toda a prudência orçamental, mesmo em tempos de vacas gordas.

2. Pior do que esquerda radical é o laxismo orçamental do PSD, por ser incoerente com a sua tradição política e doutrinal, o qual, além do aumento generalizado da despesa pública (incluindo a supina irresponsabilidade de repor por inteiro o tempo de serviço dos professores para efeitos de progressão), veio cumulá-lo com a proposta de imediata redução substancial dos impostos -, o que teria o mesmo efeito contraproducente sobre a inflação.

Quando, na crucial questão orçamental, a oposição de vocação governativa opta por competir com a oposição dos partidos de protesto, mal vamos.

Adenda
Deveria servir de lição a preocupante situação da Itália, que, apesar do enorme volume que recebe do PRR da UE, mantém um significativo défice orçamental e aumenta a sua gigantesca dívida pública, pelo que os juros desta já vão em quase 5%, bem acima da média da zona euro. Sendo neste momento evidente que a elevada taxa de juros do BCE se vai manter por alguns anos, o falta quem se inquiete com o risco de uma crise da dívida pública italiana. Se tal vier a ocorrer, convém que, ao contrário de 2011, Portugal esteja bem blindado contra qualquer contágio, quer quanto ao défice quer quanto à dívida.

Não com os meus impostos (12): Contra as autoestradas subsidiadas

1. Apoio, por princípio, o agravamento do imposto automóvel anual, como medida para atenuar o crescimento exponencial do parque automóvel, com todos os seus conhecidos malefícios (poluição, congestionamento das cidades, competição com o transporte público, etc.).

Do que discordo é que tal aumento seja destinado a compensar a errada redução do valor das portagens em várias autoestradas do país, incluindo no Algarve, em contradição com o princípio do utilizador-pagador nos serviços de valor acrescentado, que não há nenhuma razão para que sejam pagos pela coletividade, através de impostos gerais, mais uma vez facilitando o transporte individual sobre o coletivo. 

2. De resto, se o pretexto é a dificuldade de vias de comunicação alternativas, então a redução deveria aplicar-se a vários troços de outras autoestradas, incluindo a A1, bastando referir o caso da intratável ligação entre Coimbra e Aveiro. Pelo contrário, o subsídio às autoestradas apenas desvia fundos públicos que deveriam servir para a melhoria das estradas alternativas.

Depois do erro crasso da instituição das autoestradas SCUT no Governo Guterres (sem-custos-para-os-utentes, porque transferidos para os contribuintes), contra as quais me bati desde o início, e de ter resistido ao seu fimé preocupante que, de novo, um Governo PS venha enveredar pela solução facilitista de autoestradas de uso subsidiado.

Adenda
Enquanto Portugal continua levianamente a abster-se de enfrentar a invasão do automóvel e as suas enormes "externalidades negativas", do outro lado do Mundo, Singapura agrava o custo da licença automóvel, ao mesmo que mamtém portagens internas na cidade, para evitar o congestionamento do centro. Há de haver um dia em que, vencendo o poderoso lobby automóvel, soluções destas se imporão noutras geografias...

Adenda 2
Um leitor defende a medida como «estímulo ao desenvolvimento das regiões mais pobres do País». Mas, para além de ser óbvio que o Algarve não cabe nesse conceito, esse argumento não justifica a baixa das portagens para toda a gente em autoestradas que são eixos rodoviários fundamentais do País, como a A25 (Aveiro-Vilar Formoso), por onde entra e sai grande parte do fluxo transfronteiriço nacional. Só se for um subsídio às exportações e importações por via rodoviária, prejudicando a via ferroviária (pela linha da Beira Alta), o que é estúpido. ..

sábado, 7 de outubro de 2023

Contra a corrente (3): Duplicidade ocidental em Israel

1. Sim, também entendo que o ataque supresa do Hamas, o grupo radical palestiniano, de hoje contra Israel, disparando centenas de mísseis indiscriminadamente a partir da faixa de Gaza contra alvos civis, é condenável, não sendo preciso para isso ser mais natista do que a Nato.

Mas gostaria de ter visto igual condenação, ao longo deste anos, contra a sistemática violação dos direitos dos palestinianos por Israel, incluindo o confisco do seu território através de "colonatos" judaicos, a construção de um muro de separação em território palestino, a expulsão de moradores palestinianos de Jerusalém (aí, sim, uma verdadeira limpeza étnica), o bloqueio de Gaza, o apartheid antipalestiniano instalado em Israel, enfim a inviabilização programada de um Estado palestiniano. Nenhum povo pode aceitar passivamente a opressão e a humilhação continuadas.

Desta vez não venham dizer que esta nova guerra não foi provocada.

2. É evidente que a superioridade militar israelita - cortesia da generosidade ocidental, especialmente norte-americana - vai prevalecer, não sem muitas baixas civis de lado a lado, acabando no final com mais repressão israelita sobre os palestinianos, mais apropriação dos territórios ocupados, mais ódio na relação entre as duas partes e mais combustível político para os radicais palestinianos.

Que ao menos sejamos poupados à hipocrisia dos lamentos sobre as vítimas e os custos humanos da guerra, a que vamos assistir, guerra que a duplicidade de critérios ocidental ajudou a gerar.

Adenda
Um leitor defende que o Ocidente «faz bem a apoiar Israel, uma democracia ocidental, contra o terrorismo palestiniano e a autocracia dos países árabes vizinhos». Tenho três observações a este argumento: (i) as democracias liberais (sem questionar se Israel ainda o é...) não estão dispensadas de cumprir as suas obrigações internacionais como potências ocupantes, pelo contrário; (ii)  o "terrorismo palestiniano" não pode ser respondido com o "terrorismo de Estado" israelita, como sucedeu ainda ontem, com o bombardeamento maciço de objetivos civis em Gaza, causando centenas de mortos, e o corte de energia ao território; (iii) como já escrevi anteriormenteao ser cúmplice da ilegal anexação de territórios palestinianos em Jerusalém e em grande parte da Cisjordânia, o Ocidente perde legitimidade e autoridade para condenar devidamente a anexação de territórios ucranianos pela Rússia...

Adenda 2
Uma boa análise política da situação por um observador imparcial, neste artigo intitulado «A Shaken Israel Is Forced Back to Its Eternal Dilemma», de Roger Cohen, no New York Times.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Laicidade (12): Os atropelos

Eis um livro oportuno sobre um dos princípios fundamentais da nossa ordem constitucional liberal-democrática - a separação entre o Estado e a religião -, que não tem sido objeto da atenção que merece no nosso País.

O livro analisa, por um lado, o significado e o valor desse princípio, em especial enquanto garantia da liberdade religiosa e da igualdade na sua fruição e, por outro lado, enumera os inúmeros atropelos a que ele está sujeito entre nós, em benefício da Igreja Católica, desde as missas realizadas por iniciativa de entidades públicas até aos capelães oficiais em várias instituições públicas.

No meu breve prefácio (8 pp), além de pôr em relevo os méritos do livro, sublinho que ele deve dar oportunidade ao debate que tem faltado sobre o défice da laicidade do Estado no quase meio século desde a sua consagração constitucional na Lei Fundamental de 1976.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

terça-feira, 19 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Um pernicioso equívoco

1. Este artigo, de pretensa legitimação do atual intervencionismo governativo do PR, constitui um exemplo claro dos equívocos a que pode conduzir uma leitura pouco cuidada do sistema de governo português numa chave "semipresidencialista" (que analisei e critiquei devidamente AQUI). Sucede que num Estado de direito constitucional, como o nosso, os poderes do PR são os definidos na Constituição (poder de nomeação de certos cargos públicos, poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), e não os que decorrem de um pré-conceito político sem base constitucional.

Ora, como tenho escrito muitas vezes, ao criticar os abusos de poder do PR, muitos sem precedentes entre nós, há duas coisas incontroversas à face da CRP (desde a revisão constitucional de 1982): (i) é ao Governo, sob direção do PM, que cabe a função governativa, sem nenhuma sujeição a orientações presidenciais; (ii) o Governo não é politicamente responsável perante o PR, pelo que não pode ser demitido por este por divergência política, mas somente perante a AR (e, naturalmente, perante a oposição e a opinião pública). 

Nenhuma pré-compreensão do sistema de governo pode prevalecer sobre estas duas regras constitucionais fundamentais.

2. Daqui decorre que não existe nenhum poder de superintendência nem de tutela política de Belém sobre São Bento, nem expresso nem implícito, pelo que não têm cabimento as incursões presidenciais que tenho apontado na esfera governativa, quer na definição presidencial de orientações para o Governo, quer na censura sobre os atos ou omissões governativas (salvo quando ponham em causa o "regular funcionamento das instituições", que cabe ao PR assegurar). A sobreposição e a confusão de poderes arrastam a indefinição da repartição de responsabilidades, que pode ser fatal ao funcionamento do sistema político.

O PR tem o poder de fiscalizar a observância das regras constitucionais e das obrigações institucionais do Governo, não a de definir ou de controlar as políticas governativas. A separação de poderes, esteio fundamental do moderno constitucionalismo, ainda conta.

Adenda
Um leitor objeta que a caracterização do nosso regime político como "semipresidencialismo" se generalizou desde 1976, pelo que considera «praticamente impossível abandoná-la». Já foi uma tese mais sufragada do que hoje, pelo menos entre os constitucionalistas, onde nunca foi pacífica, desde a revisão constitucional de 1982, como mostro no meu estudo acima referido. Acresce que uma coisa é usar essa controversa noção para qualificar, sem o devido rigor, o sistema de governo, outra é utilizá-la para defender poderes presidenciais sem base constitucional. Em vez de partir das soluções constitucionais para chegar à qualificação mais apropriada, parte-se de uma certa qualificação, apesar de, no mínimo, litigiosa, para dela deduzir soluções constitucionalmente inconsistentes. Chama-se a isso "conceitualismo", no seu pior... 

domingo, 17 de setembro de 2023

Não dá para entender (33): Privilégios

1. Fui surpreendido com esta informação de que a ADSE, o seguro de saúde oficial dos funcionários públicos (lato sensu), também pode cobrir os professores do ensino básico e secundário privado e cooperativo, o que estaria explicitamente referido na página oficial da ADSE. 
Sucede que não consegui encontrar a norma legal necessária para dar cobertura a essa solução (pois, sendo a ADSE uma entidade administrativa, ela só pode fazer aquilo que a lei prevê). Mas, mesmo que tal norma legal efetivamente exista, não vejo como é que o estabelecimento de uma prerrogativa privativa a uma certa profissão pode ser considerado compatível com o princípio constitucional da igualdade e da não-discriminação (CRP, art. 13º).

2. Além disso, se, como tenho argumentado desde há muitos anos, existe uma incompatibilidade de partida entre a filosofia da ADSE e a do SNS, tal incompatibilidade torna-se ainda mais gritante, se a primeira for aberta a privados, deixando de obedecer a qualquer critério quanto aos seus beneficiários e ampliando o volume de pessoas que usufruem de um subsistema público de saúde paralelo ao SNS.

Aliás, não faria qualquer sentido que, enquanto exalta o seu compromisso com um SNS universal, igual e tendencialmente gratuito na prestação dos cuidados de saúde, um governo do PS alargasse a trabalhadores privados a cobertura da ADSE, a qual, não por acaso, é um modelo de prestação de cuidados de saúde justamente defendido por muitos adversários do SNS, e como alternativa a este

Uma óbvia contradição!

Adenda
Um leitor argumenta que quanto mais gente houver na ADSE, a contribuir com 3,5% do seu salário (mais os copagamentos de cada ato) para pagar cuidados de saúde no setor privado, menos pressão haverá na procura do SNS, que é financiado pelo orçamento e pelos impostos gerais, pelo que, «no fundo, os ministros das Finanças e da Saúde devem saudar esse alargamento da ADSE». Não é hipótese verosímil, tratando-se de um Governo do PS, mas é caso para dizer, como Sancho Pança: "não acredito em bruxas, pero que las hay, las hay"...

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

História constitucional (3): Desmontar uma ficção histórica

1. Neste artigo acabado de publicar na revista espanhola Historia Constitucional (on-line, acesso livre), propomo-nos desconstruir uma ficção histórica deliberamente construída a posteriori sobre a chamada Súplica Constitucional dirigida Napoleão em 1808, durante a ocupação francesa e o governo de Junot, segundo a qual tal Súplica teria sido uma iniciativa isolada de um pequeno grupo de "afrancesados" e prontamente rejeitada.

Ora, neste artigo mostramos que tal iniciativa só se compreende como parte de uma solução de integração de Portugal na Europa napoleónica, mediante a aceitação de um rei francês para o País, indicado pelo Imperador, e a outorga de uma Constituição (tal como viria a ocorrer em Espanha nesse mesmo ano), solução que se apresentou como preço a pagar pela salvaguarda da autonomia do reino de Portugal, evitando a sua repartição entre a França e a Espanha, como tinha sido acordado no Tratado de Fontainebleua entre Paris e Madrid, no ano anterior.

A verdade é que tal solução foi explicitamente sufragada e subscrita pela generalidade da elite política nacional, numa espécie de referendo nacional informal (que abrangeu as câmaras municipais).

2. O subsequente levantamento popular contra o invasor e a sua expulsão, com a ajuda das tropas inglesas, repondo o governo da regência em nome de D. João VI, interrompeu a concretização desse plano e levou à eliminação dos documentos que o testemunhavam, tendo Acúrsio das Neves inventado então, em 1810, na sua história das invasões francesas, a versão que prevaleceu até agora sobre a Súplica, apagando totalmente o episódio do ato coletivo de vassalagem a Napoleão.

O aparecimento de novos documentos e a releitura integrada desse período levam-nos a descartar essa versão tradicional e a susbtituí-la pela acima referida. Não ignoramos o abalo que a nossa investigação pode suscitar, mas, mais de dois séculos depois, era altura de fazer prevalecer a verdade histórica sobre a tentativa de apagar um episódio porventura pouco edificante da história nacional.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Guerra na Ucrânia (57): Alianças que comprometem

A visita do líder norte-coreano a Moscovo e o seu apoio entusiástico à invasão russa da Ucrânia, em nome da "luta sagrada" contra o Ocidente, só pode trazer embaraços a Putin, por não poder agradar quer a muitos países que no "sul global" não tomaram partido na guerra, que consideram uma "guerra entre potências do Norte", recusando-se a condenar Moscovo, quer sobretudo àqueles observadores que, embora condenando desde o início a invasão, como é o caso deste blogue, se recusam a alinhar na russofobia ocidental, que a guerra aprofundou. 

A aliança de Moscovo com Pyongyang, um dos governos mais despóticos e mais belicistas do Mundo, afasta ainda mais a Rússia do Ocidente e só pode causar inquietação em muitas outras geografias. Há alianças que comprometem.

+ União (74): Um poder virtuoso

A Apple acaba de anunciar que o novo modelo do Iphone vai conformar-se com a obrigação imposta pela UE, de adotar o padrão comum de carregador, o USB-C, assim beneficiando os consumidores na sua liberdade de troca de aparelhos e reduzindo o impacto ambiental do desperdício de carregadores. Há algum tempo, também a Microsoft anunciou que o Windows vai deixar de incluir a plataforma Teams, que passa a ser vendida separadamente, cedendo à ameaça da Comissão Europeia de punir a empresa por "abuso de posição dominante", ao obrigar os adquirentes do Windows a adquirir e pagar outro produto, para o qual existem vários concorrentes no mercado.

Estes dois exemplos mostram mais uma vez que só a UE tem o poder económico e a vontade política para enfrentar os abusos de poder das grandes empresas tecnológicas globais, que hoje dominam a economia mundial, utilizando o enorme peso do seu mercado interno para as forçar a respeitar restrições que nenhum Estado-membro só por si estaria em condições de adotar, sendo essa uma das grandes mais-valias da integração económica europeia. 

Nenhum argumento soberanista ou nacionalista pode prevalecer contra esse poder virtuoso da União.

Adenda
Um leitor considera, com toda a pertinência, que estes dois casos, em especial o da Apple, são «manifestações do "Brussels Effect", a que a Professora Anu Bradford se refere no seu livro de 2020», que analisa o impacto global do poder regulatório da União.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Bons augúrios (2): Uma reforma estrutural

1. A expressão "reforma estrutural" tem sido abusada entre nós como aquelas reformas nas políticas económicas e sociais (impostos, pensões, sistema de saúde, etc.) que visam um impacto imediato no aumento da eficiência da economia, na redução da despesa pública, na melhoria dos serviços públicos, mesmo que os resultados venham a ser modestos.

Mas há também as reformas que conjugam diversas políticas e se traduzem em processos relativamente lentos e em grande parte invisíveis, até começarem a produzir resultados. Tal é o que ocorre com o processo de elevação das qualificações educacionais e profissionais do País, que o relatório hoje publicado pela OCDE revela, designadamente quanto ao consistente aumento da percentagem de pessoas com o ensino secundário completo e ao substancial aumento da percentagem de jovens a frequentar o ensino superior e, sobretudo, quanto a um indicador crítico, como a diminuição da percentagem de jovens "nem-nem", ou seja, sem estarem a estudar nem a trabalhar, em que o país ja está melhor do que a média da OCDE.

2. Estes resultados querem dizer que o conjunto de políticas coerentes lançadas nos últimos anos com esse objetivo - alargamento do ensino secundário obrigatório, combate ao abandono escolar, aposta no ensino profissional, ampliação da cobertura do ensino superior público, aumento das bolsas de estudo, etc.- estão a ser bem-sucedidas. 

O seu impacto continuado no bem-estar económico e social, na produtividade e competitividade da economia e na travagem da emigração de trabalhadores qualificados não pode ser negado nem desvalorizado. Trata-se de uma verdadeira e própria reforma estrutural, aliás indispensável.

Assim, não (6): O mal e a caramunha

Dois conselheiros de Estado, ambos de direita, que acumulam com a função de comentadores políticos, vieram criticar o Primeiro-Ministro por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado

Ora, eles sabem bem porque é que ele tomou, e bem, tal decisão, como expliquei AQUI: (i) porque não devia coonestar a "golpada" presidencial (política e constitucional), de tornar abusivamente o Conselho em órgao de julgamento político do PM e do Governo e num órgão de definição da política geral do País; (ii) e porque o PR anunciou antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento (o mesmo é dizer, o seu veredicto), sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada.

Ora, se se pode compreender que os dois conselheiros, ambos designados pelo próprio PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que manifestamente concordam, tendo ambos intervindo no "julgamento", por maioria de razão deveriam poupar-se a condenar publicamente o PM, por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação...

Adenda
Concordando com este post, um leitor sublinha: «Que grande descaramento!».

Adenda 2
Outor leitor observa que, por via de regra, é o PM que precisa de consultar o PR e não o contrário, pois este não goza de poderes executivos, e se precisar de ouvir aquele sobre qualquer assunto, ele não precisa de convocar o Conselho de Estado, tendo os encontros semanais ordinários entre ambos para o fazer. Tem razão.

Adenda 3
O Conselheiro Lobo Xavier escreveu-me a dizer que, contrariamente à minha acusação (baseada numa notícia do Expresso, devidamente invocada no post acima), não se pronunciou sobre o silêncio do PM: «a minha afirmação expressa [foi] a de que não me pronunciaria sobre o que se passou no Conselho de Estado, e muito menos comentaria o alegado silêncio de António Costa». Aqui fica a devida correção, repondo a verdade

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Ai, a dívida (21): A ilusão da "folga orçamental"

1. Pode parecer estranho regressar aqui aos alertas para o problema da dívida pública, quando o seu peso no PIB está a diminuir substancialmente e tudo indica que este ano haverá um excedente orçamental, e quando toda a gente, Governo e oposição, incluindo o PR, entende que há margem para reduzir os impostos. Penso, porém, que a "folga orçamental" é, em grande parte, ilusória e não tem fundamentos duradouros.

Por um lado, ela é produto de um excecional acréscimo das receitas públicas, mercê do processo inflacionista e da maciça transferência de fundos da UE no âmbito do PRR, que cobrem grande parte da despesa de investimento público e que estimulam o crescimento da economia. Por outro lado, o bom comportamento da economia e do emprego reduz a despesa social e aumenta a receita fiscal.

O que surpreende, nestas condições especialmente favoráveis, não é que haja "contas certas", mas sim que elas não sejam robustamente excedentárias, levando à redução do próprio stock da dívida pública.

2. Ora, estes ventos favoráveis não vão durar sempre. 

Por um lado, a diminuição em curso da inflação vai acabar com o empolamento artificial da receita tributária; a economia dá mostras de arrefecer, tanto mais que a economia da União está em vias de estagnação, arrastada pela Alemanha, já em recessão; e os fundos do PRR vão acabar em 2026. Por outro lado, a despesa pública permanente não cessa de aumentar: SNS, remunerações da setor público, pensões, novas prestações sociais (creches gratuitas, passes sociais gratuitos, etc.), subvenções habitacionais, sem falar nos custos da dívida pública, em consequência do aumento da taxa de juros pelo BCE.

Conjugando as duas coisas, fácil é verificar que num prazo não muito afastado pode verificar-se o regresso em força do défice orçamental e do aumento da dívida pública.

3. Neste contexto, avançar para uma redução substancial dos impostos, nomeadamente do IRS, como propõe o PSD e é aceite em parte pelo PS, pode não ser uma solução muito prudente, sobretudo por parte do segundo, quer porque o consequente aumento do poder de compra iria travar o necessário combate à inflação, quer porque seria muito penoso politicamente para o PS ter de vir depois a cortar no Estado social por razões financeiras.

Justifica-se sem dúvida a redução do peso da tributação dos rendimentos do trabalho, bastante mais elevada do que a dos rendimentos do capital, mas a dimensão de tal redução deve ser devidamente ponderada e se possível compensada com outras fontes tributárias, por exemplo recuperando a proposta do imposto sobre as sucessões e doações de elevado montante (que o PS apresentou em 2015, mas que depois deixou na gaveta), aumento dos impostos e taxas sobre os automóveis (IUC, portagens, generalização do estacionamento pago) e dos impostos e taxas ambientais.

Em suma, a redução do IRS deve ser enquadrada num exercício de reforço da equidade fiscal.