terça-feira, 6 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): Presidencialização do sistema político?

1. Estando de acordo com a tese principal deste artigo de J. Conde Rodrigues sobre a função presidencial entre nós - a saber, que «num Estado de Direito, a vontade do titular [de um órgão político] nunca se deve sobrepor à norma [constitucional]» -, já não o acompanho, porém, quanto à leitura do sistema de governo constitucionalmente estabelecido desde a revisão constitucional de 1982.

Na minha opinião, a alteração principal (mas não única) dessa revisão nessa área - que foi a de abandonar a responsabilidade política do Governo perante o PR, perdendo este o poder de demissão discricionária do executivo - não foi somente um «afastamento ligeiro» em relação ao modelo semipresidencial francês, como entende o autor, mas sim uma substancial alteração, que retirou ao sistema de governo a "natureza mista" que tinha na versão originária da Constituição, em que o Governo dependia politicamente tanto da AR como do PR.

2. Com efeito, com essa alteração, o Governo passou a ser o único titular da condução política do país e a derivar a sua legitimidade política das eleições parlamentares, respondendo politicamente somente perante o parlamento - preenchendo, portanto, as condições básicas do sistema de governo parlamentar -, e o PR passou a ser um "poder moderador" neutral, exterior à dialética Governo-oposição, não compartilhando do poder executivo e não podendo interferir na orientação política e na atuação do Governo e ficando encarregado sobretudo de velar pelo regular funcionamento das instituições.

No quadro constitucional vigente - que obviamente vincula o titular de Belém -, este não governa nem cogoverna, nem tem tutela política sobre o Governo. Em suma, a revisão constitucional de 1982 retirou ao sistema de governo a principal característica do chamado "semipresidencialismo", em sentido estrito, que é, no dizer de vários autores, o "executivo dual"

Por isso, a chamada "presidencialização" do sistema de governo, por que alguns dirigentes políticos anseiam e que alguns comentadores aplaudem, não tem cabimento constitucional.
 [Mudada a rubrica]

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Era o que faltava (9): Boas causas não justificam todos os meios

Pelos vistos, chegou até nós o movimento anti-SUV dos "tire-extinguishers", que atacam os seus alvos, esvaziando os pneus das viaturas e deixando uma nota afixada no para-brisas a justificar o ataque. 
O curioso é que a PSP publicou uma nota a dizer que até agora não teve queixas e que entende que tais ações não constituem crime. Ora, segundo o Código Penal, pratica crime de dano «quem (...) tornar não utilizável coisa (...) alheia», o que, para um não-penalista, como eu, parece ser o caso, visto que a viatura fica obviamente inutilizável até à susbstituição das rodas esvaziadas, o que pode não ser fácil, se for mais do que uma. 
Em todo o caso, seja crime ou não, e embora concordando com a crítica aos SUV, pelo seu excessivo consumo de energia, não posso aceitar que essa crítica possa justificar estas formas de "ação direta" de "ativistas" autoerigidos em justiceiros do clima, tal como ja se tinha verificado na ocupação de escolas na recente greve dos estudantes pelo clima. A complacência policial só encoraja estas condutas à margem da lei.

domingo, 4 de junho de 2023

Guerra na Ucrânia (56): O tempo do compromisso ainda não chegou

A imediata rejeição ocidental do plano de paz apresentado numa conferência internacional pelo ministro da defesa da Indonésia (e provável presidente do país no próximo ano) - que propõe um cessar fogo monitorizado pelas Nações Unidas e um referendo nos territórios em disputa, e que, no essencial, converge com a minha própria sugestão de há tempos - mostra que o tempo do compromisso ainda não chegou na guerra na Ucrânia e que os aliados desta continuam a desconsiderar inteiramente as duas principais razões russas para o invasão, ou seja, a sua própria segurança, face ao cerco da Nato, e a segurança da população russófona no leste da Ucrânia, durante anos hostilizada por Kiev.

Não sendo previsível superar este impasse no curto prazo, só resta esperar a continuação indefinida das hostilidades, e das suas vítimas, sem excluir o risco de uma escalada bélica...

Adenda
Um leitor pergunta porque é que «todas as propostas de mediação do conflito vindas de terceiros países são logo apelidades de "pró-russas" e liminarmente rejeitadas não só pela Ucrânia, o que se compreende, mas também pelos EUA e pela UE». Penso que os países da Nato, que começaram por boicotar as conversações inicialmente realizadas entre os beligerantes sob a égide da Turquia, forçando a Ucrânia a abandoná-las, continuam fixados na idea de que é possível vencer a guerra, incluindo a recuperação da Crimeia, humilhando política e militarmente a Rússia. Uma ideia que pode ser muito perigosa...

sábado, 3 de junho de 2023

Mais União (73): A Polónia, de mal a pior

A nova lei polaca que cria uma comissão, de nomeação parlamentar, para investigar e punir a alegada "influência  russa" ou as supostas posições "contra a segurança da Polónia", com poderes para suspender durante anos titulares de cargos políticos ou administrativos, é um puro instrumento de perseguição política da oposição ao atual governo e tem por alvo imediato o líder da oposição democrática, Donald Tusk, da Plataforma Cívica, não podendo deixar de ser qualificada como um gravíssimo atentado ao Estado de direito naquele País.

Depois da subversão da independência judicial, devidamente sancionada pela União Europeia, incluindo o TJUE, por atentado aos seus valores fundamentais, esta celerada lei constitui uma provocação política de alto gabarito. A reação da União não pode limitar-se a uma frouxa posição da Comissão europeia. O Parlamento Europeu tem de assumir a sua responsabilidade política na defesa dos princípios constitucionais da União, não podendo deixar de denunciar mais este passo na transformação da Polónia num Estado policial, ao serviço da perseguição e da repressão política da oposição

Terra brasilis (11): Atavismo de esquerda

O governo de Lula da Silva acaba de comunicar à Organização Mundial do Comércio (OMC) que recua na adesão do País ao tratado plurilateral sobre compras públicas, que abre o mercado de compras do Estado (bens, serviços, concessões, etc.) entre os países contratantes. Paralelamente, o Governo anunciou também reservas quanto ao mesmo capítulo no acordo de comércio entre o Mercosul e a UE, ainda pendente de conclusão (o que esta posição brasileira não vai facilitar...).

A resistência, sob pressão das empresas domésticas, à abertura do mercado interno de compras públicas à concorrência de empresas de outros países tem duas consequências nefastas: (i) aumenta o seu custo para o orçamento do Estado, penalizando as contas públicas, e (ii) veda o acesso das melhores empresas nacionais, numa base de reciprocidade, ao importante mercado de compras públicas dos países desenvolvidos (como a UE), prejudicando o seu crescimento e o das exportações nacionais. 

Infelizmente, o protecionismo comercial e a hostilidade contra a concorrência externa contam-se entre os mais arreigados atavismos ideológicos da esquerda, e não somente no Brasil.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (36): O poder desestabilizador

1. Acusando o Presidente da República de «estar ele próprio a transformar-se num fator de instabilidade [política]», e de «estar obcecado com eleições antecipadas e crise política» - tendo falado em dissolução parlamentar cerca de 20 vezes (!!) nos últimos meses -, o colunista do Jornal de Negócios, Pedro Sousa Carvalho, invoca um recente estudo universitário sobre os custos de uma crise política, baseado em mais de cem casos, calculando que «cada evento de mudança de governo reduz a taxa de crescimento anual do PIB per capita real em 2,39 pontos percentuais [em média]» - o que é uma perda impressionante.

Ora, mesmo que a crise política acabe por não se consumar, parece evidente que o clima prolongado de instabilidade política alimentado pelo PR e o receio de que a crise venha a ocorrer afetam, só por si, o clima de confiança ecónomica, com impacto negativo no crescimento económico.


2. Tal como outros autores, desde há muito que qualifico como "poder moderador" o papel do PR no triângulo dos órgãos do poder político previstos na Constituição, junto com a AR e o Governo, o qual consiste designadamente em velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições democráticas, incluindo o respeito pelos poderes constitucionais do Governo e pelos direitos da oposição.

A missão constitucional do Presidente deve estar, por isso, ao serviço da estabilidade política e do cumprimento dos mandatos políticos, prevenindo os fatores de instabilidade e ajudando a superá-los, quando surjam.  Em vez disso, porém, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se vindo a tornar um fator quotidiano de instabilidade, por causa do seu "ativismo presidencial" à margem da Constituição, que afeta o desempenho governativo e esvazia o papel da oposição, através da permanente ingerência pública nos assuntos governativos, da referida obsessão com a dissolução parlamentar e do mais recente frenesi sobre uma remodelação governamental (que só ao PM cabe decidir).

Infelizmente, em vez de poder moderador, o atual PR tem preferido converter-se em verdadeiro poder desestabilizador -, com os inerentes custos para o País.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Praça da República (74): A política criminal pertence ao foro político

Além de inconstitucional, esta ideia do PCP de transferir para o Ministério Público a definição das prioridades da política criminal não faz nenhum sentido numa democracia representativa, como a nossa, baseada na separação de poderes e, em especial, na separação entre política e justiça.

Em primeiro lugar, tal proposta vai contra norma explícita da Constituição (art. 219º), que atribui a definição da política criminal aos órgãos de soberania competentes, ou seja, a AR e o Governo, ao qual incumbe a conduta da política geral do País e que por ela responde perante aquela; segundo, essa proposta retiraria da esfera do debate e da responsablidade política essa importante política setorial, confiscando aos cidadãos o poder de pedir contas por ela; por último, ela transformaria a PGR num órgão político, para o que carece obviamente de legitimidade democrática, passando a política criminal a ser objeto, irresponsavelmente, de disputa sindical dentro do MP. 

Num Estado de direito democrático, o MP executa, mas não pode definir, a política criminal, que pertence ao foro político. É a maioria parlamentar-governamental que deve responder por ela perante o País, no final do seu mandato.

Adenda
Um leitor objeta que «em Portugal, é de facto o Ministério Público quem decide o que investiga ou deixa de investigar, quando e como lhe apetece. Aparentemente, o MP manda em si próprio; aliás, cada procurador manda em si próprio e ninguém manda neles, nem a própria Procuradora-Geral controla o que eles fazem». Estou inteiramente de acordo: o MP define as suas próprias prioridades, sem ser "chamado à pedra" pela Assembleia da República e pelo Presidente da República, que deve velar pelo regular funcionamento das instituições (sendo ele, aliás, quem nomeia e demite o/a PGR, sob proposta do Governo). No fundo, com esta proposta, o PCP, que tem um peso sindical desproporcionado no MP, quer "legalizar" essa situação, à margem da Constituição e da lei...

Revisão constitucional (7): Obviamente rejeitada!

A proposta do PSD de introduzir no sistema político-constitucional mais um órgão nacional consultivo, a acrescentar ao CES, designado como Conselho da Coesão Territorial e Geracional (sic!), era uma das ideias mais estapafúrdias e demagógicas apresentadas nesta revisão constitucional

Que ela tenha sido incluída no projeto de revisão constitucional do PSD, tal poderia ser eventualmente atribuído a alguma precipitação na elaboração do projeto; mas que tenha sido defendida pelos seus autores como se fora uma prioridade do partido, não deixa de ser preocupante sobre o sentido de responsabilidade institucional de um partido fundador do atual regime constitucional, há quase meio século.

Obviamente, só podia ter como destino a rejeição liminar!

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Memórias acidentais (22): Carlos de Oliveira

1. Acabo de ver na RTP1 o filme a Hora dos Lobos, realizado por Maria João Luís, baseado no romance de Carlos de Oliveira, Alcateia, de 1944. 

Apaixonei-me cedo, logo nos anos 60 do século passado, pela obra deste escritor (incluindo a Alcateia, que ele depois "enjeitou"), não somente pela singularidade da sua escrita no panorama da literatura neorrealista (Casa na Duna, Uma Abelha na Chuva, etc.), mas também pela evocação da paisagem geográfica e humana da Gândara, que me era familiar, pelas frequentes deslocações de bicicleta desde a minha adjacente aldeia bairradina até Cantanhede e à praia de Mira, por entre pinhais e lagoas perdidas no meio deles.

Por isso constituiu para mim um grande momento a oportunidade de o conhecer pessoalmente, em 1975, numa visita à sua casa em Lisboa - acompanhado do escritor Jorge Reis (autor de Matai-vos uns aos outros, 1962), que também só conheci depois da Revolução, no regresso do seu longo exílio em Paris. Recordo com emoção essas horas de conversa, ouvindo-o recordar os tempos de Coimbra e da Gândara dos anos 40, e o ambiente cultural e político que gerou a obra literária que eu tão bem conhecia e tanto admirava

2. Em 1982, a revista Vértice  - uma revista crucial na história do neorrealismo, de que ele fora colaborador, como todos os demais escritores identificados com o movimento -, de cuja redação eu era membro desde o final dos anos 60, resolveu organizar um número especial de homenagem a Carlos de Oliveira, falecido no ano anterior, que ajudei a planificar e para o qual contribuí com um estudo, intitulado Paisagem Povoada: a Gândara na obra de Carlos de Oliveira.

Muitos anos depois, em 2003,  tive oportunidade e o gosto de reeditar em livro uma versão revista desse texto, numa edição da Câmara Municipal de Cantanhede, acompanhada de uma antologia de textos seus (a começar pela Alcateia) e ilustrada com fotos minhas da região gandaresa. 

E, sempre que posso, regresso ao prazer da leitura da Finisterra ou da Micropaisagem, que estão entre o que de melhor nos legou o neorrealismo, no romance e na poesia

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Conhecer Coimbra (1): Quando não sobra uma pedra...

Estive hoje nesta palestra sobre o antigo castelo de Coimbra, da arquiteta Teresa Anjinho, uma especialista na história das fortificações da cidade, que conseguiu reconstruir a sua imagem no passado.

Não se pode ficar indiferente ao facto de não ter restado uma pedra à vista da imponente fortaleza, depois da sua destruição ao longo dos séculos e, por último, para dar lugar à horrenda obra da nova cidade universitária sob o Estado Novo, nos anos 50 e 60 do século passado, a cuja fase final ainda assisti - o maior dos crimes de lesa-património da ditadura. 

Como é que um regime nacionalista e tradicionalista, que alegadamente cultivava o legado histórico e as glórias passadas, não hesitou em arrasar quase toda a velha cidade alta, incluindo igrejas, colégios universitários e o que restava da muralha e do velho alcácer da cidade!?

Memórias acidentais (21): Amizades improváveis

1. Na sua habitual e excelente coluna sobre livros e escritores na "Revista" do Expresso de hoje, o ex-editor Manuel Alberto Valente, meu condiscípulo no curso de direito em Coimbra, nos anos 60 do século passsado, recorda um episódio dessa época com Francisco Lucas Pires, igualmente estudante de direito, o qual, sendo candidato proeminente da lista derrotada da direita estudantil nas eleições para a direção da AAC, em 1965, decidiu ir felicitar os vencedores da lista de esquerda, o que, no ambiente politicamente crispado da academia sob o salazarismo, era um gesto de nobreza política pouco comum.

Esse episódio com aquele que, após o 25 de Abril, se viria a notabilizar politicamente (primeiro como militante e depois presidente do CDS, do qual viria a sair, para aderir ao PSD nos anos 90), fez-me recordar um dos momentos mais tocantes da minha longa relação de amizade com ele, apesar das fundas divergências políticas no início, ele na direita nacionalista radical e eu na esquerda marxista. Já depois de licenciados, e ambos assistentes da Fduc na mesma secção de Direito Público, passámos a conviver lado a lado diariamente numa das salas de estudo da Faculdade, preparando as nossas teses do "curso complementar" da licenciatura, o mestrado de então, o que gerou uma relação de cumplicidade pessoal nessa época pouco provável.

2. Um certo dia, em 1968, convidei-o a ir ao meu quarto de estudante para buscar um livro em que ele estava interessado. Como era frequente nessa altura nos estudantes de esquerda, o meu quarto estava forrado de cartazes políticos, incluindo, no meu caso, grandes retratos de Che Guevara e de Ho Chi Min. 

Não estando claramente à espera, ele ficou por momentos especado à entrada, olhando as paredes, e depois dessa hesitação, declarou num tom grave: «Pois, a grande diferença é que nós, à direita, não temos os ícones heroicos nem as gestas revolucionárias que vos mobilizam; é por isso que a nossa luta é muito mais ingrata». Foi a minha vez de parar para meditar sobre aquela inesperada reflexão, que registei para sempre.

Depois de 1974 a vida voltaria a juntar-nos em outras circunstâncias, como no tardio serviço militar nas Caldas da Rainha ou, depois, na Assembleia da República, frente a frente, ele na bancada do CDS, eu na do PCP. Mas o respeito mútuo e a estima recíproca nascidos em Coimbra ficaram para sempre.

Meio século depois, dez anos após o seu prematuro desaparecimento, não deixei de lhe prestar publicamente a homenagem pessoal que lhe devia.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Corporativismo (43): Uma reforma que morre na praia?

O Governo aprova hoje o primeiro pacote de projetos de revisão dos estatutos das muitas ordens profissionais que proliferaram entre nós nas últimas décadas, cujo ponto fulcral é a revisão da esfera de "atos próprios", ou seja, exclusivos, de cada profissão, cuja redução é essencial para levar a bom termo esta grande reforma na prestação de serviços profissionais qualificados, que é essencial nas economias de mercado contemporâneas. 

Mas as primeiras indicações não são tranquilizadoras, com a notícia de que, perante os protestos das respetivas ordens, o Governo recuou em relação aos cortes inicialmente previstos em relação ao atual monopólio profissional dos contablistas e dos psicólogos.

Se este espírito de cedência às corporações se verificar também em relação às profissões mais impactantes, como os advogados e os médicos, então é de recear que se mantenham as principais barreiras à liberdade profissional e à concorrência na prestação de serviços profissionais, por efeito da "captura" do Estado pelas principais corporações profissionais, o que quer dizer que a anunciada grande reforma pode "morrer na praia".

Adenda
Um leitor aconselha-me a não depositar muitas esperanças nessa reforma, uma vez que o Goveno e a AR estão cheios de membros das ordens (advogados, economistas, engenheiros, etc.), que naturalmente «não vão tomar decisões contra elas e contra os interesses coletivos da sua profissão». Entendo o argumento, mas penso que, apesar da pressão dos lobbies corporativos, as coisas políticas não são assim tão "mecânicas"...

Revisão constitucional (6): Tiro no pé

1. A ameaça de bloquear a revisão contitucional brandida por Luís Montenegro, alegando a indisponibilidade do PS para aprovar muitas das propostas do PSD, não faz nenhum sentido e não mostra grande responsabilidade democrática por parte de um líder da oposição que ambiciona vir a chefiar o Governo do País.

Antes de mais, por definição, a revisão constitucional takes two, sendo um exercício que, dada a necessária maioria de 2/3, exige a convergência dos dois partidos, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto ao seu âmbito e extensão, quer quanto às alterações a adotar. Se o PS não aprova certas propostas do PSD, a vice-versa também é verdadeira. O PS até já cedeu muito, quando aceitou discutir propostas de alteração que caem manifestamente fora do âmbito inicialmente admitido para a revisão constitucional.

A revisão constitucional depende muito da capacidade de transação dos dois partidos e da sua disponibilidade recíproca para conceder nuns pontos para obter ganhos noutros. A birra partidária não faz parte da arte de negociar uma revisão constitucional.

2. De resto, o bloqueamento da revisão constitucional, por não ser suficientemente ambiciosa nos termos do PSD, implicaria que a Constituição ficasse como está, sem alterações, o que obviamente não pode ser o desejo do partido. O PCP agradeceria a cortesia.

Pessoalmente, entendo que, estando a Constituição quase a celebrar meio século e justificando-se o seu aggiornamento, tinha cabimento uma revisão constitucional bastante extensa, tendo-me dedicado a coligir e a fundamentar a minha proposta pessoal, que ainda me proponho publicar. Mas julgo que a revisão se justifica, mesmo que ela se limitasse aos dois ou três pontos sobre que existe largo consenso, a saber, permitir a suspensão da liberdade pessoal de movimentos em caso de crise sanitária grave, permitir o uso de metadados das comunicações pessoais na investigação criminal, e permitir a punição penal de maus tratos a animais domésticos.

Numa revisão constitucional nenhum partido pode obter tudo o que pretende, pelo que a ameaça de boicote constitui sempre um "tiro no pé".

Adenda
Um leitor comenta que «falta a Montenegro a dimensão de estadista», sem a qual a sua liderança política do PSD se limita a um taticismo sem vocação estratégica.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Aplauso (23): Notável desempenho

1. Há que saudar o Governo, e em especial o ministro das Finanças, pela descida significativa do peso da dívida pública, retirando Portugal do comprometedor trio dos países mais endividados da UE (junto com a Grécia e a Itália). De resto, o FMI prevê que esta descida não fique por aí, como mostra o gráfico junto.

Essa evolução traduz-se naturalmente na melhoria do rating pelas agências, na descida relativa do spread da emissão de dívida e na poupança de muitos milhões em juros mais baixos, melhorando o saldo orçamental - um círculo virtuoso, portanto. 

Sendo a descida do peso da dívida pública e a disciplina orçamental dois objetivos sempre apoiados neste blogue - como mostram as séries Ai, a dívida e Ai, o défice - é com particular satisfação que saúdo este notável desempenho orçamental.

2. É evidente que este bom resultado na frente financeira deve muito ao aumento das receitas públicas resultante da favorável evolução da economia - taxa de crescimento em alta (entre as mais elevadas da União), taxa de emprego elevada, confortável saldo da balança externa -, que os investimentos financiados pelo PRR, mas também o crescente investimento direto estrangeiro, têm ajudado a obter. 

Se a isto somarmos a descida consistente da inflação e a progressiva recuperação do poder de compra dos portugueses, é caso para dizer que a situação económica e social supera as melhores expectativas

3. Neste quadro económico e social favorável, a condição do Governo seria politicamente invejável, não fora a comprometedora perturbação política decorrente do inquérito parlamentar à TAP, encarniçadamente explorada pelas oposições, à falta de outros argumentos.

Em todo o caso, toda a conversa sobre eleições antecipadas, soprada a partir de Belém, afigura-se assaz artificial, não somente por isso ir ao arrepio dos referidos êxitos do Governo e pôr em risco a sua continuidade, mas também porque o principal partido da oposição não dá mostras de ser uma verdadeira alternativa, nem só nem (mal) acompanhado, o que ajuda a explicar o nervosismo que reina nas suas hostes (e nos seus numerosos comentadores mediáticos), que a recente intervenção militante do seu antigo líder, Cavaco Silva, apenas veio sublinhar.

Adenda
Um leitor pergunta se também acho «ilegítima a intervenção da Cavaco Silva». Ilegítima, não considero; mas, sem dúvida, pouco curial para um antigo PR, que, a meu ver, deve manter alguma reserva na expressão de posições político-partidárias. Não tendo sufragado também a militante ação de Mário Soares contra o Governo de Passos Coelho (embora ele não o tivesse feito num evento oficial do PS), entendo que para quem foi "presidente de todos os portugueses", voltar a vestir o fato de líder partidário e regressar ao combate político-partidário, aliás em termos agressivos e sectários, não me parece o modo mais apropriado de um ex-Presidente honrar o seu legado político de mais alto magistrado da República.

Adenda 2
Um amigo meu, igualmente conservador em matéria orçamental, receia que «uma vez terminado o novo ouro do Brasil que é o PRR, regressem o défice e a dívida como antes». O receio é legítimo, e é por isso que tenho alertado contra as medidas imprudentes que levam ao aumento substancial da despesa estrutural, designadamente aumentos de pensões e de salários do setor público (professores, pessoal de saúde, etc.) insustentáveis a longo prazo.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37) : Teoria da (ir)responsabilidade política

1. Referindo-se ao "caso Galamba" (embora sem o mencionar), o Presidente da República afirmou que não se pode ter poder político sem responsabilidade. Tem razão: num Estado de direito democrático e numa democracia representativa, o poder político, nomeadamente o Governo, como poder executivo, está sujeito a responsabilidade política, tendo de prestar contas e podendo ser sancionado.  

No entanto, nos termos da Constituição, numa democracia parlamentar, como a nossa, o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente da República, que o não pode demitir nem censurar pela sua atividade política, mas sim perante o parlamento, e os próprios ministros, individualmente, podem ser alvo de interpelações ou de inquéritos parlamentares sobre a sua conduta política (como sucede neste momento ao referido ministro). De resto, as falhas graves de um ministro, se não for demitido, podem levar, em última instância, à apresentação de uma moção de censura ao próprio Governo, tendente à sua demissão. 

Com efeito, se há um poder sem imunidade política no nosso quadro político-constitucional, é o Governo, em geral, e os ministros, em particular.

3. Inversamente, quem não respeita o tal postulado poder político = responsabilidade política é o próprio inquilino do Palácio de Belém, que não responde politicamente pelos significativos poderes constitucionais que exerce, pois não pode ser escrutinado nem censurado pela AR, nem muito menos ser demitido ou ver o seu mandato revogado.

Por isso, além de dever exercer os seus poderes constitucionais com moderação, o PR não pode ingerir-se no exercício dos poderes políticos e legislativos do Governo (ressalvado o poder de veto), nem posicionar-se como tutor político deste, como tem sucedido, visto que não compartillha da responsabilidade política do Governo, e este não pode invocar a tutela presidencial para se isentar da sua responsabilidade perante a AR.

Embora constitucionalmente isento de responsabilidade política, o PR deve atuar como se o não fosse.


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (21): Uma coisa e o seu contrário

Esta imagem foi colhida esta manhã no Diário Económico digital. Na notícia de baixo, às 7:00, informa-se que o IVA zero no cabaz de compras alimentares fez descer o custo deste em 11 euros; na de cima, escassos 12 minutos depois, dá-se curso à opinião de que o impacto daquela medida se reduz a «uns cêntimos». Óbvia contradição, que a proximidade temporal torna mais flagrante!

Eis os estragos que faz o jornalismo politicamente enviesado...

Pobre língua (26): Calinadas oficiais

Que pessoas ignorantes ou descuidadas usem "ter a haver com" em vez de "ter a ver com" na conversação corrente é preocupante. Mas que um serviço público central, como a direção executiva do SNS, incorra nessa calinada num comunicado oficial, isso brada aos céus!

Enquanto uns abencerragens continuam a lutar contra o Acordo Ortográfico, como se este fosse reversível e eles não tivessem o direito de não o usar, vão proliferando sem escândalo público atentados qualificados à correção linguística, como este e vários outros, os quais, pela sua frequência, mostram que a escola não está a cumprir a sua obrigação quanto ao ensino do Português. 

O que é especialmente inadmissível é que um serviço público faça publicar um texto sem revisão prévia por parte do seu responsável. O Ministério da Saúde deve corrigir imediatamente o texto e dar uma explicação pública.

Adenda 
Um leitor também acha estranho que o Diário de Notícias tenha transcrito textualmente essa passagem do comunicado oficial sem corrigir o disparate. A pior hipótese é não se terem apercebido do dislate...

Assim, não (3): Incoerência

Segundo o nosso comentariado económico, quando a economia vai mal, a culpa só pode ser do Governo; quando corre melhor do que o esperado, como agora, a causa só pode estar em fatores exógenos, apesar do Governo. 

Ora, como é bom de ver, a diferença de desempenho das economias da UE deve-se essencialmente  a diferentes conjunturas e circunstâncias nacionais, entre as quais se contam obviamente a política económica e a política orçamental (investimento público, incentivos públicos, contratos públicos, etc.). Por isso, mesmo não sendo hoje o Estado um agente económico decisivo, nem tendo uma tutela sobre as empresas, não faz nenhum sentido defender que o desempenho económico é alheio à acção governativa, para o bem a para o mal.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Concordo (27): Novas medidas antitabagistas

As propostas do Governo de novas medidas de restrição quanto aos locais de consumo e de aquisição de tabaco não visam somente refinar a proteção dos não-fumadores (por exemplo, a proibição de fumar em esplanadas ou na entrada de de estabelecimentos de uso coletivo), mas também travar o seu consumo e reduzir a adicção tabágica, por causa dos enormes custos do tabaco para o sistema de saúde, que a coletividade, incluindo os não fumadores, tem de suportar.

Parecendo-me necessárias e proporcionais para atingir os interesses públicos visados, e ficando longe de uma proibição generalizada de fumar no espaço público, entendo ser totalmente descabida a acusação de "fascismo higiénico", com que alguns críticos pretenderam fulminá-las.

Adenda
Penso que os deputados do PS que se preparam para "suavizar" as propostas governamentais deveriam apresentar uma declaração de como não são fumadores, nem tem outro interesse adverso ao regime proposto. Convém evitar conflitos de interesses.

Adenda 2
Um leitor entende que eu devo corrigir "adicção" para "adição", invocando em seu favor o uso corrente desta fórmula na imprensa. Mas não tem razão, como expliquei aqui. Infelizmente, quando o erro linguístico se torna dominante, transforma-se em norma...

sábado, 13 de maio de 2023

+ Europa (72): A AR à frente na cooperação parlamentar com a Comissão

1. Neste estudo sobre o papel dos parlamentos nacionais no funcionamento da União, a nossa AR surge destacada à frente no "diálogo político" com a Comissão Europeia, medido pelo número de tomadas de posição enviadas. Essa dianteira mantém-se mesmo se somarmos a contribuição das duas câmaras nos muitos países de bicamaralismo parlamentar (Alemanha, França, Itália, etc.). 

É um notável desempenho, que honra a AR e que muito deve ao zelo da sua Comissão de Assuntos Europeus e à liderança desta.

2. No sistema de "federalismo cooperativo" da UE, é crucial a intervenção das instituições políticas nacionais na ação das instituições da União, não se limitando à participação dos governos nacionais no Conselho Europeu e no Conselho da União. Também os parlamentos nacionais, como titulares do poder legislativo, devem poder transmitir as suas posições quanto ao exercício do poder legislativo da União junto das competentes instituiações (Comisssão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho da União).

O Tratado de Lisboa, que inclui um protocolo específico sobre o assunto, veio institucionalizar e reforçar esse papel dos parlamentos nacionais, tanto quanto às iniciativas legislativas, como, em especial, no escrutínio do respeito pelo princípio da subsidiariariedade (no exercício das competências partilhadas com os Estados-memmbros). 

É bom saber que a AR leva a sério esse papel na construção da União.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Corporativismo (43): Reduzir os "atos médicos"

É de esperar que a Ordem dos Médicos, invocando a sacrossanta reserva de "ato médico", conteste esta orientação de dispensar a intervenção de obstetra nos partos de baixo risco, mas a medida é de aplaudir, aliviando a pressão sobre os blocos de partos devida à insuficiência de médicos.

Esta decisão constitui um bom exemplo da necessária redução dos "atos próprios" (isto é, exclusivos) das profissões "ordenadas" (ou seja, organizadas em ordem profissional), que há muito venho defendendo. Penso, aliás, que no caso da saúde, seguindo o exemplo do Reino Unido, há muito para fazer entre nós na redução do monopólio médico, em favor de enfermeiros e técnicos de saúde.

Espero que a Autoridade da Concorrência não deixe de assinalar esse ponto na revisão do estatuto da Ordem dos Médicos, que se torna necessária para pôr em vigor a nova lei-quadro das ordens profissionais.

Adenda (14/5)
Como eu acima antecipara, a OM não tardou a manifestar-se contra a medida, mostrando-se menos preocupada com a boa prestação do SNS do que com a invasão do seu monopólio corporativo. Este desafio constitui um bom teste sobre a coerência e firmeza do Governo quanto ao anunciado propósito de redução do excesso de "atos próprios" das profissões reguladas entre nós. Infelizmente, a ter em conta o tradicional "temor reverencial" do Governo perante as Ordens, é de temer um recuo...

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guerra na Ucrânia (55): Cancelamento

Era de temer que a passional onda antirrussa desencadeada no Ocidente pela invasão da Ucrânia, que logo se manifestou no cancelamento da atuação de artistas e desportistas russos, viesse a dar lugar a atitudes como esta do Reitor da Universidade de Coimbra, que, com base na denúncia pública de dois cidadãos ucranianos, sobre alegada "propaganda pró-Putin", despediu sumariamente um professor russo do departamento de estudos russos da Faculdade de Letras, rescindindo imediatamente o seu contrato (aliás, gracioso), sem nenhum processo de averiguação, nem audição do acusado.

Neste caso, a simples denúncia de posições filorrussas legitimou a expedita punição, com despedimento, do delito de opinião, sem contraditório, de nada valendo o vínculo contratual nem a tradicional garantia da liberdade académica. Como é bom de ver, quando a exclusão ideológica chega à academia, preparemo-nos para o pior...

Adenda
Como diz um leitor, na "caça às bruxas" anticomunista do senador MacCarthy nos EUA, a seguir à Guerra, ainda havia acusação e processo público, o que agora se dispensa nesta «purga antirrusa». 

Adenda 2 (14/5)
Outro leitor lembra que na ditadura do Estado Novo o banimento de professores por motivos político-ideológicos era «feito pelo Governo, sob denúncia da PIDE, e não pelas próprias universidades, abusando da sua autonomia»Tem razão. O que não mudou, porém, hoje como ontem, é a cumplicidade, pelo silêncio, da generalidade da academia perante estes atos sumários de exclusão...

Adenda (3) (18/5)
Concordo com o leitor que comenta que, «se, em vez de um reitor de direita a despedir sumariamente um professor por alegada propaganda pró-Putin [aliás, entretanto desmentidos pelos alunos], fosse um reitor de esquerda a despedir um professor por alegada propaganda pró-Trump, o caso daria seguramente a iradas acusações de perseguição política nas televisões e mesmo na AR». Sim, a tradicional duplicidade de critérios...

O que o Presidente não deve fazer (37): Direito de objeção política contra a Constituição, não!

1. É manifesto que o PR só vetou novamente a lei da despenalização da eutanásia, com argumentos deliberadamente especiosos, para não a promulgar voluntariamente, "convidando" a AR a reaprovar o diploma, o que esta vai fazer, tornando a promulgação constitucionalmente obrigatória. 

Sendo esta uma via constitucionalmente aberta ao PR, para se descomprometer politicamente em relação à lei, salvaguardando neste caso a sua oposição do foro religioso, não há nada a objetar a este "esquema" presidencial de veto instrumental. Embora "forçada", não deixa de haver promulgação presidencial, como é devida.

2. O que não faria nenhum sentido, constituindo uma violação qualificada da Constituição, seria admitir que o PR ainda pudesse recusar-se a promulgar o diploma, invocado uma objeção de consciência

Primeiro, enquanto tais, no exercício dos seus poderes constitucionais, os titulares de cargos políticos não podem naturalmente invocar e prevalecer-se de direitos que, por definição, só cabem aos cidadãos. Por exemplo, enquanto cidadão, MRS pode praticar atos de culto religioso, mas não enquanto PR, dado o princípio da laicidade do Estado. Segundo, ao promulgar a lei, despenalizando a eutanásia em certas circunstâncias, muito exigentes, o PR não pratica nenhum ato de eutanásia nem obriga ou autoriza ninguém a praticá-lo, tanto mais que os médicos e outro pessoal de saúde, esses sim, têm assegurado o direito à objeção de consciência.

Por conseguinte, é manifestamente descabido invocar um direito presidencial de objeção de consciência como fundamento para incumprir uma, aliás taxativa, obrigação constitucional de respeitar a soberania legislativa da AR -, o que abriria a porta ao puro arbítrio presidencial à margem da Constituição.

3. Também não teria nenhum fundamento constitucional a hipótese de substituir o PR pelo presidente da AR, para efetuar a promulgação (como sugere o autor da referida ideia). A Constituição só admite a substituição por "impedimento temporário" do PR, ou seja, por incapacidade para exercer o cargo, e não para a prática momentânea de um certo ato, como a promulgação. 

De resto, o Tribunal Constitucional, a quem compete verificar os impedimentos presidenciais, nunca poderia admitir essa ficção de impedimento pontual para a prática de certo ato presidencial, aliás constitucionalmente obrigatório.

Adenda
Um leitor comenta que, se um PR não puder de todo em todo, por pruridos religiosos, observar um princípio constitucional tão essencial como a soberania legislativa do peraarlamento, «só lhe resta abandonar o cargo e dar lugar a quem o possa fazer». Subscrevo.

Adenda 2
Como era de prever, o PR afastou prontamente qualquer tergiversacão sobre a promulgação, pelo que a questão não passou de excesso de imaginacão de um constitucionalista. Ainda bem!

terça-feira, 9 de maio de 2023

Amanhã vou estar aqui (15): A questão das ordens profissionais

E já amanhã que vai decorrer na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) este colóquio sobre a nova Lei-quadro das Ordens profissionais, onde intervenho junto com vários qualificados especialistas nesta temática.

Recorde-se que, além da geral oposição das ordens e do intenso debate político que susciou, esta importante reforma legislativa também foi contestada por alegada desconformidade constitucional, a qual, porém, foi afastada pelo Tribunal Constitucional.

Pela minha parte, aceitei o encargo de abordar a relação do Estado com as ordens, onde tenciono analisar a tradicional passividade oficial (com exceção da Autoridade da Concorrência) face à deriva corporativista que elas em geral têm protagonizado entre nós, na linha da minha série de posts neste blogue sobre o tema (o último dos quais AQUI).

O que o Presidente não deve fazer (36): Modo de litígio institucional

1. Este caso das objeções presidenciais oficiais contra um diploma legislativo governamental sobre concurso de professores - que, no entanto, entendeu não poder vetar - culmina um prática inovadora desviante do atual PR que, desde o início, recorreu à promulgação com reservas, demarcando-se dos atos legislativos, como se, de outro modo, fosse considerado politicamente corresponsável por eles.

Ora, constitucionalmente, o PR não compartilha do poder legislativo com a AR e o Governo. Contrariamente ao que sucedia na monarquia constitucional, as leis não carecem de sanção (assentimento) do chefe do Estado. O atual poder de veto presidencial é um puro "poder negativo", obrigando o legislador a reconsiderar o diploma, pelo que a promulgação é um ato "por omissão", não traduzindo nenhuma concordância política presidencial com o diploma, nem expressa nem implícita. 

Por isso, o veto tem obviamente de ser justificado, mas a promulgação, não. A novel prática de "promulgação com reservas", pelo qual o Presidente regista objeções políticas aos diplomas que promulga, como se fosse colegislador, não tem cabimento constitucional, nem político.

Um manifesto abuso de poder.

2. Este caso é, porém, especialmente grave, na medida em que o PR vem denunciar oficialmente o Governo por não ter seguido uma insistente pressão presidencial para alterar o diploma, incluindo uma "proposta concreta", como se o PM tivesse uma obrigação de ceder. Tal como no caso da proposta de demissão do ministro Galamba, também desta vez o PR resolveu denunciar publicamente a rejeição das suas propostas pelo PM, como se fossem um desafio à sua autoridade.

Mas é justamente o contrário que sucede. O Governo não tem nenhuma obrigação de seguir os conselhos presidenciais, quando se trata de ingerência nos poderes constitucionalmente reservados ao executivo, seja a condução política do País, seja a demissão de ministros, seja o exercícío do poder legislativo, pelos quais ele não responde politicamente perante o PR, mas somente perante a AR e o país.

Manifestamente, apesar de ser uma traves-mestras do Estado de direito constitucional, a separação de poderes não goza de grande consideração em Belém.

3. Para agravar as coisas, acrescentando uma dose concentrada de veneno político, MRS resolveu dar foros oficiais à sua ideia de o Governo dever ceder na negociação em curso com os professores, aceitando uma «recuperação faseada do tempo docente prestado e ainda não reconhecido», o que constitui uma linha vermelha reiteradamente afirmada pelo Governo.

Além de não ter precedente nos anais da prática presidencial em Portugal, este golpe deliberado no poder negocial do Estado numa negociação sindical em curso não é somente uma inaceitável ingerência na condução da política governamental, constituindo também uma grosseira provocação política ao Governo.

Parece evidente que Belém entrou em modo de litígio institucional aberto contra o Governo - e que já não poupa as armas.

Adenda (11/5)
A. Homem Cristo no Observador:
 «Em termos de equilíbrios institucionais e separação de poderes, este comportamento do Presidente da República é incompreensível. Recorde-se: o Presidente não decide políticas públicas nem legisla. Neste campo, os seus poderes são de veto, para bloquear iniciativas legislativas, e, mais informalmente, de usar a sua magistratura de influência para sensibilizar os agentes políticos (governo e legisladores) — apontando problemas ou sugerindo soluções, mas não se imiscuindo no desenho das políticas públicas.»

 Subscrevo inteiramente.

Adenda 2
Daniel Oliveira no Expresso:
«O Governo pode desvalorizar esta nota, porque conseguiu a promulgação que desejava e não lhe interessa manter o foco no conflito com Belém. Mas se as relações entre a Presidência e o Governo estão definitivamente estragadas, vai ser ainda mais importante cumprirem as regras formais e constitucionais. E uma das mais óbvias é esta: o Presidente não legisla.»
É o mínimo que se pode dizer.

Adenda 3 (12/5)
Comentário de um leitor no Linkedin, onde republiquei este post: «Como não se pode destituir o Presidente, resta assinalar vigorosamente todos esses episódios, para que não se tornem numa prática subversiva da Constituição que outros Presidentes se sintam tentados a repetir no futuro.» É o que me move ao assinalá-los, perante a generalizada complacência dos partidos políticos e do comentariado, que vê nestes litígios institucionais uma mina para o seu "negócio". A minha ideia é não deixar passar a idea de uma "prática política incontestada" que pudesse vir a ser invocada como base de um costume constitucional.

domingo, 7 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (20): Um coro indiferenciado

Merece ser lido e meditado este artigo de J. Pacheco Pereira no Público que denuncia o lamentável alinhamento político da generalidade dos jornais e televisões na análise e comentário do recente confronto o entre o PR e o o PM sobre o "caso Galamba", em que indiferenciadamente os média "de referência" e a imprensa tabloide fizeram coro acrítico com as teses da direita política e ideológica. 

Como diz o autor, a crise política revelou uma óbvia "crise do jornalismo".

Onde para o pluralismo jornalístico entre nós?!

Era o que faltava (8): Financiamento público, benefício privado

Mais uma vez o lobby das escolas privadas vem reivindicar apoio financeiro do Estado aos seus alunos em paralelo com os do ensino público

Mas o argumento da "discriminação" é uma falácia. O Estado só tem a obrigação constitucional e política de financiar as escolas públicas e os seus alunos, não as escolas privadas (salvo as que beneficiam de "contratos de associação", em caso de carência de escolas públicas). Existe obviamente a liberdade (não um direito) de opção pelo ensino privado, mas por conta e risco de quem faz tal opção, não podendo depois vir reivindicar apoios de que naturalmente goza o ensino público.

De resto, além de não ser devido, o financiamento público do ensino privado é mesmo de considerar ilegítimo, na medida em que seja feito à custa da responsabilidade do Estado pelo financiamento do ensino público.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Corporativismo (42): A OA vai partir para a greve?

1. Lendo esta convocação para a luta contra a revisão do seu estatuto em conformidade com a nova Lei-quadro das ordens profissionais, a bastonária da Ordem dos Advogados parece ignorar que as ordens são entidades públicas criadas pelo Estado para desempenharem as tarefas que a lei lhes confere e que num Estado de direito as entidades públicas estão submetidas, de modo qualificado, ao princípio da legalidade, ficando por isso sujeitas a tutela governamental.

Sendo a OA uma entidade pública administrativa, a rebelião "sindical" contra a Lei-quadro - que a revisão dos seus estatutos, a aprovar também pela AR, tem respeitar e implementar - constitui um lamentável desafio à autoridade do Estado, e em especial à autoridade legislativa da AR. Estando ao serviço do interesse público, tal como definido pelo Estado, as ordens não são sindicatos nem grupos de defesa de interesses privados, não podendo, por isso, propor-se resistir ao cumprimento das leis.

2. O principal ponto contencioso tem a ver com a inevitável redução da esfera dos chamados "atos próprios" dos advogados, ou seja, dos atos que só eles podem praticar, excluindo outros profissionais, sendo óbvio que a OA quer manter intocável o generoso elenco legal atual.

Ora, parece evidente que se trata de um objetivo impossível, por várias razões: (i) a revisão dos atos exclusivos das profissões constitui um objetivo essencial da nova Lei-quadro, dado que o monopólio profissional injustificado se traduz numa óbvia restrição ilegítima da liberdade profissional; (ii) a Lei-quadro estabelece que nessa tarefa o legislador deve ouvir previamente a Autoridade da Concorrência, a qual não tem escondido a sua hostilidade aos monopólios profissionais, por restrição manifesta da concorrência na prestação de serviços profissionais; (iii) a Constituição só reserva aos advogados o patrocínio forense, sendo este a única tarefa que, como tenho defendido (por exemplo, AQUI e AQUI), deve ser salvaguardada como competência exclusiva.

De resto, não há nenhuma justificação para que os demais "atos próprios" atuais  (consulta jurídica, assistência na negociação de contratos, etc.), embora continuando a ser competência dos advogados, não sejam abertos a outros profissionais, desde logo outros juristas, tanto ou mais habilitados para os praticarem. 

As coutadas profissionais devem ser excecionais e limitar-se ao mínimo necessário.

Adenda
Um leitor adverte que a luta contra a redução dos atos próprios dos advogados não é somente dos "descamisados" (sic), dado que os grandes escritórios obtêm grandes proveitos do patrocínio na celebração de contratos dos seus clientes. O que penso é que esses escritórios não temem a concorrência de outros possíveis prestadores de tais serviços

Adenda 2
O lema da OA inscrito no seu escudo é "A Lei". Mas, pelos vistos, está desde logo contra a lei que a regula. Contradição....

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Revisão constitucional (5): Incongruência do PS

1. Noto, com surpresa, que apesar de ter defendido uma revisão limitada da Constituição - concretamente quanto ao capítulo dos direitos fundamentais, única matéria sobre que apresentou propostas -, o PS está a participar na discussão de propostas de revisão sobre o sistema político - como se deduz desta notícia -, capítulo que explicitamente excluiu desta revisão.

Parece-me que, além de esquecer essa posição de partida, não faz nenhum sentido o PS discutir propostas de revisão em matérias sobre as quais não definiu posição e não tem propostas próprias para negociação, sujeitando-se a jogar nos termos definidos por outros partidos e perdendo, portanto, a liderança da revisão constitucional, como lhe competia.  Além disso, essa ampliação da latitude de revisão constitucional retarda a entrada em vigor das alterações que levaram o PS a dar-lhe luz verde, como a questão dos metadados e do confinamento pessoal por razões de saúde. 

Não dá para entender...

2. Em que ficamos? Os deputados do PS na CERC entraram em autogestão? 

Admito sem dificuldade que, num partido plural, pode haver posições diversas sobre a oportunidade, a amplitude e o sentido da revisão constitucional. Mas,  uma vez definida a posição partidária na sede competente, ela deve ser vinculativa para todos.

Confesso que, apesar de acompanhar de perto as posições políticas do PS, por razão de afinidade política, de vez em quando tenho dificuldade em perceber a sua coerência - como neste caso, que não versa sobre uma questão menor

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): A tutela sobre o Governo

1. Suponho que é a primeira vez, no sistema político-constitucional de 1976, que um Presidente da República faz saber publicamente que entende que um ministro deve ser demitido e que, depois, vem anunciar oficialmente que discorda da opção do Primeiro-Ministro de recusar o pedido de demissão entretanto apresentado pelo próprio Ministro em causa.

A razão para esta inovação é simples: até agora nenhum PR entendeu, como MRS, que detém um poder de superintendência e tutela política quotidiana sobre o PM, quer para efeitos de recorrente crítica e de recomendações públicas sobre a atividade governativa, quer para se permitir, como agora, censurar e propor publicamente a demissão de ministros.

Sucede que não existe nenhuma base constitucional para tal poder de tutela presidencial, pois o Governo não deriva a sua legitimidade política das mãos do PR nem é políticamente responsável perante ele, mas somente perante a AR. De igual modo, é domínio reservado do Primeiro-Ministro manter ou não a confiança nos seus ministros e decidir sobre eventual remodelação governamental.

2. Sou dos que pensam que os insólitos episódios ocorridos no gabinete ministerial do ministério das Infraestruturas questionam a credibilidade do Ministro, o qual, em condições normais, teria de sair. 

Por isso, penso que a surpreendente recusa do seu pedido de demissão resultará de uma decisão do chefe do Governo de não aceitar passivamente mais este grave passo na ingerência de Belém na esfera governativa e de não continuar a suportar discretamente, como até aqui, o abuso de poder presidencial, tornando-se conivente com a manifesta subversão do quadro constitucional sobre o sistema de governo (que venho denunciando há muito).

Como um ato público de "libertação" da indevida tutela presidencial, há que louvar a coragem política que revela. Resta saber se as circuntâncias comprometedoras deste caso permitem vindicar politicamente o confronto com Belém...

Adenda
Um coro de comentadores, desde o DN ao Correio da Manhã, veio qualificar a decisão de Costa como um "desafio" ao PR. Mas foi o contrário: foi MRS quem, num gesto sem precedente na nossa história constitucional democrática, veio desafiar o exclusivo da autoridade do PM sobre o seu governo, ao defender publicamente a demissão de um ministro em concreto. Nesta caso-limite, Costa decidiu rechaçar a descabida ingerência presidencial, a bem da separação de poderes. O seu a seu dono!

Adenda 2
Um leitor pergunta: «face às situações de abuso/desvio de poder [presidencial] assinaladas, acha que a CRP podia prever um mecanismo de "impeachment" do PR?». Entendo que não. Não sou favorável à figura do impeachment presidencial (salvo crime no exercício de funções, e por via judicial, tal como previsto na CRP) e continuo a pensar que os atos políticos, mesmo quando desconfrmes com a Constituição, só devem ser sindicáveis no plano politico. Entre o risco de atos inconstitucionais impunes e o risco da banalização da impugnação como arma de arremesso político (como se verifica no Brasil e noutros países), é preferível correr o primeiro.