sábado, 27 de janeiro de 2024

Causa palestina (7): O fim da impunidade israelita?

Além de ter aceitado investigar o possível genocídio em Gaza, indicando vário indícios nesse sentido, e de ter ordenado a Israel algumas importantes medidas cautelares - em particular destinadas à proteção dos civis -, a decisão preliminar do Tribunal Internacional de Justiça sobre a queixa da África do Sul inclui um grande triunfo para a causa palestina, quando reconhece que «os palestinianos parecem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso distinto e, portanto, um grupo protegido, ao abrigo do artigo 2.º da convenção sobre o genocídio», atribuindo-lhes identidade nacional própria, o que consubstancia manifestamente o direito ao seu próprio Estado, que Israel lhes quer negar.

Esta decisão não constitui uma advertência somente contra o Governo israelita, mas também contra os seus principais apoios políticos e militares, a começar pelos EUA, o Reino Unido e a UE, que têm sido politicamente coniventes com a sangueira que quotidianamente vitimiza centenas de palestinos inocentes. O silêncio de Washington e de Bruxelas sobre a decisão da Haia é em si mesmo comprometedor.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares (33): A "banha de cobra" do PSD

Propondo-se ultrapassar ao PS pela esquerda e competir com o BE em prometer dar tudo a todos, aliás sem indicar o aumento da despesa pública envolvida, o PSD mantém, porém, a promessa de baixar impostos e assegurar o equilíbrio orçamental.

Como é evidente, todavia, não é politicamente possível satisfazer este trilema político. A não ser que houvesse um substancial aumento do crescimento económico - o que não está nos augúrios dos astros -, o aumento da despesa pública só pode ser possível mediante a subida de impostos (e não a sua descida) e/ou o aumento do défice orçamental e da dívida pública.

Em desespero de causa e por puro oportunismo político, o PSD manda às urtigas os princípios políticos por que sempre se pautou: controlo da despesa pública, contenção da carga fiscal, frugalidade orçamental. Mas quem pode confiar num partido que renega, com este à-vontade, o seu credo político?

Contra a corrente (4): Pelo aumento das propinas

1. Estou inteiramente de acordo com esta opinião do Prof. Luís Aguiar-Conraria, que vem acrescentar um valioso argumento a favor do aumento das propinas no ensino superior.

Sempre fui a favor das propinas no ensino superior - que não é um serviço público universal como o ensino básico e secundário -, ao abrigo do princípio beneficiário-pagador, uma vez que o ensino superior é antes de mais um investimento dos estudantes no seu próprio futuro profissional, devendo portanto ser financiado pelos próprios, e não por transferências orçamentais, à custa dos impostos de todos (ressalvadas as "externalidades positivas" para a sociedade).

2. No entanto, contra esta boa doutrina, nos últimos governos do PS, por pressão do PCP e do BE, verificou-se uma substancial redução das propinas - a que naturalmente me opus -, aumentando a dependência das IES das transferências orçamentais, pondo em causa a sua autonomia, que é tanto menor quanto menor for a sua autossustentabilidade financeira.

Infelizmente, o mito do ensino superior gratuito não é privativo da esquerda radical, contaminando também a "ala bloquista" do PS, incluindo um anterior ministro do ensino superior. A constituency dos estudantes do ES, que obviamente querem "universidades SCUT" (ou seja, à custa dos contribuintes), é demasiado influente. Aguardemos, sem ilusões, o que o próximo programa eleitoral do PS vai dizer sobre o assunto.

Adenda
Um leitor relembra o óbvio: a democratização no acesso ao ES «deve ser feita pelo Estado por meio de bolsas de estudo para quem precisa e não pelo gratuitidade transversal, que beneficia quem não precisa». E parece evidente que quanto mais transferências orçamentais o Estado tiver de fazer para sustentar as universidades, por insuficiência de recursos próprios destas (incluindo as propinas), menos disponibilidade orçamental haverá para alargar a cobertura e elevar a importância das bolsas de estudo - sendo aí que o Estado deveria investir (como sempre defendi). Conclusão: a redução/abolição das propinas acaba por funcionar contra os mais pobres!

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (32): Benesses aos ricos

Depois de o PSD ter defendido os "contratos de associação" com escolas privadas como alternativa à escola pública - o que visa obviamente subsidiar os que já frequentam o ensino privado, ou seja, os filhos de famílias com rendimentos condizentes -, a AD vem agora defender que o Estado se torne garante do crédito à compra de habitação de jovens (suportando o respetivo risco), o que, mais uma vez, visa beneficiar quem tem rendimentos suficientes para tal investimento, o que é uma minoria das famílias.

Pelos vistos, para o PSD o "Estado social" não está ao serviço de todos, sobretudo de quem menos tem, mas antes ao serviço dos privilégios dos que mais têm. Mesmo que os meus netos pudessem ser beneficiários de tais benesses, recuso que os meus impostos sirvam para alimentar privilégios de classe, à custa de toda a coletividade.

Adenda
Um leitor objeta que «os contratos de associação com escolas privadas já existem na lei» e que «o financiamento público será compensado pela menor despesa com as escolas públicas». Trata-se, porém, de uma falácia: (i) a lei em vigor só prevê contratos de associação em caso de insuficiência de escolas públicas (o que é cada vez mais raro), e não como alternativa a estas, ao abrigo de um alegado "direito de opção"; (ii) é óbvio que o financiamento de escolas privadas fora dos casos de insuficiência do ensino público não isenta o Estado de sustentar as escolas públicas, mesmo com menos alunos, pelo que haverá necessariamente aumento da despesa pública ou corte no adequado investimento na escola pública. Mais importante do que isso, o financiamento público de escolas privadas em concorrência com as públicas viola manifestamente a prioridade e a universalidade constitucional do ensino público, política e religiosamente neutro. Gostaria de saber qual é a resposta do PS a esta provocação política e constitucional da direita.

Adenda 2
Outro leitor pergunta se também sou contra «as PPP para a construção e gestão de hospitais do SNS», que a AD quer recuperar. Esta solução nada tem a ver com a outra, tratando-se somente de concessão da construção e ou gestão de equipamentos públicos, que permanecem no setor público. Não há aqui nem financiamento público de hospitais privados, nem "direito de opção" dos utentes entre o público e o privado, nem aumento de despesa pública (pelo contrário). Por isso, considerando o valor acrescentado que a gestão privada pode trazer ao SNS e o bench marking que pode proporcionar à gestão pública, desde há muito que me manifestei a favor dessa solução, tendo lamentado a sua injustificada interrupção por pressão do PCP e do BE (que considerei um erro político). Parece-me evidente que o PS também de revisitar esta questão.

Adenda 3
Um leitor argumenta que o apoio do Estado à compra de habitação por jovens já existiu, através da bonificação de juros. Pois já, e também nessa altura me opus a tal benesse, que redundava num subsídio às famílias com capacidade financeira bastante para comprarem casa em nome dos filhos. Coerentemente, já na altura me opus.

Adenda 4
Um leitor afirma que também «há muitos socialistas, incluindo dirigentes, com os filhos em escolas privadas». Pois há, e têm esse direito. A diferença radical está em que, ao contrário da direita, eles não propõem que seja o Estado a pagar-lhes a escola. Em vez disso, apesar de não usufruírem da escola pública, contribuem de bom grado para o seu financiamento.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Não com os meus impostos (13): Vantagens privativas, custos alheios

Não faz sentido esta reivindicação da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) - que é um sistema profissional privativo de segurança social - de cofinanciamento do Estado, no valor de vários milhões

Se tenho defendido a autossustentação financeira do sistema previdencial geral de segurança social, por maioria de razão tal se impõe nos casos de autoadministração profissional, como é o caso, não devendo ser os contribuintes em geral a financiar as pensões de classes profissionais bem remuneradas, tanto mais que a maior parte daqueles não podem sequer aspirar a pensões equivalentes. 

Não se pode ter uma coisa sem a outra: os sistemas de previdência privativos requerem a sua autossustentação financeira.

Adenda
Um leitor comenta, apoiando: «Com este pedido de "intervenção estatal" da Direção da CPAS, onde ficam estes dois argumentos - da sustentabilidade e da independência? Ficam na esfera da conveniência, mas certamente não da coerência, respondo eu. Por isso, louvo (...) não deixar que (mais) este despautério da Direção da CPAS passe sem "réplica"». Efetivamente, um despautério...

domingo, 21 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (31): A "proposta negocial" do Bloco

Perante o radicalismo e a insensatez política e orçamental deste manifesto eleitoral do BE - que, entre outras propostas irresponsáveis, propõe a redução administrativa dos juros do crédito habitacional da CGD, como se o banco público não fosse um banco comercial em concorrência no mercado bancário -, cumpre perguntar que margem é que o PS teria para aceitar alguma daquelas propostas num hipotético acordo de governo à esquerda

sábado, 20 de janeiro de 2024

Sistema eleitoral (7): Um "sonho" impossível

1. Na Público de hoje, António Barreto dá conta do seu "sonho" de adoção de um sistema eleitoral radicalmente diferente do que vigora em Portugal desde a Revolução democrática de 1974-76, propondo a importação de um sistema próximo do francês, em que os deputados são eleitos em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger, ou seja, 230 no nosso caso), por maioria absoluta, havendo uma segunda votação se nenhum candidato obtiver tal maioria na primeira, à qual só podem concorrer os candidatos que na 1ª volta tenham obtido uma percentagem mínima de votos.

Sucede, porém, que se trata de um exercício inteletual impraticável, pois tal revolução eleitoral está fora de equação entre nós, tanto por ser constitucionalmente impossível, como por ser politicamente desaconselhável.

2. Desde a origem que a CRP de 1976 é clara: o sistema eleitoral da AR é de natureza proporcional, sendo os deputados eleitos em círculos plurinomiais infranacionais - que no Continente continuam a ser os antigos distritos administrativos -, sendo os mandatos em cada círculo atribuídos de forma proporcional à votação de cada lista concorrente. Isso faz com que a representação parlamentar reflita aproximadamente a repartição do apoio eleitoral de cada partido político no País. Por conseguinte, é constitucionamente inviável a adoção de um sistema eleitoral maioritário. 

Reforçando essa opção fundamental pela proporcionalidade da representação parlamentar, a CRP considera-a um "limite material de revisão", impedindo a sua remoção por via de alteração constitucional. Ora, num Estado de direito constitucional não são politicamente equacionáveis soluções contrárias aos princípios constitucionais básicos.

3.  Mesmo que não fosse constitucionalmente inviável, não é de sufragar politicamente essa proposta de revolução eleitoral. 

A razão fundamental está no estreitamento forçado da representação partidária no Parlamento - que é inerente a todos os sistemas eleitorais maioritários, mas que é agravada no modelo francês -, a qual, num país sem minorias étnicas ou linguísticas e com reduzidas clivagens políticas territoriais, ficaria reduzida aos dois ou três partidos maiores, afastando os demais e alienando da representação política uma parte substancial dos eleitores. Outros argumentos contra um sistema eleitoral maioritário a duas voltas, para além da dificuldade prática de dividir o país em mais de duzentos círculos de idêntico tamanho eleitoral, seriam a excessiva "personalização" das disputas eleitorais e a vantagem dado aos influentes e "caciques" locais, bem como o aumento da duração e dos custos das operações eleitorais.

Não é por acaso que, ao contrário do sistema de maioria relativa de tipo britânico, que existe num considerável número de países, o sistema eleitoral de tipo francês tem uma reduzida implantação no mundo - não mais de dez países, não havendo nenhum caso na Europa além do país de origem (salvo na Chéquia, mas apenas para a câmara alta do respetivo Parlamento). Ou seja, a política comparada não favorece tal opção.

4. Mas a minha principal objeção à proposta apresentada é a discordância com a substituição do "modelo representativo" clássico do mandato parlamentar, em que os deputados representam ideias e propostas políticas transversais ao território nacional, por um modelo de representação personalizada dos territórios eleitorais, como sucedia nas Cortes medievais, em que os chamados representantes do "3º estado" eram na verdade "procuradores" dos respetivos concelhos.

Nesta perspetiva, julgo que numa democracia pluripartidária, sobretudo em sistemas de governo de tipo parlamentar como o nosso (em que a legitimidade dos governos deriva das eleições parlamentares), não faz muito sentido conceber o parlamento como um agregado de representantes dos círculos eleitorais (que normalmente nem sequer coincidirão com nenhuma comunidade local pré-existente, carecendo, portanto, de identidade política própria) ou aceitar a ideia de que cada deputado local representa todos os habitantes do seu círculo ("o meu deputado"), incluindo os eleitores que votaram noutros candidatos e perfilham posições políticas radicalmente diferentes.

A meu ver, a ideia de que os deputados representam diferentes correntes políticas ao nível de todo o território nacional, e não os círculos por que são eleitos, deve continuar a considerar-se um pressuposto lógico das democracias parlamentares.

Adenda
Contrariando um dos argumentos de AB, um leitor defende que pode haver mais renovação de deputados nos sistemas proporcionais, quando há mudança de lideranças partidárias (como sucede agora nas listas do PSD e do PS) do que nos sistemas maioritários, onde «é grande o número de "safe seats" [círculos eleitorais de maioria estável], que tendem a reconduzir os seus deputados legislatura após legislatura». Na verdade, calcula-se que no Reino Unido os safe seats dos dois maiores partidos são mais de 40% e que nos Estados Unidos essa percentagem é ainda maior.

Adenda 2
Um leitor defende que a proposta de AB teria «pelo menos duas vantagens: 1º, favorecer a formação de maiorias absolutas do partido vencedor, garantindo a estabibilidade governativa e 2º, eliminar ou reduzir a representação de partidos extremistas como o Chega e o Bloco». O problema é saber se tais presumíveis vantagens justificam o sacrifício da justiça eleitoral e da legitimidade política de um parlamento "de via reduzida", de onde estaria excluída a representação de grande parte do atual espectro partidário.

Adenda 3
Um leitor informado recorda que há meios de «pessoalizar a escolha dos deputados em sistemas proporcionais», seja através do "voto preferencial" (em que os eleitores podem votar em um ou mais dos candidatos do partido em que votam), seja através do sistema alemão (em que cerca de metade dos deputados são eleitos, por maioria, em círculos uninominais, sendo os eleitos imputados à quota proporcional do respetivo partido no círculo plurinominal correspondente). Tem razão, e qualquer dessas modalidades de "sistema proporcional personalizado" pode ser adotada em Portugal, sem alteração da Constituição.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Não é a mesma coisa (3): Uma nova "maldição dos recursos"?

1. Depois de no seu recente livro As causas do atraso português (D. Quixote) ter levado ao extremo a tese de que o atraso económico português tem a sua origem no século XVIII e se deve essencialmente ao ouro do Brasil, o economista e professor da Universidade de Manchester, Nuno Palma, vem agora defender nesta entrevista (aliás, sublinhando a tese que já consta do último capítulo do livro) que os fundos da UE geram o mesmo efeito, chegando à "provocação" de proclamar que o PRR é «uma desgraça e uma maldição».

Mesmo que concordemos com a tese dos efeitos nocivos da "maldição do ouro do Brasil" (desperdiçado no luxo da Corte e em obras faraónicas) e da expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal (que eram responsáveis pela maior parte do ensino em Portugal), penso que não faz muito sentido estabelecer uma equiparação com os fundos europeus, os quais ocorrem num vasto mercado integrado, sujeito as regras de concorrência, implicam obrigações de reforma económica amigas da competitividade (por exemplo, sobre ajudas de Estado e sobre regulação e concorrência) e são destinados, entre outros objetivos, a investimento em infraestruturas essenciais à economia que, de outro modo, não seriam realizados, por carência de fundos endógenos (por exemplo, o recente lançamento do TGV).

2. Julgo ser dificilmente contestável a tese contrária, de que a persistente ineficiência da economia portuguesa - principal causa da sua menor competitividade - não tem a sua origem nos fundos europeus e que, ao invés, sem a integração europeia e sem os fundos da União, a economia portuguesa seria bem menos competitiva e bem mais atrasada do que é, apesar deles .

De resto, se é certo que - como tenho assinalado, por exemplo AQUI - continuamos a crescer menos do que outros países do nosso "campeonato" na UE (principalmente os do leste europeu), já não tem fundamento a afirmação do autor de que houve «uma enorme divergência da Europa nos últimos oito anos». Os números disponíveis não confirmam essa tese, antes pelo contrário.

Adenda
Um leitor comenta que «Nuno Palma não aplica a mesma lógica da sua análise a outra "maldição de recursos", as remessas dos emigrantes, que ele omite sem explicação, mas que, tal como ele diz do ouro do Brasil, também entram em benefício dos particulares e se destinam em grande parte ao consumo de bens não transacionáveis (propriedades e construção de casas)». Uma vez que as remessas dos emigrantes equivalem aos fundos europeus, como mostra o JN de hoje, o leitor tem razão na crítica a essa omissão.

Adenda 2
Outra leitor considera «inconsistente e precipitada» a tese do autor, porque ela «não explica porque é que os fundos europeus ajudaram a uma forte convergência do Pais até ao início do seculo XX, como ele próprio mostra, nem porque é que não há tal "maldição de recursos" noutros Estados-membros da UE, que nos estão a ultrapassar com a ajuda decisiva desses fundos», concluindo que «o menor desempenho económico nacional neste século tem de ter outras explicações»Também concordo com esta objeção.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Aplauso (33): Uma revolução ferroviária

1. A grande notícia da semana foi a decisão de abrir o concurso para a 1ª fase da linha ferroviária de alta velocidade (TGV) entre o Porto e Lisboa, que vai ser construída em vários troços e cujo lançamento não foi felizmente afetado pela demissão do Governo. 

Como mostram os mapas juntos, a nova ligação Porto-Lisboa constitui uma verdadeira revolução na mobilidade entre nós, não somente entre as duas principais cidades do País (com Aveiro, Coimbra e Leiria no meio), mas também, mercê das conexões com a rede convencional existente, em todo o território nacional a norte do Tejo.

Já não era sem tempo para começar! Esperemos que o calendário traçado para o investimento não sofra os tropeços que são habituais entre nós.

2. Junto com outras importantes obras em curso - como a renovação integral da linha da Beira Alta e da linha Sines-Elvas -, este novo projeto concretiza o resgate da ferrovia em Portugal, depois do abandono durante quase todo o século XX, preterido a favor do modo rodoviário e do lobby automóvel, incluindo depois da implantação do regime democrático, apesar dos fundos europeus que poderiam ter sido mobilizados para o efeito.

Com mais de 30 anos de atraso em relação a Espanha na alta velocidade ferroviária (linha Madrid-Sevilha em 1992), Portugal precisa de andar depressa para reduzir tal atraso e conseguir a necessária conexão com a rede espanhola, de modo a criar uma alternativa ao transporte rodoviário e aéreo (Lisboa-Porto-Vigo e Lisboa-Madrid).

Além da melhoria do transporte de pessoas e mercadorias (rapidez, comodidade, segurança, etc.), em prol da mobilidade no espaço nacional e no espaço ibérico, cada vez mais integrado, a aposta na ferrovia é também uma condição para atingir os objetivos da transição energética e da neutralidade carbónica antes de meados do século.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Gostaria de ter escrito isto (34): Elogio do Jornal de Notícias

1. Subscrevo este artigo de Henrique Raposo na edição digital do Expresso de hoje, de elogio ao Jornal de Notícias do Porto, que ele define, com toda a propriedade, como exemlo de «um jornalismo popular sem ser populista». 

Também defendo que, sendo o JN o mais importante e expressivo diário do Norte do País, atenuando o quase-monopólio mediático de Lisboa, e tendo sobrevivido ao desaparecimento de outros jornais históricos do Porto que conheci, como o Primeiro de Janeiro e o Comércio do Portoseria uma enorme perda o seu desaparecimento numa eventual voragem da crise da Global Media, que espero não ocorra.

 2. Sendo um jornal também da minha leitura diária, mercê da assinatura digital que tenho desde a pandemia, o JN é para mim também a sua revista bimestral de história, a JN / História, um valioso veículo de divulgação de temas históricos, onde tenho tido, nos últimos anos, o privilégio de publicação de vários artigos, da minha coautoria com o Prof. José Domingues, sobre a nossa história política e constitucional, como assinalei recentemente.

Por isso, longa vida ao JN e à JN / História!

Praça da República (79): Práticas políticas à margem da Constituição

1. Merece leitura e reflexão este artigo de Vitalino Canas no Público de hoje sobre o decreto-lei de simplificação do procedimento de licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, recentemente publicado no DR (que se tornou famoso, por o Ministério Público o ter invocado como prova no caso Influencer) .

Limitando este comentário à questão do procedimento legislativo, sabemos agora que a versão originária do diploma foi vetada pelo Presidente da República, mas não conhecemos essa versão, tal como aprovada em Conselho de Ministros (por tais textos não serem publicados) e também não conhecemos o teor do veto presidencial, nem a sua fundamentação exata (porque os vetos de diplomas governamentais também não são publicados). Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão final, depois de alterada na sequência do veto, não tenha ido a Conselho de Ministros.

Parece óbvio, porém, que, como assinala VC, além da óbvia inconstitucionalidade da aprovação da versão final à margem do Conselho de Ministros, este modelo de aprovação dos diplomas governamentais afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue essencialmente da arcana praxis legislativa governamental própria do "Estado Novo" (e do Antigo Regime pré-constitucional).

2. Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão definitiva tenha sido "negociada" entre a Presidência do CM e Belém, depois das reservas do PR à versão inicial, muitas vezes não expressas através de veto formal.

Também aqui há um manifesto desvio às regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de que o PR não é cotitular, só tendo o poder de veto, de oposição fundamentada, não lhe competindo propor alterações aos diplomas governamentais, tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de poderes constitucional. 

Tal como não o autoriza a intrometer-se no exercício do "poder executivo" do Governo, o "poder moderador" do PR muito menos lhe confere credencial política para interferir no exercício do poder legislativo daquele, salvo através do poder de veto, exercido nos precisos termos da Constituição.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (30): "É a economia estúpido»?

1. Nos sistemas de governo de tipo parlamentar, como o nosso, é nas eleições parlamentares que os cidadãos "julgam" politicamente o Governo cessante e reconduzem ou substituem o(s) partido(s) governante(s). 

Como mostra a sociologia eleitoral, em condições normais, a situação económica constitui um fator de grande peso nesse julgamento eleitoral, mercê do seu impacto direto sobre as condições de vida (emprego, rendimento, poder de compra, etc.). Uma má situação económica tende a fazer derrotar os incumbentes políticos (como recorda o célebre slogan eleitoral, It's the economy stupid, usado pela equipa de Clinton na campanha vitoriosa contra Bush nas eleições presidenciais norte-americanas de 1992); inversamente, uma situação económica favorável é geralmente uma condição e um meio caminho andado para a vitória.

À luz deste critério, parece evidente que o PS parte para as eleições de 10 de março em condições altamente vantajosas (como já argumentei anteriormente).

2. De facto, além dos bons dados oficiais sobre o crescimento económico (um dos melhores desempenhos na UE), o emprego e o aumento de rendimento pessoal, têm-se vindo a acumular numerosos indícios convergentes, como por exemplo:

    - subida do poder de compra em relação à média da UE

Acrescem as medidas a entrar em vigor neste início do ano, sobre aumento de salários (incluindo o salário mínino) e de pensões, subida das prestações sociais (incluindo o abono de família) e descida do IRS, assim como as reformas do SNS e da política de habitação (procurando dar resposta a duas políticas menos bem-sucedidas deste ciclo governativo).

Neste impressionante panorama económico-social, que o PS vai obviamente explorar eleitoralmente - para mais conseguido com redução, sem precedentes, do peso da dívida pública e de subida do rating da República -, as imaginárias acusações de Luís Montenegro sobre um alegado «ciclo de empobrecimento galopante» do País, ou de que «o Estado social está pelas ruas da amargura», candidatam-se a prémio do nonsense político nesta disputa eleitoral.

Adenda
Um leitor comenta que «com tantos milhões do PRR da UE qualquer Goveno faria estes brilharetes», mas não tem razão, primeiro, porque muitos dos resultados acima mencionados vêm de muito antes deste programa da União (cujos efeitos começaram apenas há dois anos) e, em segundo lugar, porque Portugal tem tido um desempenho económico muito melhor do que outros paises da UE, com igual ou melhor acesso ao PRR (como a Itália, a Espanha, a Roménia, etc.).

Adenda 2
Tem razão um leitor, quando objeta que «não basta uma boa situação económica para vencer eleições». Mesmo descontando percalços imprevistos, também contam, por este ordem, a liderança partidária, o programa de governo, a política de alianças pós-eleitorais anuunciada, a campanha eleitoral. Falhas graves em qualquer desses capítulos podem deitar a perder o enorme ativo político da boa situação económica e social.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Estado social (12): Reformular a contribuição das empresas para a segurança social?

1. Considero, em princípio, bem-vinda a proposta do novo SG do PS, no seu discurso de encerramento do congresso do Partido, de «reforma das fontes de financiamento da Segurança Social», a qual, embora não explicitada, parece apontar para a adoção de uma velha proposta da Intersindical e do PCP (por exemplo, neste PL de 2005), no sentido de introduzir uma TSU empresarial mista, composta, por um lado, pela contribuição sobre os salários pagos (hoje, de 23.75%), e, por outro lado, por uma contribuição sobre o valor acrescentado bruto de cada empresa - o que seria a inovação -, a qual incidiria sobretudo sobre as empresas mais tecnológicas, de elevado VAB, mas com reduzido número de trabalhadores, contribuindo por isso comparativamente menos para a SS.

Dada a crescente diversidade setorial das empresas quanto à relação trabalho - VAB, é tempo de tornar mais equitativa a contribuição empresarial para a segurança social, deixando de sobrecarregar relativamente as empresas de mão-de-obra mais intensiva.

2. Sendo certo que há muitos anos que sufrago tal ideia (por exemplo, AQUI) - sem compreender, aliás, porque é que o PS nunca a adotou -, entendo, porém, que a receita adicional da nova componente VAB da TSU deve servir menos para reforçar o financiamento da segurança social, como defende o PCP, mas sobretudo para o redistribuir, reduzindo a componente da contribuição sobre os salários, através da diminuição da atual taxa desta.

Não é obviamente a mesma coisa. Tanto ou mais importante do que aumentar o financiamento da segurança social (à custa do aumento da atual carga tributária geral sobre as empresas, já muito elevada,) é baixar os custos não salariais do trabalho (como defendi AQUI), através da diminuição da atual TSU empresarial sobre os salários, de modo a favorecer o emprego e os salários.

Torna-se, por isso, essencial conhecer melhor os seus termos, para avaliar politicamente a anunciada proposta do PS.

Adenda
Um leitor «aposta» que o PS vai optar por acrescentar a nova receita às atuais fontes de financiamento da SS, aumentando, portanto, os encargos das empresas, porque «PNS precisa de mais dinheiro para pagar os aumentos de pensões que prometeu». Creio, porém, que, sem conhecermos os termos da proposta, é precipitada qualquer especulação. Pela minha parte, insisto em que tanto ou mais importante do que reforçar o financiamento da SS (que, aliás, já beneficia também de transferências orçamentais) é a redução dos custos não salariais do trabalho.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Era o que faltava (13): Nacionalização da "Global Media"?

1. A jornalista Ana Sá Lopes defende hoje no Público a nacionalização urgente do grupo Global Media, que detém o DN, o JN e a TSF. Mas não me parece viável tal ideia, nem constitucionalmente nem politicamente. 

Quanto à primeira questão, a Constituição só prevê a existência de um serviço público de rádio e de televisão, não de jornais; e mesmo que tal fosse possível, uma tal medida (necessarimente por via de decreto-lei, precedido de avaliação da empresa) não poderia ser tomada por um governo de gestão, como o atual, constitucionalmente limitado à «prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos», o que manifestamente não seria o caso. 

Quanto à viabilidade política, é de entender que - salvo o serviço público eventualmente previsto, rodeado das necessárias garantias de neutralidade e independência informativa, como sucede entre nós - numa democracia liberal não cabe ao Estado gerir órgãos de comunicação, por serem reserva de entidades privadas, como garantia da liberdade e do pluralismo da imprensa.

2. Acresce que, se o Governo desse tal passo, sem precedentes desde 1976, criaria a obrigação de fazer o mesmo no futuro em relação a qualquer órgão de comunicação em risco de desaparecimento. Ora, sem prejuízo das medidas transversais de apoio à imprensa (lato sensu), numa economia de mercado, as empresas jornalísticas também estão sujeitas à "lei de bronze" da boa gestão, da viabilidade económica e da concorrência, assim como às regras das ajudas de Estado. 

Não se pode ter "o sol na eira e a chuva no nabal".

Adenda
Para uma visão muito mais crítica ver este comentário no Página Um.

Adenda 2
Um leitor pergunta se não lamento o «desaparecimento de órgãos de comunicação tão importantes» como aqueles. Antes de mais, a eventual reestruturação ou mesmo a falência da Global Media não tem de implicar o desaparecimento do seus títulos. Depois, devo dizer que sou assinante das versões digitais do DN e do JN e que lastimaria muito a sua perda, pelo que representam em informação e opinião. Mas também tive pena do desaparecimento de outros jornais de que era leitor, como o Diário de Lisboa ou o semanário O Jornal, ou de monumentos da história do jornalismo em Portugal, como o Século (que deixou o seu nome numa rua de Lisboa) ou o Primeiro de Janeiro, do Porto (o primeiro jornal que conheci, nos anos 50 do século passado, no balcão da taberna da minha aldeia natal). Parafrasendo Shumpeter, a história do jornalismo é uma história de "destruição criativa".

À portuguesa (1): Desperdício legislativo

1. Entre os casos de desperdício legislativo conta-se à cabeça a legislação sobre a qualificação das povoações como vilas ou cidades, questão herdada do chamado "Estado Novo", em que o parlamento tem gastado imenso tempo e recursos, quer na elaboração da respetiva lei-quadro, agora revista - estabelecendo os critérios para atribuição de cada um dos títulos, aliás bastante flexíveis -, quer na aprovação de uma lei para cada caso, o que perfaz várias centenas ao longo destas décadas.

É tarefa em que se empenham não somente os deputados locais, ansiosos por juntarem ao seu CV político a inestimável honra da promoção do grau urbanístico das suas terras, mas também as autarquias interessadas (a que lei atribui, aliás inconstitucionalmente, iniciativa legislativa para esse efeito).

Com os critérios mais laxistas da nova lei-quadro, é de recear uma nova vaga de criação de improváveis vilas e cidades.

2. Sucede, porém, que, além de não estar prevista na Constituição (muito menos como competência reservada da AR), a qualificação legal como vila ou cidade carece de qualquer efeito prático relevante, sendo títulos puramente honoríficos.

Por isso, para poupar este inglório desperdício da agenda parlamentar e de espaço no Diário da República, propus há muito tempo que o título de "cidade" coubesse automaticamente à povoação-sede de todos os muncípios, e o de "vila" à sede de todas as freguesias (sem prejuízo das situações discrepantes já criadas). Mas foi proposta sem nenhum impacto.

Como era de esperar, mesmo à custa do descrédito político da AR, os grupos parlamentares e os seus deputados não querem prescindir desse ilusório e fugaz momento de glória local.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Bicentenário da Revolução Liberal (51): E pronto!


1. Com este texto na JN História sobre a radical contrarrevolução de 1823 no Porto - que fora o berço da Revolução Liberal de 1820, menos de três anos antes -, damos por concluído (o meu colega José Domingues e eu) o projeto de investigação específico sobre a Revolução e o período vintista (1820-1823), a que lançámos ombros em 2018, na Universidade Lusíada do Porto.

Durante estes cinco anos, além de numerosos artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras, publicámos vários livros e capítulos de livros (para além de outros sobre o mesmo tema, no âmbito de outros projetos de investigação, como, por exemplo, a recente monografia sobre a Constituição de 1822), incluindo sobre questões até agora menos bem conhecidas (como esta da contrarrevolução de 1823). 

Julgamos, por isso, ter contribuído para um melhor conhecimento desse período fundador do Portugal moderno, em termos políticos e constitucionais.

2. Não nos limitámos a escrever para a comunidade académica, como tantas vezes acontece na historiografia, tendo procurado interessar um público mais amplo, quer através de iniciativas abertas (conferências e colóquios), quer, sobretudo, através de artigos de divulgação, como este acima referido. 

Neste aspeto, apraz-nos agradecer a recetividade da revista JN História, dirigida por Pedro Olavo Simões, que acolheu e apoiou desde o princípio esta nossa iniciativa, dando ao nosso trabalho uma repercussão que sem esssa divulgação ele não alcançaria.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Como era de temer (8): Imprevidência e incúria

Como era recear, a vaga de gripe que ocorre no País e que congestiona as urgências hospitalares é tanto mais generalizada e tanto mais nociva (incluindo a morte) quanto é certo que a maioria dos afetados mais graves não se encontra vacinada, apesar do esforço público de apelo à vacinação. O mesmo se passa em relação à Covid.

À imprevidência cívica junta-se a incúria das autoridades de saúde em não terem até agora apelado ao uso de máscara em locais públicos por parte das pessoas afetadas e pelas pessoas mais vulneráveis em geral (idosos e pessoas com doenças respiratórias não vacinadas), e impondo tal uso nos centros de saúde e hospitais, como acabam de decretar duas comunidades autónomas na vizinha Espanha.

Juntar a incúria pública à imprevidência privada não é boa receita para a saúde pública.

Um pouco mais de jornalismo, sff (28): "Leviana e aleatória"

 

Muiguel Sosa Tavres no Expresso de hoje. Subscrevo inteiramente.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Livro de reclamações (26): O Diário de Notícias fora de serviço

Tenho uma assinatura digital do Diário de Notícias, o qual porém deixou de estar disponível há vários dias - como se pode ver aqui -, desde que mudaram o lay-out do sítio eletrónico do jornal. Contactada a assistência telefónica ao cliente, reconhecem a anomalia, mas não garantem sequer quando é que o serviço volta a estar operacional, o que é inadmissível. 

Sendo de supor que, nos dias de hoje, a maior parte dos leitores do DN o são por via da assinatura digital, esta suspensão da disponibilidade da versão eletrónica equivale de facto à suspensão do jornal, o que só poder agravar a sua conhecida situação de crise. 

Curiosamente, o Jornal de Notícias, que pertence ao mesmo grupo do DN, continua acessível. Não dá para entender esta falta de integração digital dos títulos do mesmo grupo de media. Aqui fica o meu protesto.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Corporativismo (56): Ordens profissionais mal agradecidas

1. O bastonário da Ordem dos Economistas, que é presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, veio declarar que a recente revisão do regime jurídico das ordens profissionais visou «destruitr o papel que as ordens têm na sociedade portuguesa»

Infelizmente, não tem razão. A revisão teve três propósitos explícitos, relativamente bem conseguidos, a saber: (i) separar organicamente a função de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profisional. Mas não teve desde o início nenhum propósito de eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente, em Portugal, que são justamente a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como "grupos de pressão" oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins.

Com efeito, numa democracia liberal, nenhuma dessas funções deve caber a entidades públicas, como são as ordens profissionais entre nós, mas sim a associações e a grupos de interesse privados, ao abrigo da liberdade de associação e da separação Estado - sociedade civil.

2. A prova de que a revisão do regime jurídico das ordens profissionais foi demasiadamente modesta e complacentee com o statu quo (como mostrei AQUI) está na sobrevivência de algumas ordens que nada justifica, a começar pela própria Ordem dos Economistas.

Como resulta da Constituição e da lei-quadro, a criação de ordens profissinais só se justifica se verificados dois requisitos: (i) quando tal se tornar necessário para regular a entrada numa profissão e disciplinar o seu exercício, a fim de assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços (princípio da necessidade); e (ii) quando tal tarefa não possa ser exercida apropriadamente pelo próprio Estado (princípio da subsidiariedade). Ora, não se vê em que é que a profissão de economista envolva alguma "falha de mercado" relevante que preencha estes dois requisitos.

A prova disso está em que os próprios estatutos legais da Ordem, ao contrário de outras, não exigem a inscrição para o exercício da profissão de economista (que, por isso, pode ser exercida à margem de qualquer supervisão ou disciplina da Ordem), e que os novos estatutos preveem insolitamente a inscrição de estudantes, os quais, por definição, não exercem a profissão. 

Ou seja, em vez de condenar infundadamente a reforma legislativa, o bastonário da Ordem dos Economistas devia agradecer a, aliás indevida, generosidade do legislador, ao prescindir de a extinguir, como devia.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

+ União (78): Jacques Delors (1925-2023)

1. Depois dos "pais fundadores" da integração europeia (Ceca / 1951 e CEE /1957), Jacques Delors foi, como presidente da Comissão Europeia (1985-1995), um verdadeiro refundador do que veio a ser a União Europeia, não apenas no campo económico (mercado único, união económica monetária e euro), mas também no campo social (protocolo social de 1992, instrumentos da coesão económica e social) e na integração política, com a cidadania europeia e os direitos humanos, o avanço na democracia representativa (Parlamento Europeu) e os novos "pilares" da Pesc e do Espaço de Liiberdade, Segurança e Justiça.

Sem a sua visão e o seu impulso político, o Tratado de Maastricht de 1992 - que marca uma autênica mudança de natureza da União num sentido parafederal - não teria seguramente existido.

2. Além disso, sendo francês, Delors contribuiu decisivamente para levar a França a aceitar a ideia de soberania partilhada com a Alemanha e demais Estados-membros da União, tornando o eixo Paris-Berlim no verdadeiro motor da integração. E sendo socialista, ele contribuiu para conciliar a esquerda social-democrata europeia não somente com a integração europeia, mas também com a economia de mercado, mercê justamente da junção das dimensões social e política à integração europeia, até aí votada somente à conclusão de um "mercado comum".

Também nesse aspeto Delors lançou as bases dos passos seguintes do aprofundamento da integração europeia, tanto enquanto "Europa social" (Tratado de Amesterdão) como enquanto "Europa política" (Tratado de Lisboa). Entre os arquitetos da atual UE ele foi, sem dúvida, o maior.

Adenda
Incrivelmente, no telejornal das 20:00 da RTP1, um seca notícia da morte de Delors, sem qualquer enquadramento, só apareceu às 20:30! Depois, queixemo-nos da ignorância dos cidadãos comuns em relação à UE e da elevada abstenção nas eleições do PE. Aqui fica o meu protesto!

Aplauso (32): Ponderação e bom senso

1. Considero obrigatório ler esta entrevista da Juíza-conselheira do STJ., Teresa Almeida. no Público de hoje, sobre a situação da justiça penal em Portugal, a qual é caracterizada pelo saber e o bom senso que só a inteligência e a experiência proporcionam. 

Dá gosto e esperança.

2. Antiga magistrada do Ministério Público durante muitos anos, a entrevistada tem autoridade para dar conselhos à sua instituição de origem.

Eis uma das suas afirmações, sobre a abertura de investigações penais: 

«E o princípio da legalidade [na investigação penal] não é exactamente isso. Não obriga o MP a ir atrás de tudo, obriga a iniciar uma investigação, a abrir um inquérito quando há uma suspeita com um mínimo de fundamento de que alguém praticou um crime. Estas duas condições têm que se reunir para haver inquérito. Não é porque há uma notícia ou porque alguém coloca uma questão. Tem que se fazer uma apreciação prévia.»

Como é evidente, esse requisito elementar da apreciação prévia para avaliar a consistência do caso não foi seguido no caso da precipitada abertura de um inquérito ao PM, António Costa, que provocou a sua demissão, acerca do qual não se sabe ainda por suspeita de que crime.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Assim vai a economia (4): Desmentindo o "ciclo do empobrecimento"

Na sua edição especial de Natal, a celebrada revista britânica The Economist apresenta o ranking das economias dos países da OCDE com melhor desempenho em 2023, de acordo com vários critérios (inflação, PIB, emprego e cotações acionistas), colocando Portugal em 8º lugar entre os 35 membros da organização, sendo o 3º entre os países da UE, depois da Grécia e do Luxemburgo. 

Tendo em conta que este resultado foi obtido num quadro de excedente orçamental, trata-se de um desempenho indiscutivelmente positivo. Quem não deve gostar obviamente desta notícia - tal como de outras afins - é a tonta tese do "ciclo do empobrecimento", em que parece basear-se a estratégia eleitoral do PSD.

[Mudada a rubrica]

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

+ União (78): Resposta robusta a um desafio complexo

1. Dando cumprimento a uma obrigação dos Tratados (TFUE, arts. 77º-80º), o Parlamento e o Conselho acabam de chegar a acordo para a aprovação de um pacote legislativo sobre uma política comum de imigração e de asilo para todos os Estados-membros.

Sem prejuízo do incentivo à imigração regular - que preenche manifestas carências de mão-de-obra - e sem pôr em causa o direito ao asilo - que é um direito constitucionalmente protegido na Carta de Direitos Fundamentais da União -, a nova legislação visa, entre outras coisas, melhorar o controlo à entrada, tornar mais expedito o procedimento de decisão do asilo e operacionalizar o retorno dos candidatos não admitidos, além de um resposta mais eficaz a situações de crise.

Após vários anos de impasse, o amplo apoio político conseguido, tanto no Conselho como no PE, mostra que a União continua a "dar conta do recado" mesmo nos dossiês mais problemáticos.

2. Trata-se de responder a um dos principais e mais persistentes desafios políticos da União - tanto maior quanto a economia da União não está em boa forma -, que tem criado tensões entre os Estados-membros de entrada e os de destino da imigração e que tem dado pasto ao crescimento dos partidos populistas de extrema-direita em vários países, em alguns casos acima dos 30%, incluindo a vitória em eleições nacionais, como na Itália e nos Países Baixos.

Embora esta legislação só entre em vigor em 2025, é de esperar que a sua simples aprovação contribua para apaziguar a litigiosidade do tema e para atenuar a receada subida desses partidos nas eleições europeias do próximo ano.

Assim, não! (8): A arte de fazer reféns políticos

1. A PGR demorou nada menos do que 45 dias, para tomar medidas organizativas sobre a investigação do caso Influencero que revela que o processo não merece nenhuma celeridade, ao contrário do que foi anunciado. 

Sucede, aliás, que nesse período não houve nenhum desenvolvimento quanto ao inquérito ao Primeiro-Ministro, que foi enxertado "a martelo" no processo, não se sabendo ainda por suspeita de que crime. Pior do que isso, no comunicado de ontem, a PGR diz explicitamente que a investigação do PM seguirá «em articulação» com as demais vertentes do processo, o que deixa entender que vai demorar tanto tempo quanto este -, o que não promete ser breve.

2. A ser assim, António Costa corre o risco de ficar indefinidamente refém da propositada lentidão do MP, com o óbvio propósito de travar a sua eventual disponibilidade para novos desafios políticos, nomeadamente na UE. Pelos vistos, o lawfare do MP contra Costa, consumado com o aleivoso parágrafo final do comunicado da PGR de 7 de novembro, não se satisfaz com a sua demissão do PM e o fim prematuro da legislatura. 

Quando for ilibado da abusiva suspeita, já terá cumprido, sem acusação nem condenação judicial, a mais pesada pena para um político por vocação: ver suspensa a sua cidadania política.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (28). Publicidade política enganosa

1. Como se antecipava, PSD e CDS acordaram uma coligação eleitoral entre si, abrangendo tanto as eleições parlamentares nacionais como as eleições parlamentares europeias. 

A coligação constitui um grande êxito para o CDS, que assim garante o regresso à representação na AR e a manutenção no PE, que estavam em risco, face às sondagens eleitorais. Quanto ao PSD, resta saber se os ganhos eleitorais resultantes da junção dos dois partidos numa única candidatura compensa a possível perda de votos ao centro, por causa da aliança com um partido mais à direita, incluindo um programa eleitoral e listas comuns.

Eis uma questão para qual só haverá resposta a 10 de março do ano que vem.

2. Se o nome de Aliança Democrática é feliz, dada a sua memória nas primeiras vitórias eleitorais à direita (1979 e 1980), o que dificilmente compensa é a tentativa de "vender" a ideia de uma coligação a três, juntando aos dois partidos as «personalidades independentes», como entidade separada, o que não faz sentido. 

Na verdade, no nosso sistema eleitoral só os partidos políticos podem apresentar candidatos (filiados ou não) e só eles podem constituir coligações eleitorais, pelo que os eventuais candidatos independentes integram necessariamente a quota de cada um dos partidos coligados, aparecendo identificados como tais nas listas conjuntas de candidatos. 

Trata-se, portanto, de uma manifesta operação de publicidade política enganosa.

Adenda
Um leitor acha que «o PSD perde pouco e pode ganhar muito com a coligação», melhorando a possibilidade de vitória eleitoral. Não estou certo disso. Quanto a perdas, além dos votos de quem não gosta da aliança com direita, o PSD perde autonomia na composição das listas conjuntas e do programa eleitoral comum, dando ao CDS um poder de veto (por exemplo, tenho a certeza de que a habitual proposta do PSD para a revisão da lei eleitoral vai estar ausente desta vez...). Quanto a ganhos, é provável que a coligação dê mais deputados do que sem ela, mas os deputados são dos partidos e a coligação eleitoral termina automaticamente com as eleições, pelo que o PSD só vence as eleições se tiver mais deputados do que o PS. 

Adenda 2
Um simpatizante do PSD lamenta que a coligação não abranja a IL, «o que garantiria a vitória nas eleições». Não vejo, porém, como é que, dado o evidente fosso doutrinário entre o PSD e a IL quanto a políticas públicas, seria possível conceber um programa eleitoral comum, sem sacrifício recíproco de traços definidores da identidade política de cada um deles. Uma coligação eleitoral, destinada a cativar o voto dos cidadãos, é mais exigente do que uma coligação de governo pós-eleitoral.

Eleições parlamentares 2024 (27): Linguagem descabelada

1. Não bastasse Luís Montenegro ter utilizado uma metáfora de mau gosto em relação ao importante currículo governativo do novo líder do PS, qualificando-o como «cadastro político», eis que o ex-líder do PSD e antigo chefe do Governo, Passos Coelho, veio subir a parada da linguagem politicamente descabelada, afirmando que António Costa deixou o Governo por «indecente e má figura», o que, além da mesquinhez política, constitui uma ofensa pessoal contra quem se viu obrigado a demitir-se, nas circuntâncias conhecidas, para salvaguardar a dignidade das instituições.

Pelos vistos, o PSD parece apostado em competir com o Chega na degradação do nível do debate político.

2. Esta linguagem anormalmente agressiva, especialmente surpreendente no caso de Passos Coelho  - um político na reserva, por via de regra contido -, revela um manifesto clima de crescente nervosismo para as bandas do PSD, o que se pode compreender, tendo em conta a perspetiva de perder as eleições, dada a incapacidade de se apresentar como alternativa de governo credível. 

Felizmente, tanto Costa como P. N. Santos ignoraram olimpicamente as acusações, o que só acentua o risco de este desbragamnento da linguagem política se virar, como é devido, contra o PSD.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (43): Pseudónimos de Belém

1. Não satisfeito com bater, de longe, todos os recordes de declarações públicas de todos os PR precedentes, Marcelo Rebelo de Sousa recorre ainda a outros canais menos ortodoxos de comunicação com o público, como é o caso de alguns jornalistas que se dispõem a funcionar como seus "ventríloquos", atribuindo as suas declarações - citadas entre aspas, para não deixar dúvidas -  a «fontes de Belém», à «Presidência», a «assessores» ou «conselheiros» anónimos ou, mesmo, aos «corredores» do Palácio! É caso para dizer: "rabo escondido com o gato de fora"...

Tal é o caso (não único, aliás), da jornalista Ângela (Rebelo de Sousa) Silva no Expresso, como se pode verificar nesta peça da edição do fim de semana passado do semanário (link reservado a assinantes).

Nenhum deles sai bem deste exercício: o Presidente, porque dá tratamento privilegiado aos jornalistas e aos jornais que se prestam a tal jogo e porque não assume a responsabilidade pessoal pelas opiniões veiculadas por tais pseudónimos; a jornalista, porque se deixa instrumentalizar como simples megafone de Belém e porque viola um dos mais importantes deveres deontológicos do jornalismo, que é a identificação das fontes de opiniões.

2. Acresce que, a coberto de tais pseudónimos, o Presidente permite-se produzir comentários políticos que dificilmente ele poderia fazer em nome próprio, como é o caso da peça citada, incluindo a denúncia de uma suposta «campanha do PS» contra ele, juízos sobre o Primeiro-Ministro ainda em funções ou sobre o novo líder do PS, ou opiniões sobre a estratégia eleitoral mais desejável para a oposição.

Ora, nada disso é compatível com o estatuto de neutralidade político-partidária que é inerente ao "poder moderador" que a Constituição lhe confere, não sendo por acaso que Constant, o inventor desse "quarto poder", há dois séculos, o designou justamente como poder neutro.

Se, entre nós, o PR não é eleito para governar ou cogovernar, nem para exercer tutela sobre o Governo, tampouco é eleito para se imiscuir no combate político-partidário, muito menos em período eleitoral, o que torna ilegítima qualquer tomada de partido por parte de Belém.

Adenda
Um leitor pergunta se era a estas situações que António Costa se queria referir, quando «mencionou os "heterónimos" de Marcelo [Rebelo de Sousa]» (link AQUI). Suponho que sim, mas julgo que essa noção pessoana não convém a esta situação, pois os heterónimos têm personalidade própria, independente do seu criador, enquanto aqui os tais jornalistas não passam de veículos, arautos, da "voz do dono".

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Não é bem assim (18): Carga fiscal

1. Não é nenhuma novidade - ao contrário do que parece pretender este estudo - que a carga fiscal em Portugal, medida pelo rácio receita fiscal / PIB, é inferior à de vários Estados-membros da UE e mesmo menor do que a média da UE. 

Porém, como mostrei AQUI, isso não que dizer que ela não seja relativamente elevada, quando comparada, como deve ser, com a de países com nível de riqueza próximo ao nosso.

2. Um ponto em que estou de acordo neste estudo é a reintrodução do imposto sobre sucessões e doações de elevado montante, que defendo há muito (por exemplo, logo em 2005, AQUI) e que o PS chegou a contemplar no seu programa eleitoral de 2015, mas que depois caiu no programa de governo da "Geringonça" 

Todavia, a meu ver, a razão para defender esse imposto não é tanto por causa da receita gerada, que nunca seria muito elevada (dado o previsível pequeno número de contribuintes), mas sim como instrumento de redução da crescente desigualdade de riqueza, que ameaça a coesão social e política e a estabilidade das democracias liberais.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Estado social (12): Coisas ligadas

1. No recente relatório da OCDE sobre as pensões, quase toda a nossa imprensa preferiu destacar em título o facto de Portugal se ir manter no futuro entre os dez países com idade de aposentação mais elevada, concretamente no 8º lugar. O que a imprensa prescindiu de sublinhar, remetendo para o corpo do texto  - como é habitual - é que, em contrapartida, Portugal se mantém também entre os países em que é mais elevado o rácio entre o valor da pensão e o último rendimento no ativo. 

Ora, tendo em conta a sustentabilidade do sistema de pensões, é evidente a correlação entre aquelas duas variáveis: por princípio, para se obter uma pensão mais elevada, é necessário ter mais anos de contribuição, o que implica uma aposentação mais tardia.

2. Há bons argumentos para sustentar que a fórmula portuguesa - aposentação mais tardia, pensão mais elevada - tem vantagens sobre a fórmula inversa, pois assegura mais anos de remuneração no ativo e uma pensão mais elevada na aposentação -, portanto, um rendimento globalmente mais alto. O preço a pagar é evidentemente menos anos de ócio como aposentado.

Em todo o caso, o que parece evidente é que não faz sentido falar separadamente na idade da aposentação (como fez a generalidade da imprensa).