Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sábado, 11 de novembro de 2023
Ai, Portugal (11): O Ministério Público é intocável?
Corporativismo (54): A ficção da autodisciplina profissional
1. Se fossem necessárias mais provas do protecionismo corporativo das ordens profissionais no (não) exercício do seu poder disciplinar - que é uma das suas principais tarefas públicas -, bastaria este caso gritante, em que médico radiologista, que veio a ser judicialmente condenado por molestar sexualmente duas pacientes no exercício de atos profissionais, se limitou a puni-lo disciplinarmente com simples censura, por «ato não preconizado», e por mera negligência, ignorando a óbvia e deliberada agressão sexual.
Infelizmente, estes casos que vêm a público são somente a ponta do icebergue do défice na prática do poder disciplinar das ordens, em geral, quer por não haver queixas (porque os lesados não confiam nelas), quer por prescrição (por deliberado atraso no seu julgamento), quer pela absolvição ou aplicação de penas ligeiras. Está na altura de o Governo ou o parlamento encomendarem um estudo a uma entidade independente sobre a (in)efetividade da prática disciplinar das ordens.
2. É esta indecente complacência deliberada com a violação das obrigações legais e deontológicas dos seus membros, que justifica que a nova Lei-quadro das ordens profissionais tenha tomado três previdências nesta área: (i) determinar a inclusão obrigatória de "leigos" nos conselhos disciplinares; (ii) atribuir o poder de queixa disciplinar ao novo "provedor dos utentes"; e (iii) entregar ao novo "conselho de supervisão", composto maioritariamente por não-profissionais, o poder de controlo sobre o exercício da ação disciplinar das respetivas ordens.
Eis porque há que repudiar os comprometedores protestos da OM contra o novo regime legal das ordens, e estar vigilante contra a provável resistência passiva ao seu seu leal cumprimento. A autodisciplina profissional não pode continuar a ser a parra que esconde a impunidade disciplinar.
sexta-feira, 10 de novembro de 2023
Como era de temer (7): A falta de regulação do lobbying
1. A razão por que penso que o relatório do MP sobre o caso "Influencer" falha o alvo está em que, a meu ver, não faz sentido construir laboriosamente como um caviloso "plano criminal" aquilo que parece não passar de um caso vulgar de lobbying empresarial junto dos decisores públicos, tentando convencê-los do interesse público do seu vultuoso projeto de investimento (que, aliás, no caso concreto parece convincente e que ninguém impugnou...).
Desde que não envolva corrupção, mediante "luvas" para obter uma decisão favorável, nem a atividade de "influenciador" profissional ao serviço de uma empresa, nem a consideração dos seus argumentos pelos decisores políticos são politicamente censuráveis, nem muito menos penalmente puníveis.
2. Há muito que defendo a regulação geral do lobbying (por exemplo, AQUI), não para o tornar lícito - pois não é, em si mesmo, ilícito -, mas sim para lhe conferir a transparência adequada, reduzir os riscos do seu abuso, aumentar a accountability do poder político, proteger os decisores políticos (deputados, governantes, etc.) de acusações malévolas e superar a geral desconfiança pública em relação a tal atividade.
A obrigação de registo público dos agentes profissionais dedicados a essas atividade (advogados, consultores, agências de relações públicas, etc.) e a de registo dos contactos de lobbying por parte dos decisores políticos no respetivo órgão de transparência, são ferramentas indispensáveis nessa regulação.
O exemplo do modelo regulatório da UE (que tive de respeitar como parlamentar da União) é especialmente instrutivo.
3. Infelizmente, por vicissitudes várias, entre nós os textos negociados no parlamento sobre o assunto desde 2019 não chegaram ao Diário da República, num caso por veto presidencial e recuo do PSD (2019), noutro caso, pelo fim da legislatura (2021); apesar da maioria absoluta desde o início de 2022, o PS não cuidou de retomar o competente procedimento legislativo.
Estou convicto de que, se tivesse sido aprovada uma tal lei, esta investigação penal poderia não ter existido, quer por a atividade de lobbying ter enquadramento legal e ser, portanto, menos estranha à opinião leiga, quer por os decisores políticos estarem mais conscientes dos cuidados a ter nesta matéria, quer, finalmente, por os guardiães da transparência terem menos motivos para condenações sumárias.
Ou seja, o PS pode estar a pagar o preço da sua relativa incúria política e legislativa e do desinteresse alheio (PSD), neste tema politicamente ultrassensível.
Eleições parlamentares 2024 (1): O risco do pântano político
Como era de recear, começam a surgir os primeiros indícios de que a convocação de eleições antecipadas, com o PS ainda em choque com a demissão e sem liderança consolidada e o PSD com uma liderança contestada e sem chama, só vai favorecer a fragmentação parlamentar, com reforço do Chega à direita e do BE à esquerda, que agradecem a oportunidade que o PR lhes ofereceu de bandeja.
A confirmar-se um quadro parlamentar destes, cresce obviamente o papel do PR no desenho da fórmula governativa e o seu poder de controlo sobre o Governo que vier a ser formado (o que talvez ajude a explicar a decisão presidencial...), mas como assinalei em post anterior, parecem escassas as hipóteses de uma solução governamental consistente e estável.
Puerta del Sol (9): Albergue espanhol
1. Não bastando o acordo com o grupo Sumar, que inclui a esquerda radical do Podemos, o Primeiro-Ministro espanhol, Pedro Sánchez, negociou também o apoio ao seu novo Governo com os partidos nacionalistas e separatistas de várias comunidades autónomas, incluindo o Junts per Catalunya, que há poucos anos convocou um referendo inconstitucional e ilegal para a independência catalã, chegando a proclamar tal independência, do que resultou a condenação penal de vários dos responsáveis, incluindo o líder do Juntx, desde essa altura exilado na Bélgica - crimes que agora são amnistiados como parte do acordo político.
Trata-se manifestamente de um arco governamental de abrangência sem precedente em Espanha e, provavelmente, noutras geografias, em condições de normalidade política.
2. Para além da questão da amnistia catalã, que vai agravar profundamente a divisão territorial e política de Espanha, o problema que este novo Governo suscita é o de saber se é possível garantir a estabilidade política, a sustentabilidade orçamental e mesmo a paz política e social, com uma coligação tão heteróclita e tão inconsistente tanto entre esquerda moderada e esquerda radical como entre partidários de uma Espanha unitária (que é, aliás, postulado constitucional) e adeptos radicais do secessionismo catalão, que obviamente vão continuar a lutar por ele, mesmo integrando a maioria governamental nacional.
Se eu fosse espanhol, este Governo, apesar de liderado pelo PSOE, não teria o meu apoio.
quinta-feira, 9 de novembro de 2023
Ai, Portugal (10): Ministério Público - 2, República Portuguesa - 0
1. E pronto!
Com a sua mal urdida mas oportuna pseudoinvestigação penal, o MP conseguiu não somente a demissão do Governo, mas também, com a ajuda do PR - que há muito procurava um bom pretexto para isso -, fazer dissolver a AR e convocar eleições, interrompendo a legislatura - o que sucede pela primeira vez em relação a um parlamento com uma maioria partidária - e lançando o País novamente num ciclo de incerteza política, que há de provavelmente dar em eleições inconclusivas, num parlamento mais fragmentado e na dificuldade acrescida de formar um Governo politicamente consistente com perspetivas de durabilidade.
É um terramoto político sem precedente.
2. Como cereja em cima do bolo, o PM demissionário vai ser obrigado a manter-se em funções à frente do "governo de gestão", ou seja, sem poderes efetivos, durante meses e meses (até a formação do novo Governo depois das eleições, lá para abril), sem a liberdade de expressão e de ação que a sua situação de "inquirido" exigia. A somar à injusta demissão, é uma violência gratuita e um sacrifício pessoal inglório.
Quem desencadeou este processo, sabendo onde ele poderia chegar, merece aplauso pelo seu êxito total. Melhor seria impossível. Chapeau!
Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?
1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.
Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011).
Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011).
2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes.
Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário.
3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR fá-lo ao abrigo do poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.
Não sendo constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, ela pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.
[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Ai, Portugal (10): Resgatar António Costa
1. Não bastasse a proverbial fama de António Costa quanto a integridade política e ao combate à corrupção - aliás comprovada por anos e anos de governante local (presidente da CM de Lisboa) e nacional (secretário de Estado, ministro e Primeiro-Ministro) -, para afastar qualquer suspeita de ilicitude pessoal neste caso que atingiu em cheio o seu Governo, a verdade é que, mesmo que não estivesse acima de qualquer suspeita, seria o cúmulo da estupidez deixar-se envolver num processo ilícito, não em proveito próprio, mas sim coonestando a alegada ação ilícita e a correspondente vantagem pessoal de outros.
O que se tem de esperar agora é que o STJ não acrescente à irresponsabilidade do Ministério Público a procrastinação do inquérito, dando aso à costumeira condenação na praça pública e nas redes sociais, sem julgamento, sem defesa e sem recurso. Até porque continua no exercício de funções até à conclusão da crise política, António Costa tem direito a ver decididamente apurada, tão depressa quanto possível, a inocência que protesta.
2. Se vier a ser ilibado - como é de esperar -, António Costa tem todo o direito a recuperar em pleno os seus direitos de cidadania e a ser resgatado na sua honra e integridade pessoal e política, não só pelo PS, mas também pelo País.
O primeiro, porque lhe deve oito anos de governo bem-sucedido, uma maioria absoluta, a coesão do partido e o êxito de grande parte da sua agenda progressista; o País, porque, entre muitas coisas, lhe deve a retoma da coesão social depois da amarga experiência da assistência financeira externa, o combate vitorioso contra a epidemia e a recuperação da crise económica e social que ela gerou, o reforço do Estado social, o equilíbrio das finanças públicas e a redução do comprometedor fardo da dívida pública, assim como o prestígio externo, nomeadamente entre os países de língua portuguesa e, em especial, na UE.
A reparação de acusações infundadas e e gratidão não podem ser noções ausentes do léxico e da prática política.
3. Sendo um dos mais eminentes e resolutos políticos nascidos com o regime democrático, penso que nem o PS nem o País podem prescindir do muito que ele ainda tem para dar, se vier a ser ilibado, como se espera.
Por isso, entendo que, tendo ele próprio afastado liminarmente a hipótese de voltar a ser a chefe do Governo e estando as eleições presidenciais longe, a melhor solução estará em vê-lo a encabeçar a lista do PS nas próximas eleições do Parlamento Europeu, abrindo a porta à possibilidade de vir a ser presidente do PE ou presidente do Conselho Europeu, que muitos lhe haviam destinado.
Indevidamente "enjeitado" no seu País, um estadista deste gabarito excecional merece um cargo de responsabilidade nos mais altos escalações políticos da UE, por cuja coesão e ambição ele tanto tem labutado.
terça-feira, 7 de novembro de 2023
Liberalices (2): Um bom investimento público na Tap e na Efacec
1. Na dogmática ultraliberal, entre nós representada pela IL - e com a qual o PSD agora também "namora" por vezes, por imitação -, o Estado deve deixar as empresas por conta e risco do mercado, não devendo fazer nada para impedir a queda das que não provam ser capazes de vingar por si mesmas.
Mas numa "economia social de mercado", como resulta da "constituição económica" da CRP e da UE, pode haver situações que justifiquem plenamente a salvação de empresas privadas conjunturalmente em risco de falência, mas estruturalmente viáveis, por parte do Estado, quer quando se trate de empresas tão relevantes, que o seu desaparecimento poderia por em risco o próprio mercado - caso dos "bancos sistémicos" -, quer quando elas tenham um grande peso no emprego, na economia e nas exportações do país. Foi o que sucedeu no caso da Tap e da Efacec, mediante a nacionalização e a injeção de dinheiro público.
Sem essas operações de salvação financeira pública - aliás ambas validadas pela UE -, muito provavelmente essas empresas não teriam sobrevivido.
2. Também carece de fundamento a crítica de que o Estado não vai recuperar na reprivatização de tais empresas todo o dinheiro que nelas injetou - o que é verdade -, pela simples razão de que a compensação da intervenção do Estado não consiste somente no dinheiro que vai receber da venda das empresas, mas também das importâncias que não teve de gastar, por ter evitado a sua falência (por exemplo, indemnizações e seguros de desemprego), bem como das importâncias que continuou, e vai continuar, a receber, pelo mesmo motivo (contribuições para a segurança social, IRS das remunerações, Iva das vendas de bens e serviços das empresas, etc.), isto sem contar com as receitas tributárias indiretas provenientes das empresas fornecedoras de bens e serviços daquelas.
Tudo somado, é bem possível que todas essas importâncias ultrapassem em muito a diferença entre o custo da nacionalização e do saneamento financeiro das empresas, por um lado, e a receita da sua reprivatização, por outro lado. A ser assim, ao contrário do que correntemente se afirma, a intervenção do Estado, além de economicamente necessária, foi também um bom investimento público.
Ai, Portugal (9): Nova crise política
1. Num sistema de governo de base essencialmente parlamentar, como o nosso, a solução mais lógica para uma crise política aberta pela demissão do Primeiro-Ministro seria a indicação de novo PM pelo PS, como sucedeu em 2004 com a demissão de Durão Barroso, tanto mais que agora o partido de governo goza de uma maioria parlamentar monopartidária obtida diretamente em eleições, e não seria difícil a AC indicar para o cargo uma personalidade credível fora do atual Governo.
Uma tal solução pouparia o País a mais uma prolongada crise política, com as consequências inerentes, nomeadamente a não aprovação do orçamento e o adiamento da atualização de remunerações e pensões e da baixa do IRS, a suspensão da reforma do SNS e outras reformas em curso, a semiparalização dos investimentos do PRR, etc. Uma perspetiva assaz inquietante, que devia merecer uma ponderação séria no País.
2. No entanto, apesar dessas péssimas consequências, as coisas podem ir mesmo para a dissolução parlamentar e a convocação de eleições.
Vão nesse sentido quer o compromisso originário do PR de antecipar eleições, caso o PM viesse a deixar o cargo, quer o alinhamento oportunista de todos os partidos da oposição nessa solução, à espera de algum ganho da provável perda de posições eleitorais do PS. Além disso, um Governo do PS sem Costa não teria a mesma autoridade política nem na AR, nem perante o PR, nem face aos poderosos grupos de interesse, ficando sob permanente acusação de falta de legitimidade eleitoral e eventualmente exposto aos "efeitos colaterais" da investigação dos ilícitos que são alegadamente imputados ao PM e seus ministros e colaboradores mais chegados, bem como ao habitual julgamento na praça pública, sem direito a defesa, nem a recurso (com a usual cooperação "discreta" do MP).
Enfim, preparemo-nos para o pior. Desta crise nada indica, pelo contrário, que o País venha a ser poupado a pagar uma pesada fatura.
Causa palestina (2): O exemplo da Espanha
O Governo espanhol acaba de atribuir ao SG das Nações Unidas, António Guterres, a mais alta condecoração civil espanhola, em reconhecimento da sua luta pelos direitos humanos, e em especial pelos direitos dos palestinos, neste momento vítimas generalizadas - incluindo, em especial, as crianças, os doentes em hospitais, os acolhidos em asilos - da bárbara operação de aniquilação por Israel, perante a complacência, se não o aplauso, dos Estados Unidos e da Nato em geral.
Quando o Governo israelita ataca soezmente Guterres pela sus defesa do direito internacional humanitário e dos direitos humanos dos palestinos, impõe-se que os governos democráticos europeus não se rendam ao arrogante despotismo racista de Netanyahu.
Um pouco mais de coerência, sff (2): Preso por ter cão...
É surpreendente esta reação da GGTP a lamentar o dinheiro público injetado na Efacec. Pois é evidente que se o Estado tivesse optado por deixar cair a empresa - o que teria acontecido, se não tivesse havido a nacionalização -, a mesma CGTP estaria na linha da frente dos protestos contra a falência da empresa, imputando ao Governo a perda dos postos de trabalho daí resultante.
É lamentável ver a central sindical comunista alinhar, por puro oportunismo político, na condenação da ajuda financeira pública, só porque entende que a empresa deveria continuar agora nas mãos do Estado, em homenagem ao atávico estatismo económico do PCP.
Independentemente do destino da empresa, a injeção de dinheiro público cumpriu a sua missão de a salvar, pelo que devia ser aplaudida pela CGTP. Um pouco mais de coerência política precisa-se na Rua Vítor Cordon.
segunda-feira, 6 de novembro de 2023
+ União (75): A ficar para trás
1. Tanto ou mais importante do que o enorme desafio institucional que o previsto alargamento da UE a Leste suscita é o preocupante atraso - que esta análise do Financial Times revela - no ritmo do crescimento económico da União, tanto face aos EUA como face a outras economias avançadas, com efeitos negativos, quer sobre o rendimento e o bem-estar dos europeus, quer no peso político da UE na cena externa, que advém sobretudo da dimensão do seu mercado interno e do seu papel no comércio internacional.
Como mostra o estudo citado - que é de leitura obrigatória -, alarga-se o fosso económico entre Europa e os Estados Unidos, em todas as dimensões: PIB e rendimento per capita, produtividade, peso na revolução tecnológica, etc. Se há dez anos a economia europeia valia 91% da economia norte-americana, hoje vale somente 65%. É uma impressionante degradação em apenas uma década.
2. Entre as causas desse crescente atraso da Europa não se contam somente os "suspeitos do costume", como a elevada despesa social e os direitos laborais, os impostos mais altos, os maiores custos da energia (que a guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia agravaram), mas também a incompletude do mercado interno e as suas distorções (que a dispensa das restrições às ajudas de Estado desde a pandemia multiplicou), o défice de mão-de-obra qualificada, o vezo excessivamente regulatório, a insuficiência de investigação científica e da sua aplicação à economia, os excessos burocráticos ao nível da União e dos Estados-membros, etc.
Como habitualmente nestas situações, a União manda elaborar relatórios a especialistas qualificados, desta vez a Enrico Letta, sobre o mercado interno, e a Mario Draghi, sobre a competitividade. Mas, como assinala a citada reportagem, para além de demorados, não há nenhuma garantia de que as recomendações destes estudos, por mais convincentes que sejam, venham a ser seguidas. A partilha do poder executivo da União entre o Conselho e a Comissão e a consequente diluição da responsabilidade política (só a Comissão responde politicamente perante o PE), assim como a tradição de decisões consensuais naquele (mesmo quando não há exigência de unanimidade) dificultam as reformas e a sua tomada em tempo.
O que o Presidente não deve fazer (39): Erosão institucional
Não é preciso estar de acordo com tudo o que está neste comentário sobre a conduta do PR, como é o meu caso, para ser de opinião - que já várias vezes aqui exprimi - de que a incontida ânsia presidencial de se pronunciar publicamente sobre tudo e mais alguma coisa, interferindo quotidianamente na esfera política do Governo e banalizando comentários de circunstância que não estão à altura da sua posição institucional, vai ao arrepio de duas características que considero essenciais ao bom desempenho do cargo presidencial, tal como desenhado na nossa Constituição: ponderação e contenção.
Desrespeitando esse princípio de virtuosa reserva institucional, MRS corre o sério risco - de que aquele comentário é apenas um indício entre muitos, hoje em dia -, de perda de autoridade perante a opinião pública e, pior do que isso, de erosão do respeito que a magistratura presidencial requer.
sábado, 4 de novembro de 2023
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Memórias acidentais (24): Sob a égide de Marx
1. Só agora me foi dado conhecer o livro de Flamarion Maués, Livros que tomam partido (Lisboa, Parsifal, 2019), que é um estudo sobre a edição política em Portugal entre 1968 e 1980, ou seja, na fase final da ditadura do "Estado Novo" e nos primeiros anos da Revolução, que acompanhei de perto.
Como não podia deixar de ser, lá consta um capítulo sobre a editorial Centelha, nascida em Coimbra em 1970, após a grande luta estudantil de 1969, cujo principal animador foi o estudante de direito, Alfredo Soveral Martins (que viria a ser docente da FDUC), a qual, entre outras linhas editoriais, foi responsável pela edição dos clássicos do marxismo, desde o início até aos anos 20 do século XX (Marx, Engels, Lénine, Rosa Luxemburgo), bem como de livros de análise marxista, desfeiteando a censura e a repressão do regime.
Foi na Centelha que publiquei os meus dois primeiros livros: a Ordem jurídica do capitalismo (1973) e a edição de O Capital de Marx (1974), numa tradução conjunta com J. Teixeira Martins, com um estudo introdutório meu. Estranhamente, nenhuma dessas obras é referida no capítulo sobre a Centelha na citada monografia, apesar do natural impacto que a sua publicação teve na altura.
2. Como consta do respetivo prefácio, A Ordem jurídica do capitalismo é constituída por alguns capítulos da minha dissertação do "curso complementar" de Direito, uma espécie de mestrado da altura, apresentada três anos antes na Faculdade de Direito, onde eu era assistente da secção de "ciências jurídico-políticas".
Como se imagina, tratava-se de uma análise assumidamente marxista da ordem jurídica do capitalismo, como o júri da prova, presidida pelo próprio diretor da FDUC, se encarregou de anotar na respetiva ficha, a que mais tarde tive acesso. Honra lhe seja feita, esse orientação crítica da tese em nada afetou a sua aprovação.
O livro viria a ser reeditado várias vezes depois do 25 de Abril, sendo a quarta edição de 1987, e está hoje disponível na Internet. Apesar da sua ortodoxia marxista - que entretanto abandonei -, nunca o enjeitei, até porque ele se tornou um clássico da literatura de língua portuguesa sobre o tema.
3. Quanto à tradução de O Capital de Marx, de que não havia nenhuma edição em Portugal, ela obedeceu ao plano da Centelha de disponibilizar em língua portuguesa as obras clássicas do marxismo, de que O Capital é obra fundamental. Foi uma laboriosa tarefa, que consumiu infindas horas aos dois tradutores nos anos de 1972 e 1973, tanto mais que decidimos conjugar as duas versões que Marx deixou da obra, respetivamente em francês e em alemão, o que tornou a tradução muito mais exigente.
O 1º volume da Livro I da obra só foi publicado no início de 1974, quando eu já me encontrava, desde setembrto de 1973, em Londres, a preparar o doutoramento, na London School of Economics, portanto com muito menos disponibilidade. Por isso, com a ocorrência da revolução em abril desse ano e a nossa imediata entrega à ação política, os volumes seguintes já não foram publicados, apesar de J. Teixeira Martins ter completado a sua parte na tradução. Também não houve nova edição do 1º volume (entretanto também disponível na Internet). Por isso, curiosamente, a edição de O Capital é uma das vítimas da Revolução.
4. Importa recordar que o referido ativismo político-editorial em Coimbra (tal como em Lisboa e no Porto) foi favorecido pela agitação política nos últimos anos do "Estado Novo", decorrente da substituição de Salazar por Caetano e a relativa descompressão temporária da repressão que se seguiu, do reflexo do Maio de 1968 em França, da grande luta estudantil em Coimbra em 1969, bem como do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro e da participação da oposição nas pseudoeleições desse mesmo ano, tudo confluindo na diversificação e no reforço da luta contra o regime, na oposição à guerra colonial, na solidariedade com o Vietname, na esperança suscitada pelo governo de Allende no Chile, etc.
Na caso especial de Coimbra, havia nessa altura na da Faculdade de Direito, sem paralelo em nenhuma outra Universidade, um grupo de professores e assistentes assumidamente de esquerda (Orlando de Carvalho, J. J. Gomes Canotilho, A. J. Avelãs Nunes, Aníbal Almeida e eu próprio, entre outros), todos acumulando com a redação da revista Vértice, órgão do movimento neorrealista desde o início, também de clara inspiração marxista - uma espécie de "escola marxista de Coimbra", cujo registo bibliográfico está por fazer.
É gratificante recordar esses tempos de entrega e dedicação a causas exaltantes.
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
Novo aeroporto (9): Cada cavadela, minhoca
1. Depois da denúncia da TVI, de que fiz eco em anterior post, de que a CPI para o novo aeroporto furtava ao público os seus contratos de aquisição de serviços por adjudicação direta, a Comissão apressou-se a publicar uma lista de contratos no "seu" website. Mas, como revela a mesma TVI hoje, entre eles está um contrato celebrado com uma empresa de que um membro da CTI é sócio!
Ora, mesmo que a lei admitisse tal situação, o conflito de interesses é tão óbvio, que o contrato não devia ter sido feito, nem pela interessada, nem pela CPI, e que devia ter sido impedido pela Comissão de Acompanhamento, a quem cumpre velar pela lisura de todo o procedimento, incluindo o respeito pela mais elementar ética de serviço público.
2. Esta grave situação de sonegação de informação ao público e os numerosos casos de conflito de interesses (a começar pela própria Presidente da CTI e pelo presidente da Comissão de Acompanhamento, que desde há muito defendem uma das opções de localização em competição, como membros influentes da "equipa LNEC/Alcochete", como diz um amigo meu) mostram que a CPI é governada como uma espécie de coutada privada, à margem das regras que se impõem à Administração pública num Estado de direito.
Ora, parece evidente que esses desvios de uma sã gestão não contribuem para construir a confiança pública na CTI, que é essencial ao êxito da sua missão.
3. Esta equívoca situação tem vários culpados, que importa apontar: (i) o Governo, que nomeou os dois referidos responsáveis, sabendo ou devendo saber dos seus conflitos de interesses; (ii) o Ministério das Infraestruturas, que não exerce a tutela de legalidade que lhe compete e que, aliás, veio "ajudar à missa" com a declaração de que Santarém, única alternativa séria a Alcochete, fica "demasiado longe"; (iii) a Comissão de Acompanhamento, que, pelos vistos, não acompanha o que deve; (iv) e o próprio PSD, que é coautor da CPI e que, depois de vir questionar publicamente a sua independência, se "fechou em copas", quando a TVI começou a escrutinar as comprometedoras falhas daquela.No final, estas responsabilidades não deixarão de ser devidamente assacadas.
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Imprevisível Itália (5): Do parlamentarismo ao "governamentalismo"
Importa referir que o precedente mais conhecido deste inovador sistema de governo "governamentalista" (ou "primo-ministerial", como também é conhecido), baseado na eleição direta do primeiro-ministro, foi a experiência ensaiada em Israel no final dos anos 90 do século passado - mas sem a garantia de maioria parlamentar, agora prevista na solução italiana -, a qual não foi bem-sucedida, não cumprindo os seus objetivos, pelo que foi abandonada poucos anos depois.
Resta saber se, com a nova versão proposta em Roma, a ser aprovada, o novo sistema vai funcionar em Itália e com que impacto no sistema político.
Geringonça (22): Falta de "cimento" político
Neste quadro, sem prejuízo de uma competição pacífica e de convergências pontuais - o que sempre tem havido -, não há manifestamente cimento bastante para plataformas políticas comuns consistentes entre o PS e a sua esquerda.
2. A Geringonça (2015-2019) só foi possivel como solução política conjuntural, para afastar do Governo a direita (cuja coligação eleitoral tinha vencido as eleições) e reverter as principais medidas tomadas durante a tutela financeira externa, sem se basear, porém, num programa comum nem numa coligação de governo. Uma coisa é uma aliança negativa conjuntural contra a direita, outra coisa é um programa comum de esquerda, como base de uma proposta eleitoral ou de coligação de governo.
Sucede, de resto, que, depois do derrube do anterior governo do PS pela convergência da extrema-esquerda parlamentar com a direita, há hoje um governo socialista baseado numa sólida maioria parlamentar, com mandato até 2026, o qual, entre outras orientações positivas, tem avançado manifestamente no aprofundamento do Estado social (aumento do salário minimo, de pensões e de outras prestações sociais, isenção de IRS para os rendimentos mais baixos, subida acentuada da dotação orçamental dos serviços públicos), mantendo simultaneamente a disciplina orçamental e a redução do peso da dívida pública -, o que torna ainda mais descabida a ideia de uma macrocoligação das esquerdas como alternativa política ao Governo, ou seja, como oposição.
[Rubrica originária modificada]
segunda-feira, 30 de outubro de 2023
Causa palestina (1): Israel é intocável?
Perante o quotidiano massacre indiscriminado da população civil de Gaza às mãos do exército invasor, cabe perguntar:
- sendo obviamente de condenar a mortífera incursão terrorista do Hamas, porque é que o terrorismo de Estado israelita em Gaza (e na Cisjordânia), dez vezes mais mortífero, é desculpado, se não mesmo aplaudido?
- os países, incluindo os da UE, que aplicaram sanções sem precedentes à Rússia pela invasão da Ucrânia, vão também aplicar sanções à Israel pela invasão, muito mais destrutiva, do território palestino, numa operação de punição coletiva sem limites humanitários?
- os países, incluindo a UE, que condenam veementemente a anexação das províncias russófonas da Ucrânia pela Rússia vão também condenar com idêntica firmeza o processo de anexação de quase toda a Cisjordânia por Israel ao longo do tempo, bem como a operação de ocupação em curso da faixa de Gaza?
- os países, como a França, que, respeitando a liberdade de protesto, não impediram manifestações de solidariedade com os ucranianos face à agressão russa, com que legitimidade proíbem as manifestações de solidariedade com os palestinos, face à descomunal agressão israelita?
- o Tribunal Penal Internacional, que se apressou a iniciar um processo de acusação contra a Rússia por crimes de guerra e contra a humanidade, vai abster-se de abrir idêntico processo de acusação contra os flagrantíssimos crimes de guerra de Israel em Gaza (massiva punição coletiva de populações civis, destruição de hospitais e outros equipamentos coletivos, privação de energia, de água e de alimentos, etc.)?
Um mínimo de coerência política, precisa-se!
[Alterada a rubrica]
«1. São punidos todos os crimes de guerra.2. Os crimes de guerra da Rússia são punidos de forma agravada.3. Os crimes de guerra da Ucrânia são desculpáveis.4. Os crimes de guerra de Israel na Palestina - não existem.»
domingo, 29 de outubro de 2023
Novo aeroporto (8): Cheira cada vez mais a esturro
Esta estranha omissão de informação não deixa de ser pelo menos intrigante.
2. Perante esta gravíssima violação da transparência e do escrutínio público que um processo desta natureza exigem (mesmo que a lei o não impusesse), o mínimo que se espera é que o Governo, ato contínuo, ordene a publicação de tais contratos e dos critérios de seleção utilizados, acompanhados do CV dos contratados, incluindo a devida informação sobre as suas ligações profissionais cruzadas, e da respetiva declaração de interesses quanto ao objeto dos contratos.
O Governo não pode, pelo silêncio, coonestar esta comprometedora situação. É de supor que o princípios constitucionais do Estado de direito e da responsabilidade da Administração pública ainda não foram derrogados neste caso...
Liberalices (1): Libertinagem tributária
1. Até há pouco, julgava que o partido parlamentar com mais tendência para defesa de propostas extremistas e insensatas era o Bloco de Esquerda, daí tendo nascido a série "Bloquices" neste blogue. Contudo, dei em perceber que, noutra área do expectro político, a Iniciativa Liberal se vem revelando, com a sua atual liderança, um sério competidor no campeonato da insensatez política.
Daí a inauguração desta nova série, "Liberalices", dedicada aos excessos ultraliberais da IL
2. Tal é o que se passa com a sua proposta de progressiva redução do imposto único automóvel (IUC), até à sua extinção. Ora, sendo esse imposto uma verdadeira retribuição pelas enormes "externalidades negativas" do automóvel - poluição amosférica e sonora, invasão do espaço público, degradação dos pavimentos e edificações -, a sua cobrança é perfeitamente justificada, pelo que venho desde há muito a defender o seu agravamento, com especial incidência sobre os automóveis mais poluentes e maiores e mais pesados (como os SUV).
A demagogia primária desta proposta a contra-vapor, apelando à carteira dos proprietários de automóveis, só é superada pela revoltante insensibilidade perante necessidade vital de reduzir a emissão de CO2 e atingir a neutralidade carbónica para combater as alterações climáticas.
3. Por outro lado, afigura-se que este fundamentalismo antitributário da IL, insinuando um perigoso negacionismo climático, não vai facilitar os esforços para construir uma coligação política à direita, de alternativa ao PS. Parece evidente que, apesar da sua tradicional defesa da redução da carga fiscal e da despesa pública, mas tendo a base política e a matriz liberal-social que tem, o PSD não pode alinhar com tal extremismo anti-impostos, o qual, além de pôr em causa o financiamento do Estado, contradiz também os objetivos da política social e ambiental do centro-direita, por pouco ambiciosos que sejam.
Não foi seguramente por acaso que, na Madeira, o PSD regional não teve dúvidas em optar por outra parceria política, descartando um entendimento governativo com a IL, para grande deceção do comentariado de direita mais dogmática.
Economia social de mercado (6): Aleluia!
1. Saúde-se a defesa, pela Ministra do Trabalho, numa conferência da UGT, da participação dos trabalhadores no governo das grandes empresas, que venho defendendo há muito como devendo fazer parte do património doutrinário obrigatório de um partido social-democrata (por exemplo, AQUI, AQUI e AQUI), como instrumento de democracia económica, de paz social e de eficiência empresarial.
Tendo a "cogestão" empresarial sido fortemente defendida pelo PS nos idos da Revolução e da Constituinte, há quase meio século, esse compromisso foi-se desvanecendo progressivamente nos programas e na prática política do PS como partido de Governo.
2. Embora retomando a ideia, a Ministra remete a sua instituição para a negociação coletiva e o "diálogo social", excluindo, portanto, a intervenção legislalativa (entretanto prevista no projeto de revisão constitucional do PS) -, o que não vai dar a lado nenhum, quer pela previsível oposição dos acionistas, quer pela tradição confrontacional da cultura sindical em Portugal, como assinalei AQUI e AQUI.
Note-se, por exemplo, que, apesar de a própria Constituição estatuir a partipação dos trabalhadores na gestão das empresas públicas, em geral (CRP, art. 89º), tal não verifica, porém, em quase nenhuma, não somente porque a lei não a prevê (em clara inconstitucionalidade por omissão), mas também porque os respetivos trabalhadores a não exigem.
Esperemos ao menos que, embora tímida, esta abertura governamental proporcione o debate político e sindical que a importância do tema justifica.
sábado, 28 de outubro de 2023
História constitucional (5): Desvendando uma falsificação histórica
1. Durante todos estes anos fui ensinando aos meus alunos de Direito Constitucional a história "canónica" da chamada Súplica constitucional de 1808, durante a ocupação napoleónica, como tendo sido uma iniciativa espontânea de um pequeno e incerto grupo de "afrancesados" (ou seja, simpatizantes da Revolução francesa), pedindo a Napoleão um rei francês e uma constituição semelhante à que ele outorgara ao ducado de Varsóvia em 1807, a qual teria sido apresentada pelo "juiz do povo" de Lisboa (o presidente dos ofícios da capital) à Junta dos Três Estados do Reino, onde, porém, fora liminarmente rejeitada.
Em suma, tratou-se de um efémero e inconsequente episódio, de escassa relevância na história político-constitucional nacional...
2. Ora, numa investigação da minha parceria com o meu colega José Domingues, de que agora damos conta na JN / História [imagens acima], vimos defender que, ressalvando a existência da dita Súplica, tudo o resto naquela narrativa foi inventado por José Acúrsio das Neves, na sua história das invasões napoleónicas publicada em 1810, a fim de esconder o verdadeiro projeto de integração de Portugal na Europa napoleónica, mediante a nomeação de um rei pelo imperador francês, em substituição da dinastia de Bragança, e a outorga de uma constituição, pondo fim à monarquia absoluta, projeto esse consubstanciado num "voto geral da Nação", devidamente documentado, que foi aprovado, subscrito e assumido por toda a elite política e social do País.
A Súplica era uma concretização desse magno projeto, pelo que, não fora o fim da ocupação francesa pouco depois, teria resultado na primeira constituição nacional.
sexta-feira, 27 de outubro de 2023
Aeroporto (8): E apesar disto, vai avançar?
Segundo os dados divulgados há pouco nesta reportagem da TVI, a opção por Alcochete, incluindo o aeroporto e a cidade aeroportuária complementar, implicaria o abate de 250 000 (duzentos e cinquenta mil) sobreiros! Resta saber quantos mais teriam de ser abatidos para edificar a nova "Lisboa II" que os escondidos promotores de Alcochete querem implantar à volta!
Será, porém, que este massacre ambiental vai impressionar minimanente a Comissão Técnica (pseudo)Independente, autoerigida em pouco discreta Comissão-Promotora-de-Alcochete?
quinta-feira, 26 de outubro de 2023
Aplauso (28): Educação em direitos humanos
O Diário de Coimbra de hoje relata que a rede de bibliotecas escolares do município de Coimbra adotou o livrinho de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, Livres e Iguais, com ilustrações de Ana Seixas, como leitura recomendada na sensibilização dos jovens para os direitos humanos.
É uma iniciativa que me apraz especialmente, pois o livrinho resultou de uma proposta minha, quando fui comissário para as comemorações dos 70 anos da DUDH e dos 40 anos da adesão de Portugal à CEDH, em 2018. Quanto contactei as duas celebradas autoras, ficaram tão entusiasmadas com a ideia, que o escreveram em poucas semanas!domingo, 22 de outubro de 2023
Corporativismo (36): O teste do algodão
Mas é evidente que não pode haver recuo nesse ponto, pois um dos objetivos essenciais da revisão do quadro legislativo das ordens foi justamente acabar com as restrições por elas impostas à entrada nas respetivas profissões e respetivas especialidades. Dar este ponto como irreversivel constitui um verdadeiro "teste do algodão" da reforma das ordens profissionais.
Era mais do que tempo de acabar com esse privilégio, que era a pedra de fecho dos mecanismos corporativos de restringir o acesso à profissão e ao respetivo mercado profissional, em favor dos que já lá estão, com os resultados que se conhecem quanto ao défice de médicos, aliás sempre negado pela OM, contra toda a evidência.
3. Às ordens compete supervisionar o exercício profissional dos seus membros quanto ao cumprimento das normas regulamentares e deontológicas e das boas práticas da profissão, bem como exercer a ação disciplinar contra os prevaricadores -, obrigação de que a OM pouco cuida, como é notório.
Mas, tal como nas demais profissões "ordenadas", definir quem pode ser médico e quem os pode formar - ou seja, o acesso às profissões - é matéria que só o Estado deve ter o poder de decidir, de acordo com o interesse público, e não a Ordem dos Médicos, de acordo com os seus atávicos interesses corporativos.
Laicidade (13): Um livro oportuno
Além de uma esplicação do sentido e do valor do princípio da laicidade do Estado, em geral, que goza de proteção constitucional entre nós, o livro analisa a situação no nosso país, expondo as principais formas da sua violação por autoridades políticas e instituições públicas.
Corporativismo (53): Pior a emenda...
1. Considero perfeitamente absurda esta proposta de admitir mais do que uma ordem profissional por profissão, estabelecendo a concorrência entre elas, incluindo em matéria de regulação e disciplina profisssional.
As ordens profissionais são, antes de mais, entidades reguladoras públicas das respetivas profissões, em vez do Estado, com poderes oficiais de regulamentação, supervisão e disciplina profissional, em defesa dos interesses dos utentes (dada a "assimetria de informação" e de poderes entre as partes). Ora, de acordo com os cânones do Estado de direito, não pode haver concorrência na prossecução do mesmo interesse público, pelo que, neste aspeto, as ordens só podem ser unicitárias, uma por cada profissão "ordenada".
2. O problema das ordens não é a unicidade regulatória, mas sim a concomitante unicidade corporativa na representação e defesa do respetivo interesse profissional, que cancela a natural pluralidade e concorrência associativa que existe ou pode existir nas demais profissões.
Além de restringir a liberdade de associação profissional, constitucionalmente protegida, conferindo um inadmissível privilégio às profissões "ordenadas" (obrigatoriedade de inscrição e de quotização, além da visibilidade pública), a representação e defesa profissional oficial das ordens pode gerar óbvios conflitos de interesse com a sua missão básica, intrinsecamente pública, de regulação e disciplina profissional, em prol dos utentes, prejudicando esta, como frequentemente ocorre na sua prática.
3. Por isso, tenho vindo a defender a incompatibilidade dessa dualidade das ordens profisionais com os princípios do Estado de direito e da democracia liberal e a propor a sua redução à atividade reguladora, privando-as da missão de representação e defesa de interesses profissionais - um traço inequivocamente corporativista que indevidamente não foi questionado depois de 1976 -, a qual deve ser devolvida à liberdade e à pluralidade associativa, tal como noutras profissões.
Infelizmente, a recente revisão do quadro legal das ordens profissionais ficou bem aquém dessa necessária reforma, pelo que elas vão continuar a ser um abcesso institucional e um problema político na ordem constitucional liberal-democrática.
sábado, 21 de outubro de 2023
Razões para inquietação (4): O império do automóvel
Como se não bastasse a subida do poder de compra geral para aumentar o parque automóvel, o Governo ajuda com o subsídio fiscal aos combustíveis, a pretexto de combate à inflação, e com a redução das portagens em várias autoestradas; e a oposição ajuda, ao opor-se demagogicamente à subida do IUC dos automóveis mais antigos e mais poluentes.
Mantemo-nos em estado de de negação: a transição climática não é compativel com a continuação do império do automóvel.
Enquanto vai avançando noutras geografias - mercê das restrições à entrada e ao trânsito automóvel nas cidades, da universalização do estacionamento pago, etc. -, entre nós o ideal de cidades sem carros torna-se cada vez mais utópico.