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quarta-feira, 14 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Instrumentalização do Conselho de Estado

1. A expectativa, deliberadamente criada pelo PR, sobre a reunião do Conselho de Estado em julho, para fazer o «ponto de situação (...) sobre a evolução da economia, sobre a situação social e sobre a situação política», é mais do que problemática em termos constitucionais. 

Com efeito, tal como já aqui chamei a atenção há dois anos, o Conselho de Estado, como órgão consultivo do PR, só deve ser chamado a pronunciar-se sobre matérias da competência presidencial, que estão devidamente enunciadas na Constituição, e não sobre a condução da política do País, que constitui competência exclusiva do Governo. 

Por isso, é inteiramente descabido convidar o Conselho de Estado a pronuncuiar-se sobre a orientação geral do Governo, sobre políticas sectoriais, sobre prioridades orçamentais e, muito menos, sobre a composição ou a consistência do Governo. Sucede que o Governo só responde politicamente perante o parlamento, não perante o PR, muito menos perante o seu órgão consultivo

2. O Conselho de Estado não é uma segunda câmara parlamentar (e, de resto, na generalidade das democracias parlamentares com parlamentos bicamarais, a responsabilidade política dos governos é efetuada somente perante a câmara baixa). 

A convocação do Conselho de Estado para "fazer o ponto político" após do debate do Estado da Nação na AR (marcado para 19 de julho), como se fora uma segunda volta desse debate, constitui manifestamente uma tentativa de desconsiderar o escrutínio parlamentar, dando a última palavra aos conselheiros do Presidente - em cuja composição, et pour cause, há um claro desequilíbrio entre a direita e a esquerda, em favor da primeira -, com o óbvio eco na imprensa.

Esta ilegítima instrumentalização do Conselho de Estado e dos seus membros inscreve-se claramente no projeto, que já várias vezes aqui denunciei, de subverter o regime político-constitucional de separação de poderes num sentido presidencialista, dando ao PR um papel de tutela política sobre o Governo, que ele constitucionalmente não pode ter

Adenda
Perguntam-me como apurei a inclinação político-partidária no Conselho. Levei em conta somente os membros com filiação partidária pública (os do PSD e CDS e os do PS), não incluindo, portanto, os membros partidariamente independentes. Em todo o caso, esse ponto é relativamente irrelevante na minha crítica, que tem a ver com a abusiva transformação do Conselho num forum oficial paralelo de escrutínio político, à margem da sede própria - o parlamento.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): O "mister"

1. Segundo a Constituição, o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, naturalmente quanto ao exercício dos seus poderes próprios. Por isso, deve ser a instância em que o Presidente ouve os conselheiros sobre os temas que lhe propõe.

Todavia, segundo esta notícia, o Presidente já tem escrito o discurso que vai fazer na reunião de hoje do Conselho, mesmo antes de ouvir os seus membros, incluindo o Primeiro-Ministro, que teve de se ausentar da reunião anterior. Pelos vistos, em vez de discreto local de consulta presidencial, coligindo as opiniões nele expendidas, o Conselho de Estado está a ser transformado numa câmara de eco das opiniões presidenciais, logo depois indevidamente vazadas para os media.

2. O que a ordem de trabalhos definida para a esta reunião do Conselho de Estado revela, em conclusão da anterior, é a compulsivo propósito do PR de assumir como supremo definidor da agenda política interna e externa do País, condicionando a orientação e as políticas do Governo, de acordo com o seu programa, claramente à margem da Constituição, segundo a qual é ao executivo, e só a ele, sob orientação exclusiva do Primeiro-ministro, que compete a condução da política geral (interna e externa) do País, pela qual responde perante o parlamento (e não perante o Conselho de Estado), do qual depende politicamente, apenas com a obrigação de manter o Presidente devidamente informado (a que a doutrina acrescenta um dever de consulta qualificado em matéria de política de defesa e de política externa). Manifestamente, o PR não tem um poder de superintendência política sobre o Governo.

Lamentavelmente, estamos assistir a uma deliberada tentativa presidencial de modificação do sistema de governo e de repartição de responsabilidades políticas constitucionalmente estabelecido. Importa denunciá-lo, para que não passe despercebido.

Adenda

Penso que o PM fez bem em não coonestar o exame político do Governo a que o PR abusivamente pretendeu submetê-lo no Conselho de Estado. Nem o Governo responde politicamente perante o PR (somente perante a AR), nem o Conselho é uma segunda câmara parlamentar com poderes de escrutínio político (como assinalei na altura). Era tempo de fazer prevalecer o quadro constitucional.

Adenda 2
Discordando da minha análise, um leitor argumenta que o PR goza de uma legitimidade eleitoral mais forte do que do Governo, por ser eleito por maioria absoluta dos cidadãos e não poder ser demitido, pelo que se compreende «que lhe caiba definir as orientações políticas do País». Mas não tem nenhuma razão. A principal conquista do constitucionalismo moderno, há dois séculos e meio, foi a substituição da concentração de todo o poder nas mãos do monarca (absolutismo régio) pela sua repartição por vários órgãos de poder (separação de poderes), cada um deles com a sua tarefa própria. Ora, em Portugal, o Presidente não é eleito para governar nem para mandar no Governo: não escolhe o Governo, não governa nem cogoverna, nem tem nenhuma competência para definir as orientações governativas. Consequentemente o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente. Obviamente, o leitor não tem de conhecer este quadro constitucional dos poderes presidenciais, mas o Presidente conhece, e bem!

terça-feira, 1 de julho de 2014

O Conselho de Estado do estado a que chegamos

"Veremos se no Conselho de Estado se discute e recomenda a absoluta urgência de se fazer uma reforma fiscal de fundo e transversal (e não apenas sectorial,  como foi a que vergonhosamente incidiu apenas sobre o IRC beneficiando as maiores empresas), para distribuir com transparência, equidade, progressividade e previsibilidade a tributação e de forma a por cobro ao actual sistema que  incentiva a evasão e fraude fiscais e que compensa e protege os maiores criminosos fiscais, como os banqueiros do BES beneficiados por obscenas amnistias fiscais.
Veremos também se no Conselho de Estado se vai discutir e delinear uma estratégia para o país sair do estado desesperado em que Troika e coligação o deixaram. Veremos se o Conselho de Estado assenta numa orientação para renegociarmos no quadro europeu as dívidas soberanas impagáveis - a nossa e a de outros países - e para lograrmos uma substancial redução dos juros que o país paga, incompreensíveis e iníquos face aos pagos pelos nossos parceiros Espanha e Irlanda, que também tiveram de recorrer a resgates. Agora que até já o FMI -  insuspeito de esquerdalho - vem admitir que teria sido melhor para Portugal ter avançado com a reestruturação da dívida soberana, continuar entrincheirados, como continuam Governo e Presidente da República, no reduto teutónico avesso à renegociação, não é bandeira patriótica ou ideológica: é, simplesmente, estupidez criminosa".


(Notas da minha crónica de hoje no "Conselho Superior" da ANTENA 1 - transcritas na íntegra na ABA  DA CAUSA, aqui:http://aba-da-causa.blogspot.fr/2014/07/o-conselho-de-estado-do-estado-que.html

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Reconhecer o Estado Palestino

O Presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, discursa perante a Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas no dia 23 de Setembro para pedir o reconhecimento do Estado Palestino.
O estatuto de membro efectivo da ONU precisa de acordo do Conselho de Segurança, (CS) não basta ir a votos na AG.
Antecipando o veto norte-americano no CS (ai Obama! onde vai o discurso do Cairo...), os palestinos poderão limitar-se a ir à AG, e ficar-se pelo estatuto de "Estado observador", como tem, por exemplo, o Vaticano. Será indubitavelmente um progresso político, pois hoje a Autoridade Palestina só tem estatuto de "Entidade Observadora" na ONU.
O jogo fica muito mais complicado se os palestinos exigirem mesmo uma posição do Conselho de Segurança. Para os palestinos, mas também para os EUA e para a Europa. Até o equilibrista Tony Blair já foi mobilizado para evitar a todo o custo que a questão vá a votos no CS!...
Aliás, a Europa parece ser, singularmente, quem está mais embaraçada, porque poderá aparecer mais uma vez dividida,(Líbia, crise do euro) apesar de todas as posições comuns que foi tomando sobre esta fundamental questão, desde a Declaração de Veneza (1980).
Mesmo que os palestinos acabem por desistir de ir ao CS para não alienar os EUA, como já têm votos mais do que necessários na AG, mais do que o resultado final, contará na AG quem vota e como vota. E lá deverá ficar a divisão europeia a descoberto!
Para além do esforço político, diplomático e também financeiro na região e, muito em particular, na Palestina, será muito negativa uma posição fragmentada da UE relativamente ao reconhecimento do Estado Palestino. Como muito bem explicam Daniel Levy e Nick Witney, num relatório do European Council on Foreign Relations (http://www.ecfr.eu/page/-/ECFR_IsrPal_memo.pdf) , uja leitura recomendo, a UE esteve sempre na linha frente no apoio a uma solução para o conflito israelo-palestino passando por dois Estados, com base nas fronteiras de 1967.
Votos europeus negativos às aspirações palestinas (Alemanha, Italia, Holanda e Republica Checa estarão inclinados a votar contra) no actual contexto, não seriam apenas desastrosos para a influência da Europa sobre os palestinos e na promoção do processo de paz: seriam também machadadas nos ideais e aspirações que estão na génese da Primavera Árabe.
E assim, não ajudariam em nada a dar segurança a Israel: a Primavera Árabe não foi sobre Israel, mas iria lá chegar, como o recente ataque à embaixada israelita no Egipto já ilustra...
Quem realmente queira defender Israel, tem de defender Israel de si próprio: a campanha encarniçada do governo israelita contra o reconhecimento do Estado Palestino, só pode resultar numa escusada, estúpida e contraproducente derrota política para Israel.
Quem realmente queira proteger Israel tem de parar de ser conivente com a impunidade de que tem beneficiado este seu governo de extrema direita, que tudo tem feito para descredibilizar os interlocutores palestinos e se obstina no não-retorno à mesa das negociações (apesar do patético "spinning" em que se desunham por estes dias os representantes oficiais israelitas).
O reconhecimento do Estado Palestino nada tem de contrário à segurança de Israel e, muito menos, à paz no Médio Oriente. Bem ao contrário, sem Estado Palestino ao seu lado, Israel corre riscos existenciais, desde logo não podendo conceber-se como Estado judeu.
O reconhecimento do Estado Palestino poderá ser mesmo a única maneira de evitar que os ventos da Primavera Árabe ateiem o rastilho da revolta contra Israel na região.

E Portugal, onde está? Tendo até hoje particulares responsabilidades como membro do CS e com a campanha que fez para lá ir parar?
O Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, falou no dia 2 de Setembro, à saída da sua primeira reunião de MNEs europeus, na Polónia, para dizer que a Europa tudo fará pela Palestina e "nada contra Israel".
O "soundbyte" ressoou em todos os meios de comunicação social, apesar de nada esclarecer sobre a posição de Portugal.
Dizer o que disse o Ministro Paulo Portas é o mesmo que não dizer nada. É saída à xico-esperto, a esconder-se atrás dos parceiros europeus. É pôr Portugal em cima do muro, a ver para que lado cai a bola. Só que a borrasca é da grossa e ninguém vai poder passar entre os pingos da chuva.
Portugal só pode ter uma posição e deve afirmá-la para influenciar a definição europeia: a favor do reconhecimento do Estado Palestino.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.

sábado, 20 de março de 2021

O que o Presidente não deve fazer (26): Política de defesa

1. Não se justifica, nem em termos políticos nem constitucionais, que o Presidente da República convoque uma reunião do Conselho de Estado para debater propostas governamentais de alteração da Lei de Defesa Nacional e da Lei das Forças Armadas.

O Conselho de Estado só deve reunir para aconselhar o Presidente no exercício das suas funções. Ora, a política de defesa e de gestão das forças armadas é da competência exclusiva do Governo, e o Presidente não tem competência no exercício do poder legislativo, algo como um "direito à participação legislativa". 

Como defendo há muito, em matéria de política de defesa (e de política externa), o Presidente da República tem direito a uma informação qualificada e a ser consultado por parte do Governo. Mas não mais do que isso.

2. Nem se diga que, no final, o Presidente da República sempre tem o poder de apreciar as duas leis, para efeitos de promulgação e de eventual veto. Mas isso é depois de concluído o procedimento legislativo no Parlamento, o qual dever decorrer sem interferência presidencial.

Nessa altura, pode justificar-se a reunião do Conselho de Estado para habilitar uma tomada de posição mais bem informada. Aliás, penso que o Presidente podia recorrer mais vezes ao Conselho de Estado para o exercício do poder de veto legislativo, sobretudo quando estão em causa leis da Assembleia da República, pois o veto político implica sempre uma exceção à soberania legislativa do parlamento, não devendo ser decidido de ânimo leve. 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Praça da República (61): Desfragmentar o Governo

1. Mesmo antes das eleições, António Costa comprometeu-se a tornar o Governo "mais compacto", o que passa necessariamente pela redução do número de ministérios e secretarias de Estado, que atingiram um número record no Governo cessante

Independentemente da qualidade dos seus atuais titulares (que aqui não está em causa), há ministérios sem consistência política bastante, de âmbito demasiado estreito, ou que responderam a necessidades conjunturais. E quanto ao excesso de secretarias de Estado, não se compreende que haja ministérios com nada menos de quatro e que alguns "miniministérios", que bem podiam ser secretarias de Estado, tenham várias secretarias Estado!

A redução da fragmentação governamental pode agilizar o funcionamento do Conselho de Ministros e das equipas ministeriais, contribuir para uma melhor coordenação e unidade de ação do Governo e reduzir a sua exposição a pressões setoriais. 

2. Em contrapartida, penso, porém, que é altura de encarar, como há muito defendo e ocorre em vários Estados-membros da UE, a separação e autonomização da pelouro governamental para a coordenação e execução da política europeia, que não há nenhuma razão para se manter no MNE e que deve ser confiada a um responsável governamental (ministro ou secretário de Estado) sob tutela direta do PM.

A política europeia em geral não faz parte da política externa, tendo a ver com quase todas as políticas internas. Em matéria de UE, o MNE deve limitar-se a participar no Conselho de Negócios Estrangeiros da União sobre a ação externa. 

Importa que a importância política da UE na política interna encontre expressão na organização governamental.

3. A composição dos últimos Governos tem sido justamente sensível a uma preocupação com o equilíbrio de género, incluindo um número crescente de mulheres. É de esperar que o próximo Governo represente um novo avanço nesse sentido.

Menos significativo, se algum,  tem sido o esforço para atenuar o monopólio governativo de Lisboa (com uma quota para o Porto), o que, num País ainda muito centralizado, faz correr o risco de enviesar em favor das duas áreas metropolitanas as decisões sobre investimentos públicos, localização de serviços e recrutamento de quadros públicos.

4. Criou-se entre nós o hábito de mudar o nome dos ministérios, mesmo quando eles se mantêm com o mesmo núcleo do de competências, muitas vezes para introduzir qualificações ou aditamentos fúteis.

Essa prática não acarreta somente despesa desnecessária com novas placas nos serviços e novos endereços postais e eletrónicos, mas também quebra a continuidade institucional. Só deve haver mudança em caso de fusão ou agregação de ministérios. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não precisou de mudar de nome, só porque a evolução semântica fez perder à palavra "negócios" o antigo  significado de "assuntos"...

É tempo de acabar a mudança dos nomes dos ministérios por puro caprichismo ministerial ou modismo político.

5. Uma última declaração de princípio, que reitero há muito: espero que o Governo cessante tenha sido o último em que o ministério da Justiça é ocupado por um juiz ou um magistrado do Ministério Público, o que não só põe em causa o princípio da separação de poderes e a independência política do poder judiciário, mas também corre o risco de tornar o ministério vulnerável ao poderoso lobby dos respetivas corporações. As pressões políticas mais nocivas sobre o Governo são as endógenas, in house.

São riscos que importa não correr.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Assim, não (6): O mal e a caramunha

Dois conselheiros de Estado, ambos de direita, que acumulam com a função de comentadores políticos, vieram criticar o Primeiro-Ministro por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado

Ora, eles sabem bem porque é que ele tomou, e bem, tal decisão, como expliquei AQUI: (i) porque não devia coonestar a "golpada" presidencial (política e constitucional), de tornar abusivamente o Conselho em órgao de julgamento político do PM e do Governo e num órgão de definição da política geral do País; (ii) e porque o PR anunciou antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento (o mesmo é dizer, o seu veredicto), sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada.

Ora, se se pode compreender que os dois conselheiros, ambos designados pelo próprio PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que manifestamente concordam, tendo ambos intervindo no "julgamento", por maioria de razão deveriam poupar-se a condenar publicamente o PM, por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação...

Adenda
Concordando com este post, um leitor sublinha: «Que grande descaramento!».

Adenda 2
Outor leitor observa que, por via de regra, é o PM que precisa de consultar o PR e não o contrário, pois este não goza de poderes executivos, e se precisar de ouvir aquele sobre qualquer assunto, ele não precisa de convocar o Conselho de Estado, tendo os encontros semanais ordinários entre ambos para o fazer. Tem razão.

Adenda 3
O Conselheiro Lobo Xavier escreveu-me a dizer que, contrariamente à minha acusação (baseada numa notícia do Expresso, devidamente invocada no post acima), não se pronunciou sobre o silêncio do PM: «a minha afirmação expressa [foi] a de que não me pronunciaria sobre o que se passou no Conselho de Estado, e muito menos comentaria o alegado silêncio de António Costa». Aqui fica a devida correção, repondo a verdade

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A PGR submerge diante de réus alemães?

Os três Pareceres da Procuradoria-Geral da República persistentemente pedidos pelo ex-Ministro da Defesa Nacional, Augusto Santos Silva, sobre o contrato de aquisição de submarinos e correspondente contrato de contrapartidas, foram publicados em Diário da República no dia 7 de Julho, como noticiou o PÚBLICO a 8 de Julho, no artigo "Alemães acusados na venda de submarinos evitarão pena se Estado deixar cair caso", .
Desde final do ano passado que tentei por mais de uma via, obter os referidos Pareceres, até para os juntar à fundamentação da queixa formal que entreguei, em Dezembro de 2010, à Comissão Europeia sobre os dois contratos (queixa que foi aceite e está a seguir o curso de investigação). Nunca tive resposta a pedido escrito que dirigi ao Senhor Procurador Geral da República em 16 de Fevereiro deste ano.
Agora que os Pareceres estão publicados, vou procurar analisá-los com atenção.
Mas, como sublinhava o PÚBLICO, desde logo salta à vista a sugestão da PGR de que o Estado possa vir a desistir das acusações contra os três gestores alemães arguidos no processo das contrapartidas por crime de burla qualificada contra o próprio Estado! Desistência que a PGR admite, em troca de reparação integral do prejuízo que resultar para o Estado até à data do julgamento.
Há já demasiados sinais alarmantes a caracterizar este caso:
- Basta recordar que as duas procuradoras que iniciaram e desenvolveram esta investigação foram dela afastadas há uns meses, a pretexto e com metodologia altamente suspeitos.
- Basta recordar que o Juiz Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal, quando decidiu levar a julgamento o processo das contrapartidas, se sentiu compelido a deixar registo, no seu próprio despacho, das pressões e intimidações que se exerciam para influenciar a decisão.
Agora, atentos os Pareceres da PGR publicados, é alarmante constatar que uma instituição que deve defender o Estado sugira que suspeitos de fraude, burla qualificada e falsificação de documentos possam sair ilibados de crimes que lesaram gravemente o Estado e os contribuintes portugueses, explicitando condições e critérios para os fazer escapar à Justiça. Acresce que, se se ilibam os estrangeiros, a que título se manterão acusações contra nacionais?
A extinção da responsabilidade criminal no processo das contrapartidas, movido pelo Ministério Público contra três gestores alemães e uns tantos portugueses, seria absolutamente intolerável, dados os contornos criminais, económicos e políticos, de âmbito nacional e europeu, que o caso assume.
Os crimes de que os réus são acusados lesaram gravemente o Estado e foram cometidos com o claro intuito de o lesar: se o Estado se demitisse da responsabilidade de perseguir judicialmente os suspeitos, estaria a fazer troça de si próprio. E de nós todos, os contribuintes portugueses a pagar os submarinos.
Na sua curiosa percepção dos interesses da República, o Conselho Consultivo da PGR opina que o Estado não pode valer-se do incumprimento do contrato das contrapartidas para colocar em causa o contrato de aquisição de submarinos (“não há consequências na execução do Contrato de Aquisição decorrentes da execução do Contrato de Contrapartidas”, diz o parecer). Esta opinião, conjugada com o reconhecimento pelo Conselho Consultivo da PGR da legitimidade do Tribunal Arbitral para dirimir qualquer litígio no que respeita a execução do contrato de contrapartidas, conforma-se estranhamente com o facto de os representantes do Estado, à data da celebração dos contratos em 2004, não terem sabido proteger os próprios interesses do Estado e terem colocado o bem público à mercê da prevaricação.
Por todos os sinais alarmantes, que estes Pareceres da PGR só vêm adensar, interpelei já por escrito o Primeiro-Ministro, Dr. Pedro Passos Coelho, no sentido de garantir que Portugal não saia ainda mais lesado de toda a trapalhada da aquisição dos submarinos e fictícias contrapartidas. Designadamente assegurando que o Estado não desiste de julgar todos os reús no processo das contrapartidas e rapidamente conclui a investigação e faz avançar para julgamento o processo relativo à aquisição dos submarinos.

domingo, 17 de abril de 2005

«Oil for food»:Tony versus Kofi

Em nome da honra perdida de Tony Blair, veio Jack Straw desmentir as revelações de Kofi Annan de que os governos britânico e americano fizeram vista grossa a actividades de contrabando do petróleo iraquiano para a Jordânia e a Turquia desde os primeiros anos da aplicação do Programa «Oil for Food».
O Programa permitia ao Iraque vender um determinado valor de petróleo cada seis meses e comprar géneros de primeira necessidade e medicamentos (o rendimento do petróleo ficava depositado numa «escrow acccount» da ONU, à ordem do governo de Saddam, mas apenas utilizável nos contratros de compra autorizados, um a um, pelo Conselho de Segurança). O Programa foi concebido por americanos e britânicos para aliviar a pressão para o levantamento das sanções, resultante do impacte brutal que elas estavam a ter sobre o povo iraquiano desde a Guerra do Golfo I. E foi aprovado pelo CS e aceite por Saddam em 1996, mas só começou a ser aplicado em 1997 - ano em que Portugal entrou para o Conselho de Segurança e lhe coube presidir ao Comité de Sanções ao Iraque (res. 661) .
Ao chegarmos a Nova Iorque no dia 1 de Janeiro de 1997, o Embaixador António Monteiro já tinha à sua espera a primeira resma de contratos no ambito do «Oil for Food» para assinar. E durante os dois anos seguintes - os primeiros de vigência do Programa - teve de apor a sua assinatura em todos os contratos autorizados pelo Comité. Analisar esses contratos, para o nosso Embaixador/Presidente do Comité de Sanções não assinar de cruz (eram pilhas de papeís, diariamente), era uma das responsabilidades da equipa que eu coordenava.
O Programa dava a Saddam a possibilidade de escolher a quem vendia o petróleo e a quem comprava arroz ou computadores (estes sistematicamente bloqueados por ingleses e americanos, alegando serem equipamentos de «dual use»). Não admira, por isso, que Saddam escolhesse a dedo os fornecedores e clientes - chineses, russos e franceses foram obviamente privilegiados (para desespero de várias companhias americanas, que bem tentavam entrar no circuito...).
Ao fim de uns meses, a perversidade do Programa era evidente - eu própria por várias vezes avisei os colegas americanos e ingleses de que, sem querer, tinham dado a Saddam um instrumento ideal para ele orquestrar o jogo de gato e rato que se entretinha a cultivar com o Conselho de Segurança. E também mais uma arma para oprimir o seu povo e suprimir a resistência interna - é que o regime passara a distribuir cabazes de géneros essenciais a todas as famílias (que se portassem na linha, evidentemente...).
De três em três meses, vinha à nossa Missão e ao Comité de Sanções um Almirante americano, da Esquadra da US Navy que patrulhava as águas do Golfo a pretexto de assegurar o cumprimento das sanções. E o Almirante sistematicamente reportava que umas tantas barcaças iranianas faziam contrabando de petróleo iraquiano - a coisa parecia mais para entalar o Irão, que jurava a pés juntos que nada tinha a ver com isso, se acontecia era à revelia das autoridades, etc...
Não sei quantas vezes eu, colegas portugueses e diplomatas de outros países dissemos a americanos e ingleses que aquele «vaudevillle» era demasiado mau: é que toda a gente sabia que muito mais petróleo do que o transportado nas barcaças iranianas, era o que abastecia regularmente a Jordânia, fornecido por Saddam, com a benção - tácita, mas indesmentível - dos EUA e RU (a contrapartida de comprarem a colaboração jordana neste e noutros tabuleiros e a maneira de não terem de compensar mais Amã pelos danos à sua economia causados pela Guerra e pelas sanções ao vizinho). A fila de camiões-cisterna era constante, ao longo da estrada Bagdad-Amã, como toda a gente podia verificar. Como constante era também a fila de camiões-cisterna que levavam de contrabando o petróleo de Saddam, de Kirkurk para o porto de Ceyhan, na Turquia, com americanos e ingleses a fazerem vista-grossa aos proventos dos parceiros-NATO otomanos, também eles chorando-se pela perda do comércio com o vizinho. Num dos «briefings» que a nossa delegação teve no Departamento de Estado, em Washington, lembro-me que os próprios americanos nos mostraram fotografias aéreas dessa fila permanente (o objectivo era demonstrar-nos como Saddam mentia e enganava, o que estavamos fartos de saber...).
Na abundante telegrafia que diariamente, durante aqueles dois anos, mandamos da nossa Missão em NY para o MNE, encontram-se múltiplos relatos do que acima descrevo.
Kofi Annan tem razão quando denuncia o comprometimento dos governos americano e inglês, numa altura em que o «Oil for Food» é utilizado como arma de arremesso contra a ONU (atenção, pelo «rapaz» Benon Sevan, que a certa altura passou a dirigir o Programa, e pelo filho do Kofi, eu não ponho as mãos no fogo...).
Tony Blair tem razões para sentir má-consciência em relação ao Iraque e fúria por Kofi ter frizado que a invasão do Iraque foi ilegal. Lata também não lhe falta: até manda Jack Straw fazer figura de virgem ofendida!...Coitado do Straw, que ao tempo, nem sequer estava no Foreign Office É perguntar ao Robin Cook, o Foreign Secretary de então. E ele decerto confirmará. Que o Kofi tem carradas de razão.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Questão de Estado

Um velho amigo pede-me que me pronuncie sobre o «alarme nacional e internacional do BESI e do BES» e sobre a «descarada e inadmissível intromissão política do PR e do Governo (aliás coligação) em assunto de tamanha sensibilidade e gravidade».
Eis como vejo a situação:
- O caso do BES e do grupo BES, a que todos os dias se somam mais motivos de preocupação e mesmo de incredulidade, está a assumir a dimensão do escândalo, que deixa a léguas de distância os anteriores "casos" bancários entre nós.
- Julgávamos que o gangsterismo bancário estava limitado aos "banqueiros" arrivistas e aventureiros, do tipo BPN e BPP, que se aproveitaram do laxismo trazido pelo neoliberalismo nos anos 80 e do favoritismo político que as ligações partidárias permitiram; afinal, o caso BES/BESI mostra que a falta de escrúpulos e de deontologia bancária atinge o círculo dos banqueiros de mais alto pedigree.
- Para o bem e para o mal o BES era o "banco do regime", pela sua história, pelo seu peso, pelas suas participações em empresas-chave (PT, EDP, etc.), pelo seu estatuto de banco oficioso de todos os governos; a crise do BES arrisca-se, por isso, a assumir a dimensão de uma crise sistémica, sendo por isso uma questão de Estado, que exige uma solução radical.
- O BES tem de passar a ser um banco normal; tem de acabar a ligação umbilical entre o Banco e o Estado; a partidarização e governamentalização da gestão do novo BES, mantendo a "porta giratória" entre o Banco e a esfera política, não ajuda à solução, só agrava o problema; o Governo e o Presidente da República deveriam ter uma palavra forte nesse sentido.
- É meritório e bem vindo o empenho do Banco de Portugal em separar o Banco dos negócios escuros da família Espírito Santo, mas isso pode não bastar; no estado em que a situação chegou, toda a confusão é letal, pelo que se impõe a diluição do domínio accionista da família no Banco e a própria mudança do nome do Banco.
- Impõe-se também a mudança do sistema de governo do Banco, acabando com a confusão entre poderes deliberativos e executivos no mesmo órgão (o conselho de administração) e introduzindo um modelo de governo "à alemã", com a separação entre um órgão deliberativo e de supervisão e um órgão executivo, de modo a conferir mais transparência e mais responsabilidade à gestão do banco; a separação de poderes nunca fez mal em nenhuma organização.
- A economia de mercado, onde o sistema financeiro representa o motor cardíaco, precisa de uma estrita regulação e supervisão bancária; quando esta falha, o sistema derrapa, e a selva impera, como se tem visto desde o início da crise financeira há meia dúzia de anos; o escândalo do BES, culminando uma série de outros escândalos bancários entre nós, há-de ficar na história como a marca de uma era em que o Banco de Portugal "dormiu na forma e não cumpriu a sua missão de supervisor, colocando definitivamente o problema de saber se o supervisor dos bancos não deveria ser independente dos bancos, incluindo o próprio Banco de Portugal; o supervisor dos banqueiros não deve pertencer à corporação dos banqueiros.
- Numa economia de mercado bem ordenada não basta a lei e a regulação do Estado, não podendo abdicar-se da autorregulação e da deontologia profissional; já há muitos anos defendi (ver aqui) que a associação de banqueiros deveria aprovar um código deontológico e velar pelo respeito do mesmo; não tenho dúvidas de que os banqueiros portugueses que respeitam as leis e as regras da profissão não podem estar confortáveis com a situação; então, por que não saem a terreiro em favor do "saneamento moral" do sector, em vez de deixarem pairar sem contradita a ideia fatal de que banqueiro quer dizer negócios esconsos e enriquecimento sem regras?

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Praça da República (56): Reordenar as ordens profissionais

1. Existe finalmente uma iniciativa legislativa destinada a reordenar o regime jurídico das ordens profissionais, cujos principais objetivos são quatro: 

- combater a atávica tendência das ordens, tanto para limitar o acesso à profissão (malthusianismo profissional), sobretudo através de exames e estágios à entrada na profissão, como para expandir a esfera das atividades profissionais reservadas aos seus membros (monopólio profissional)

- admitir a prestação integrada de diferentes serviços profissionais (por exemplo, advocacia e consultoria financeira, economia e engenharia), através de escritórios multidisciplinares;

autonomizar e reforçar a função pública de regulação, supervisão e disciplina das ordens, através de uma reformulação da composição e das competências do conselho de supervisão, que o regime vigente já prevê; 

- reforçar os direitos dos destinatários dos serviços profissionais contra abusos ou más práticas profissionais, através da obrigatoriedade do provedor do utente.

É fácil ver que esta iniciativa legislativa ataca os principais pontos críticos da atual regulação jurídica das ordens e das más práticas de quase todas elas, colocando-as ao serviços do interesse público que as justifica. 

É de saudar e de sufragar, portanto, esperando a sua aprovação parlamentar.

2. Todavia, com o tempo, tenho-me tornado cada vez mais crítico da solução tradicional das ordens profissionais, propendendo cada vez mais para suprimir as suas funções corporativas de representação e defesa de interesse profissionais, reduzindo-as a entidades de regulação e disciplina da profissão, em substituição do Estado. 

Entendo que que num Estado de direito liberal, baseado na separação entre o Estado e a sociedade civil, não compete a entidades públicas, como as ordens são, a tarefa de representação e defesa oficial e unicitária de interesse profissionais, a qual deve caber exclusivamente a sindicatos e associações profissionais de livre iniciativa dos interessados.

Não existe nenhuma razão para conferir a certas profissões o privilégio de ter a representação de defesa dos seus interesses profissionais a cargo de entidades públicas, de inscrição e quotização obrigatórias e de representação unicitária, quando as outras profissões têm de recorrer a sindicatos e associações voluntárias, desprovidas de estatuto e de poderes públicos.

Sem enveredar por essa revolução, é evidente que esta iniciativa legislativa, pelo menos, autonomiza e reforça a função de supervisão e de disciplina profissional,  atenuando o risco da sua captura pela função corporativa paralela das ordens. Um enorme progresso!

Adenda
Concordando com a reforma proposta, um leitor comenta que "o que está em causa é assegurar a confiança dos consumidores dos serviços profissionais (advogados, médicos, etc.) quanto ao cumprimento das obrigações deontológicas e das boas práticas profissionais, pelo que é essencial acreditar que as ordens supervisionam efetivamente os seus membros e os punem devidamente quando incorrerem em qualquer violação daquelas regras".
Nem mais! Trata-se de serviços profissionais em geral caracterizados pela "assimetria de informação" entre quem os presta e quem os recebe, pelo que tem de haver confiança dos segundos em que as ordens se encarregam de impedir abusos e de punir os que ocorram.

Adenda 2
Uma das linhas de ataque das ordens ao projeto de reforma consiste em acusá-lo de «retirar às Ordens a competência para a defesa dos interesses gerais dos beneficiários dos serviços». Trata-se, porém, de uma acusação de todo infundada, pela simples razão de que as ordens nunca tiverem tal poder. Nada na lei confere, por exemplo à Ordem dos Médicos, o poder de efetuar inspeções aos serviços de saúde públicos ou privados, como por vezes tem sucedido, à margem da lei. As ordens têm, sim, o poder (e o dever) de defender os direitos dos destinários de serviços profissionais contra eventuais abusos dos próprios profissionais. Acontece que, perante a passividade do Governo e do Ministério Público, algumas ordens têm preferido usurpar poderes que não têm, em vez de exercerem os poderes que legalmente têm a abrigação de exercer e que justificam a suaa criação pelo Estado. 

Adenda 3 

Outro argumento na "cruzada" das ordens contra a projetada reforma consiste em acusá-la de instituir a "ingerência" do Governo nas ordens, sacrificando a sua independência e a sua autonomia. Também aqui, sem razão. De facto, o projeto não agrava em nada a tutela governamental sobre a ordens nem prevê qualquer outro tipo de ingerência governamental suscetível de pôr em risco o autogoverno e a autonomia funcional das mesmas. Trata-se de lançar areia para os olhos da opinião pública. Mas não deixa de ser curioso que quem denuncia infundadamente um alegado propósito de ingerência governamental nas ordens seja quem pretenda manter uma ilegítima ingerência destas na esfera administrativa do Governo, a pretexto da defesa dos direitos dos cidadãos. Trata-se de "fazer o mal e a caramunha".

domingo, 31 de março de 2024

Não concordo (46): Dois erros na formação do Governo

1. Além da problemática nomeação de uma advogada para a pasta da Justiça nas atuais circunstâncias, como referi anteriormente, há mais dois aspetos em que discordo na composição do novo Governo.

O primeiro é a nomeação da Juíza-Conselheira Margarida Blasco para ministra da Administração Interna (ou qualquer outra pasta), porque, desde sempre (por exemplo, AQUI), considero que a nomeação de magistrados judiciais para cargos políticos sem prévio abandono da carreira judicial viola flagrantemente o princípio da separação de poderes e a independência partidária da magistratura (e não estou sozinho neste ponto). Apesar de já jubilada, tal estatuto (a que voltará depois de deixar o Governo) não representa abandono da carreira judicial, mantendo-se vinculada às incompatibilidades próprias da magistratura.

A meu ver, a "porta giratória" entre cargos judiciais e cargos políticos não é compatível com o princípio do Estado de direito.

2. O segundo aspeto negativo é o regresso dos assuntos europeus ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Como defendi anteriormente AQUI, o pelouro dos assuntos europeus - que compreende essencialmente a representação do Governo na formação de "assuntos gerais" do Conselho da União, e a articulação da representação ministerial nacional nas nove restantes formações especializadas do Conselho - tem a ver sobretudo com políticas internas, desde a economia ao ambiente, pelo que deveria continuar sob responsabilidade de um secretário de Estado, na presidência do Conselho de Ministros, ou seja, sob a égide e autoridade superior do Primeiro-Ministro, tal como no Governo cessante.

Além de injustificada, até porque o MNE sempre teria direito a integrar o conselho de ministros da política externa da UE, esta solução constitui, a meu ver, um retrocesso prejudicial à coordenação das políticas da UE com as correspondentes políticas internas, que são competência dos demais ministros sectoriais, e que deveria continuar sob responsabilidade do PM, e não de um ministro sectorial, como o MNE.

Adenda
Um leitor, que sabe do que fala, comenta que se trata de «um claro retrocesso na visão do papel que os Assuntos Europeus têm / devem ter na governação» e que «o relevo dos MNE na política europeia é muito diminuto (salvo a PESC), sendo a política europeia um tema dos chefes do Governo e uma tarefa essencialmente de coordenação ministerial». Inteiramente de acordo.

Adenda 2
Outro leitor objeta que «Montenegro não podia desperdiçar o profundo conhecimento de Paulo Rangel sobre a UE». Eu não contesto obviamente a entrega dos assuntos europeus a Rangel; o que entendo é que, então, devia nomeá-lo Ministros dos Assuntos Europeus adjunto do PM, fazendo um upgrade político desse pelouro governativo essencial e respeitando a sua natureza transversal, em vez de o degradar como secretaria de Estado do MNE, que é um ministério sectorial e que, além disso, tem pouco a ver com a UE. Decididamente, a UE não é uma questão de política externa.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (15): As propostas eleitorais que não encontrei

1. Sem surpresa pessoal, na minha resposta ao inquérito "cego" do Público sobre um conjunto de propostas eleitorais dos partidos com representação parlamentar (mas não explicitamente identificadas com os respetivos partidos), confirmei que estou mais perto do PS e do PAN, por esta ordem, e mais afastado do Chega e do CDS (idem).

Infelizmente, para além de não fazer o pleno do programa de nenhum dos partidos de quem estou mais próximo, também não encontrei na lista várias propostas que há muito defendo, designadamente neste blogue, o que também me afasta de qualquer tentação de filiação partidária. 

2. Assim, por exemplo, quanto a propostas políticas substantivas, recordo as seguintes, sem ordem de precedência:

    - representação dos trabalhadores no conselho representativo (conselho de supervisão, conselho de administração) das grandes empresas, em termos a negociar na concertação social, e participação nos lucros das empresas, em função do aumento da respetiva produtividade;

    - restabelecimento do imposto de sucessões e doações sobre os beneficiários de elevados montantes e sua afetação ao financimento da segurança social;

    - avaliação de desempenho das carreiras especiais, incluindo assiduidade e produtividade, para efeitos de progressão (professores, polícias, Ministério Público, etc.);

   - fim do privilégio pensionístico de magistrados, embaixadores, etc., cujas pensões são sempre iguais à correspondente remuneração no ativo, aliás sustentadas pelas contribuições de todos os trabalhadores, sob o regime geral de pensões, sujeitas a uma "taxa de substituição" cada vez menor;

    - sujeição das prestações sociais não contributivas a "condição de recursos", de modo a beneficiarem somente quem delas efetivamente precisa;

     - pôr fim ao estacionamento automóvel gratuito, ressalvando a preferência dos moradores, a começar pelo proporcionado pelos serviços públicos aos seus funcionários e utentes, para pôr fim a privilégios indevidos e à ocupação privada do espaço público, assim incentivando o uso do transporte coletivo, em vez do automóvel individual;

      - cessar o financiamento do orçamento do Estado, alimentado pelos contribuintes de todo o País, ao metropolitano de Lisboa e do Porto, considerando a responsabilidade municipal ou intermunicipal pelos transportes públicos urbanos.

3. No que respeita a propostas de reforma política, seleciono as seguintes, também sem ordem de prioridade:

      - criar um círculo eleitoral nacional (elegendo cerca de 25 deputados) e redimensionar os atuais círculos territoriais, com um mínimo de 3-5 deputados e um máximo de 9 deputados e valorizar todos os votos, em qualquer parte do território nacional, e reduzir a assimetria entre círculos eleitorais; 

     - pôr as Regiões Autónomas a contribuir congruamente para o financiamento das "despesas gerais da República" (órgãos de soberania, desde o PR aos tribunais, forças armadas e forças de segurança, contribuição financeira para a UE e para organizações internacionais, etc.), não havendo nenhuma justificação para que elas sejam exclusivamente custeados pelso contribuintes do Continente;

   - constitucionalizar o limite ao défice orçamental e à dívida pública (embora deixando o critério preciso para a LEO), assim como limitar o crescimento da despesa corrente abaixo do crescimento da despesa orçamental total, para favorecer a despesa de investimento; 

   -  aumentar a remuneração dos membros do Governo, de modo a não afastar pessoas capazes que não estejam disponíveis para perder muito dinnheiro ao serviço do Estado, assim como o prémio de exlusividade dos deputados, para reduzir o número de deputados em acumulação;

    - estender o limite de mandatos políticos sucessivos a todos os titulares de cargos políticos, e não somente ao PR e aos presidentes de câmara municipal, como hoje.

4. Importa sublinhar que poucas destas reformas carecem de revisão constitucional, embora algumas delas necessitem de aprovação por maioria de 2/3, como, por exemplo, a dos círculos eleitorais, pelo que, num caso e noutro, só uma convergência entre o PS e o PSD pode permitir a sua aprovação.

Adenda
Perguntam-me quais destas propostas deviam ser perfilhadas pelo PS. A minha resposta é TODAS, mas entre as mais "socialistas" selecionaria as seguintes: a participação dos trabalhadores na gestão e nos resultados das grandes empresas; o imposto sobre sucessões e doações de elevado montante; o fim dos privilégios pensionístivos de alguns cargos públicos; criação der um círculo eleitoral nacional e redução da assimetria dos círculos eleitorais territoriais.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

À conquista do Estado

(Assalto ao Palácio de Inverno, 1917, numa representação soviética posterior)

1. Mesmo se surpreendente, a nomeação de Francisco Louçã para o conselho consultivo do Banco de Portugal mostra que a aliança governativa do BE (e do PCP) com o PS não lhes proporcionou somente as medidas de "reversão da austeridade" acolhidas nos acordos entre as partes, e outras ganhas posteriormente (como a subida extra das pensões), bem como o abandono forçado de uma parte do programa eleitoral do PS.
Há a assinalar mais duas vantagens associadas à entrada na esfera do poder:
  - primeiro, uma maior presença nos média (aliás, bem superior à sua representação política) e uma maior capacidade de agitar no debate público a sua agenda política própria, incluindo os temas em que mais divergem do Governo, como a reestruturação da dívida, a saída do euro, a rejeição da política comercial externa da UE, etc.;
  - segundo, a tomada de posições nas instituições do Estado, como o Conselho de Estado, o Tribunal Constitucional, o órgão de gestão do Ministério Público, etc., o que lhes permite potenciar a sua influência política e premiar a sua elite política com cargos oficiais.
Um bom negócio, portanto!

2. Embora proporcionando o necessário apoio parlamentar ao Governo, os dois partidos da extrema-esquerda parlamentar preferiram, porém, ficar fora dele e mantê-lo na situação de virtualmente minoritário, seguramente para não se comprometerem globalmente com a sua ação e para manterem as mão livres para o combater nas áreas contenciosas (e não são poucas). Mas não desdenham entrar dentro do Estado pela mão do Governo.
Transformados de partidos de protesto em partidos de poder (pelo menos a título experimental...), o BE e o PCP trocam também a ideia revolucionária da tomada do Estado do exterior pela ideia de ocupação do Estado pelo interior.
Resta saber se esta entrada dentro do Estado não passa de uma manifestação de "entrismo" oportunista ou se constitui uma genuína conversão da esquerda radical às instituições da "democracia burguesa". Cem anos depois da revolução russa, era conveniente saber se os seus herdeiros ideológicos ainda alimentam o sonho de a replicar à beira Tejo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Voos da tortura - Portugal autorizou

A propósito do telegrama da Embaixada americana hoje divulgado pelo site WIKILEAKS, reproduzo passagens do Requerimento que apresentei à PGR em 8/7/2009, reclamando do Despacho de Arquivamento (DA) da investigação sobre os voos da tortura autorizados a passar por Portugal.
Os textos do DA e do meu requerimento podem ser integralmente lidos aqui.
Ofereço o merecimento dos autos.


"2.b.2.
Importa, portanto, estabelecer, perante a informação - publicamente disponível, pelo menos desde 2003 - sobre a natureza da prisão de Guantanamo, e para investigação dos crimes dos autos, em que informação e em que considerações políticas e/ou jurídicas se basearam as autoridades portuguesas para conceder autorizações diplomáticas para aterrarem em Portugal aos voos militares e de Estado, provenientes ou destinados a Guantanamo.
Esta exigência resulta particularmente reforçada pelo conteúdo do Anexo II da carta de resposta do MNE (datada de 10 de Março de 2009) aos pedidos de informação do DCIAP. Este Anexo II, intitulado “Utilização do Espaço Aéreo Nacional e sob Jurisdição Nacional por Aeronaves Estrangeiras, Civis e de Estado” explica, no capítulo II (“Aeronaves Militares e de Estado Estrangeiras”):
“A) AUTORIZAÇÕES PERMANENTES ANUAIS: Trata-se de uma Blanket Diplomatic Clearance cobrindo diversas categorias de missões pré-definidas...
As autorizações permanentes anuais concedidas por Portugal aos outros Estados caracterizam-se, em princípio, por não permitirem o transporte de material contencioso.”
[ênfase dos autores]
B) AUTORIZAÇÕES ESPECIAIS: Também na modalidade Blanket Diplomatic Clearance, estão actualmente em curso duas autorizações genéricas de sobrevoo do espaço aéreo nacional e utilização da Base das Lajes por aeronaves americanas...: São as Operações “Enduring Freedom” e “Iraqi Freedom”. (ênfase dos autores]
Estas duas autorizações são concedidas a título absolutamente excepcional aos EUA. Portugal não concede autorizações deste tipo a nenhum outro Estado. Elas permitem o transporte de material contencioso e de pessoas...”[ênfase dos autores]
Em primeiro lugar, e perante esta informação, o MP não pode deixar de indagar junto do MNE sobre a natureza concreta do “material contencioso” que estas autorizações permitem transportar.
Longe de pôr em causa a particular estreiteza dos laços bilaterais entre Portugal e os EUA, é imperativo esclarecer se esses laços, neste caso particular, implicavam autorização das autoridades portuguesas para serem levadas a cabo, em território nacional, actividades incompatíveis com o Direito Internacional, com a ordem constitucional da República Portuguesa e com o Tratado da União Europeia.
Segundo, tendo em conta a banalidade do transporte de pessoas em voos militares – especialmente no que diz respeito ao transporte de militares americanos entre os teatros de guerra do Iraque e do Afeganistão – importa esclarecer se a referência a uma permissão especial, por parte do Estado português, para o “transporte de material contencioso E PESSOAS” contempla – explícita ou implicitamente – a transferência de prisioneiros de, ou para, estabelecimentos prisionais fora da legalidade internacional. E, assim, se o Estado português participou durante vários anos, activa e conscientemente, em violações sistemáticas do Direito Internacional e do Tratado da União Europeia.
(...)
11.12.
Não deixa também de ser surpreendente esta conclusão do MP perante a extraordinária admissão do MNE de que o voo militar PAT653 [TUZLA-LAJES-GUANTÁNAMO] “não consta [dos] arquivos”, bem como a negligência do mesmo Ministério em exigir às autoridades americanas informações mínimas sobre a natureza, conteúdo, passageiros e função dos voos que têm Guantánamo como origem ou destino, e que recebem uma autorização genérica de aterragem nas Lajes no contexto da Operação Enduring Freedom [ver o Ponto 2 b) sobre os voos militares].
(...)
2.b.3.2.
Já no caso do voo RCH900Y, o DA, por omissão ou esquecimento, não menciona que este voo é feito no contexto da Operação Enduring Freedom e que, de acordo com o pedido de autorização americano, “this mission will move security forces and medical personnel... approx 95 PAX”.
Ora, esta última informação é determinante, porque revela a prática de troca de informação entre as autoridades militares americanas e o MNE português. Isto é, os EUA por vezes justificavam a razão operacional para – e o conteúdo dos – voos em causa, mesmo quando estes se inscreviam na “blanket diplomatic clearance” da Operação Enduring Freedom. E também é significativa – num voo militar proveniente de Guantanamo que aterrou nas Lajes, as autoridades portuguesas escolheram não se interessar pela identidade dos 95 passageiros(...)
2.b.6.
Neste quadro, é particularmente surpreendente a ausência de informação alegada pelos MNE e MDN sobre a natureza, missão e passageiros, da esmagadora maioria dos voos militares que têm Guantánamo como destino ou origem , nomeadamente sobre o seu contexto operacional específico.
O que revela ou uma selecção cuidadosa da informação a disponibilizar às autoridades portuguesas por parte das autoridades americanas e/ou um manifesto desinteresse por parte do MNE e MDN em garantir que o território nacional não fosse utilizado para actividades incompatíveis com o Direito Internacional, o Tratado da União e a Constituição da República Portuguesa.
Este facto é tão mais significativo quanto, como já se viu em 2.b.2. supra, em termos genéricos, as autorizações a todas estas aeronaves incluem permissão para o "transporte de material contencioso e pessoas”- o que aponta, no mínimo, para dolo eventual de quem autoriza.
(...)
2.b.7.
É particularmente significativo e suspeito, face ao objectivo desta investigação, que tal como decorre dos dados fornecidos pelo DA relativamente às 6 escalas de 5 aeronaves civis mencionadas, que tiveram autorização das autoridades portuguesas para aterrar na Base das Lajes (pag. 105 a 112 do DA), que os respectivos Formulários de Tráfego sejam totalmente omissos em relação à especificação do número dos tripulantes e passageiros.
Estamos numa Base Militar, operada conjuntamente pelas autoridades portuguesas e americanas: esperar-se-ia que o controlo de quem chega e parte fosse ainda mais rigoroso do que num aeroporto civil. Não é o caso, relativamente a estes voos civis privados!
(...)
2.b.8.
Quanto aos voos militares estrangeiros autorizados a aterrar na Base das Lajes, não há dúvidas: as autoridades portuguesas não cuidam minimamente de se assegurar de que tais voos não são utilizados para transportar presos em violação das obrigações internacionais do Estado português em matéria de direitos humanos fundamentais! Mesmo depois de terem sido lançados, em finais de 2005, diversos inquéritos internacionais – incluindo do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa – relativamente às “extraordinary renditions” e à cumplicidade nelas de autoridades europeias.
É isso que resulta, claramente, das declarações feitas pelo actual Comandante português da Base das Lajes/Base Aérea nº 4 (desde Setembro de 2008), Tenente-Coronel Manuel Maria Mories Dionísio, declarações constantes do processo a fls. 2733:
“Quanto às aeronaves enunciadas, não existe qualquer de número e nomes de militares transportados, bem como de carga, pois aqueles não são, em princípio, fornecidos à FAP. Só quando se trata de carga perigosa é que é obrigatório dar conhecimento prévio à FAP do seu transporte”.
(...)
2.b.9
É particularmente significativo das falhas da investigação que a PGR se tenha abstido de aprofundar, junto das autoridades portuguesas e americanas, as questões relativas ao conteúdo de voos militares americanos referenciados como podendo estar envolvidos nas “extraordinary renditions” e que Portugal autorizou a aterrar na Base das Lajes. Tal significado resulta não apenas da admissão supra referida do desinteresse das autoridades militares portuguesas pelas pessoas transportadas em quaisquer aviões militares americanos.
(...)
6. Regista-se a conclusão do DA, segundo a qual “No entanto, há que referi-lo, esta investigação permitiu confirmar a passagem pelo território nacional das aeronaves mencionadas pelas assistente [Ana Gomes] e na identificação de 148 tripulantes, ou passageiros". Significa esta passagem que os dados em relação aos voos avançados pela Assistente Ana Gomes se confirmam, incluindo uma lista da NAV de 94 voos, na maioria militares, de e para Guantánamo, escalando aeroportos portugueses, autorizados por Portugal entre 12 de Janeiro de 2002 e 24 de Junho de 2006, lista que o governo português não disponibilizou ao Parlamento Europeu e à Assembleia da República, apesar das insistências da Assistente e do CTPE".

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

BPN, a captura do poder pelo crime organizado


"Eu começaria pelo Presidente da República, que todos sabemos não ter nadinha a ver com o BPN e que empossou sem pestanejar, entre os novos membros deste Governo, um especialista em inovação e empreededorismo treinado na escola da SLN/BPN.
O Primeiro Ministro veio entretanto respaldar o Ministro da Economia, (com aparente embaraço do parceiro CDS) pela escolha de Franquelim Alves para Secretário de Estado, passando por cima dele ter no seu currículo o desempenho de funções de administração na SLN/ BNP em período critico.
E de, precisamente, essa qualidade ter sido omitida no currículum vitae divulgado ao público.
A omissão é, por si só, significativa.
Acresce que as justificações avançadas pelo Primeiro-Ministro desvalorizam a fraude, a corrupção, o compadrio e outros crimes contra o Estado e cada um de nós, contribuintes, que o BPN representa.
Mas, realmente, qual é a surpresa?
Este não é o Governo que continua a enterrar milhares de milhões dos contribuintes no buraco sem fundo do BPN, mesmo depois de vender o que restava de valioso ao BIC, pela ninharia de 40 milhões de euros?
Este não é o Governo que continua a manter a opacidade sobre a fraude SLN/BPN e a garantir a impunidade dos criminosos, a ponto de não se importar que o Ministro Miguel Relvas e o advogado/deputado José Luís Arnaut sejam fotografados, em natalício veraneio no opulento Copacabana Palace, ao lado de Dias Loureiro, ex-ministro do PSD, ex- Conselheiro de Estado e ex- executivo do BPN - que entra e sai do país sem que a Justiça, ou qualquer autoridade, mexa um dedo para o impedir?
Este não é o Governo que tudo de mal procura assacar ao predecessor, mas curiosamente, se abstém de criticar o governo Sócrates por só ter nacionalizado o buracão do BPN e ter deixado os donos da SLN pôr a salvo os activos valiosos, transferindo-os para a nova sociedade Galilei?
Este não é o Governo que nunca explicou aos portugueses como foi desastrosa a gestão nacionalizada do BPN e nada fez para impedir que alguns dos incompetentes e suspeitos gestores do BPN continuem em funções em empresas do universo público, como a Parvalorem e a Parups, supostamente a gerir os produtos tóxicos do BPN  - e a fazer de todos nós parvos?
Este não é o Governo que até hoje não fez os devedores BPN pagar o que devem ao Estado - e são mais de três milhões de euros que o Estado deveria estar a recuperar de  amigalhaços do PSD, como Fernando Lima, Fernando Fantasia, Joaquim Coimbra e muitos outros....Só a Galilei devia à Parvalorem mais de 1000 milhões de euros, em Junho passado, e continuava a obter créditos do BNP nacionalizado para comprar aviões...
Este não é o Governo que mantém à cabeça da Autoridade Tributária um Director Geral que está a ser investigado pela Justiça por ter obstruído escutas judiciais a administradores do BES? Como havia o Estado de cobrar estes créditos aos accionistas e devedores do BPN. Ou a outros grandes devedores ao Estado?
Pois não é este um Governo que engendrou um Regime Especial de Regularização Tributáaria (III) para permitir aos accionistas e devedores do BNP, ou a banqueiros como Ricardo Salgado, que beneficiassem de amnistia fiscal, pagando apenas 7, 5 % de taxa para legalizar capitais depositados em offshores, garantindo-lhes a protecção pelo segredo e sem sequer cuidar de saber donde onde provêem tais proventos?
Pois não é este um Governo que mantém nas Finanças um Ministro que não responde a pedidos de esclarecimento sobre se recebeu, e como actuou, em relação às listas cedidas pela Alemanha ou pela Senhora Lagarde sobre os nacionais detentores de contas na Suíça, ou no Liechtenstein, ou noutros paraísos fiscais?.
Este é o mesmíssimo Governo que está a assaltar fiscalmente as classes médias. E a diminuir-lhes salários e pensões. E a cortar serviços básicos à maioria dos portugueses.
Tudo possível porque nós, portugueses, temos um défice de indignação. Da justa indignação que´é precisa para nos levantarmos. E corrermos com os "gangsters" instalados na banca, do BES ao BPN, que mantêm capturado o poder político em Portugal".

Conselho Superior, ANTENA 1, 5 de Fevereiro de 2013





domingo, 15 de fevereiro de 2004

"Compromisso Portugal"

Só agora tive oportunidade de ler na íntegra as conclusões da iniciativa “Compromisso Portugal", realizado há dias.
Vistas em conjunto, não é caso nem para louvor hagiográfico nem para anátema condenatório. Adoptando uma perspectiva manifestamente "neoliberal", favorável à diminuição do papel do Estado na economia e na prestação de serviços públicos, há lá de tudo: propostas ousadas no campo financeiro e fiscal que a esquerda não hesitará em aplaudir, quase todas; propostas de liberalização do mercado de trabalho (nomeadamente liberalização dos despedimentos), que fazem parte da receita patronal desde sempre; propostas deveras indigentes em matéria de “coesão social”, que lá estão só para prestarem “lip service” a essa noção; e finalmente propostas muito pouco pensadas e mesmo contraditórias com o próprio espírito do programa geral.
Entre elas últimas contam-se seguramente as que dizem respeito às escolas em geral e universidades em particular, como já assinalou no seu blogue o sempre atento João Vasconcelos Costa. Em especial quanto ao governo das escolas e universidades, os autores propõem o seguinte:
«Definir para cada Escola e Universidade conselho de “trustees“, nomeados pelo Estado / Administração Local (com participação mínima de cidadãos independentes, conhecedores da região respectiva e seus problemas, bem como da natureza dos cursos ministrados e com experiência de gestão relevante) que em conjunto com o Ministério da Educação e ouvindo os representantes das Escolas ou Universidades nomeiem as equipas de gestão destas instituições de ensino para mandatos bem definidos, acompanhando anualmente o seu desempenho.»
Ora está bom de ver que isto não passa da importação acrítica do modelo de governo universitário norte-americano, mas aplicado somente às escolas e universidades públicas e com uma inegável e surprendente marca governamentalista, que poria em causa o próprio conceito de autonomia universitária. Para além de inconstitucional e impraticável, por falta do necessário “environment” cultural e institucional entre nós, esse modelo implicaria voltar a entregar a responsabilidade pelo governo das universidade ao Estado, por intermédio do tal "conselho de trustees", abolindo qualquer dimensão de auto-governo, o que se afigura verdadeiramente despropositado na tradição europeia. Par além disso, esse conselho ficaria com o duplo papel de escolher os gestores das escolas e fiscalizar o seu desempenho, com os previsíveis problemas de informação e de controlo sobre os gestores.
Francamente era de esperar melhor reflexão e mais ponderação.

Vital Moreira

quinta-feira, 22 de março de 2007

SISI: sim, debaixo de olho

Ainda não temos a nova Lei de Segurança Interna, em preparação no MAI. Temos apenas uma resolução política do Conselho de Ministros. Que descreve as linhas mestras do que será a Lei a agendar em Conselho de Ministros, que depois deverá ser submetida à AR.
É, portanto, este o momento para contribuir para o debate. Sem alarmismos. Sem comparações descabidas entre o que este Governo pensa fazer na área da coordenação das forças polícias (PSP, GNR, PJ, SEF), e autoritarismos brutais, à moda de Pina Manique durante a monarquia absoluta. Exemplos assim não contribuem realmente para a discussão. Antes a ofuscam.
A mim, não me choca que um futuro Secretário-Geral do SISI (Sistema Integrado de Segurança Interna) "articule, coordene" e ajude à "cooperação" entre forças policiais. Não me choca, até, que em circunstâncias excepcionais, e para determinadas operações em particular, este mesmo Secretário-Geral venha até assumir "funções de direcção, comando e controle". Finalmente, não me choca que este Secretário-Geral responda ao PM, já que as forças policiais que ele coordenará pertencem a vários ministérios - que são dirigidos por ministros, que respondem perante o PM e os quais o PM é suposto coordenar.
O cenário apocalíptico de um 'Estado-polícia' está bem longe da realidade portuguesa e não é este projecto que nos vai aproximar dele. A nossa democracia já deu provas de maturidade nesta área. E a todos nós cabe garantir que continue a dar. Mas, de acordo com os especialistas e como eu própria fui apurando junto das diversas forças policiais e serviços de informação e segurança nacionais desde que em 2004 assumi no PE responsabilidades na Subcomissão de Segurança e Defesa, o que faz bem parte da nossa realidade são as áreas cinzentas de sobreposição de responsabilidades geográficas e operacionais entre as diferentes forças policiais. Daí, as confusões, as disputas de competèncias, as rivalidades, as omissões, e as nossas patéticas representações em instâncias de coordenação internacional... Que obviamente não servem a segurança nacional, nem a eficácia da prevenção, da investigação ou da repressão criminal. Sobretudo quando em Portugal, na Europa e globalmente, fazemos face às ameaças interligadas do terrorismo internacional e da criminalidade organizada.
O que é decisivo e é preciso que conste do projecto de lei a ser em breve discutido no Conselho de Ministros, é o controlo parlamentar. No pleno respeito das competências próprias da AR. E dos poderes que cabem ao Governo. Este deve ficar obrigado não só a submeter o candidato a Secretário-Geral do SISI a audições parlamentares (nas comissões relevantes e em plenária), como deve considerar-se politicamente vinculado pelo juízo da AR em relação ao candidato: mesmo se for negativo. O Secretário-Geral deve prestar regularmente explicações na AR e defender anualmente diante dela a estratégia do SISI para o ano seguinte.
É fundamental, acima de tudo, evitar que se estendam ao novo SISI a passividade e o desinteresse que a AR tem demonstrado em relação ao SIS e ao SIEDM - chocantemente evidenciados na demissão em relação aos chamados «voos da CIA». Cabe aos partidos representados na AR exigir transparência e exercer o controlo e escrutíneo da actuação de todos os serviços de segurança e de informação. E nisto cabe ao PS a principal responsabilidade ? não apenas porque é governo, mas porque é maioritário na AR.
O projecto do SISI, tal como foi apresentado e defendido publicamente pelo MAI, faz sentido. E é bom sinal que, em questão tão importante, o Governo esteja a estimular o debate sobre a futura lei (Pina Manique e outros tratantes que tais jamais submeteriam a debate planos semelhantes).
É preciso verificar se o resultado final, a Lei, vai de facto reflectir esse debate. E vai prever os antídotos para eventuais tentações pinamaniquenses.
Depois, importa que a AR exerça efectivamente a responsabilidade de manter debaixo de olho aquilo que é suposto controlar: o SISI e não só. E aí também vai contar a vigilância de todos os cidadãos conscientes.