terça-feira, 24 de janeiro de 2023

+ Europa (70): Amigos, amigos...

1. Não vejo como é que a UE pode deixar de combater a deriva protecionista antieuropeia dos Estados Unidos, com o programa de apoio maciço à transição energética reservado às empresas americanas, o que pressiona as empresas europeias a migrar para o outro lado do Atântico, com a inerente perda de investimento, de emprego e de exportações na Europa.

Na verdade, esta nova vantagem competitiva desleal vem acrescentar-se às que já existiam, nomeadamente energia mais barata, que a guerra da Ucrânia veio agravar, não sendo esta, aliás, a única desvantagem europeia resultante da invasão russa e das sanções e contrassanções dela resultantes (como mostrei AQUI e AQUI). 

2. É evidente que, nestas circunstâncias, não existe um level playing field na competição económica entre a Europa e os Estados Unidos, levando ao aumento da disparidade de crescimento dos dois lados do Atlântico, ficando a UE cada vez mais para trás.

Se não houver mudança de políticas em Washington, a União tem de responder na mesma moeda. Amigos, amigos, negócios à parte...

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Às avessas (6): Os coveiros da escola pública

Com milhares de alunos das escolas públicas sem aulas, por causa das greves dos professores, e sem perspetivas de solução à vista, não admira que as escolas privadas esgotem as vagas, como aliás AQUI se tinha advertido.

Apesar de encherem a boca hipocritamente com a "defesa da escola pública", a verdade é que, com as suas greves por objetivos maximalistas e orçamentalmente incomportáveis - que, aliás, não seguem no setor privado - os sindicatos dos professores só contribuem para a afundarem... 

Adenda
Além de abusiva, a forma de greve self-service declarada pelos sindicatos, deixando a cada grevista a escolha do seu tempo de greve em cada dia, é prositadamente o mais disruptiva possível das escolas e da vida dos alunos.  Pretender que esta greve tem por objetivo defender a escola pública, só pode ser uma "piada" política de mau gosto.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Bloquices (22): Contra a UE

É manifesto que a proposta do Bloco, de proibir a aquisição de habitação em Portugal por "não-residentes", incluindo outros cidadãos da União Europeia, não tem a mínima viabilidade política, por afrontar direitos fundamentais dos cidadãos europeus, a começar pelos próprios portugueses, como o de residir e adquirir casa e terras onde quiserem e o de fazer investimentos onde desejarem no território da União, direitos sobre os quais Portugal não fez nenhuma reserva no momento da adesão. 

Com esta ideia politicamente oportunista, o Bloco não deixa de revelar, mais uma vez, a sua velha hostilidade política e ideológica à integração europeia, incluindo aos princípios constitucionais essenciais em que assenta a União.

Adenda
Um leitor objeta que nalguns países da União Europeia é mesmo proibido os não-residentes adquirirem casa. É verdade, mas trata-se de países, como a Dinamarca e Malta, que fizeram a competente reserva no momento da adesão à UE, o que não foi o caso de Portugal e todos os demais.

Adenda 2
Um leitor que se apresenta como «simpatizante» do Bloco diz que a hostilidade do partido à UE devia ser mais efetiva, porque, sendo um partido anticapitalista, não pode deixar de combater a «integração imperialista europeia». Estava habituado a identificar essa linguagem com o PCP, não com o BE, mas afinal ambos integram a mesma bancada parlamentar no Parlamento Europeu...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Não concordo (38): Exageros constitucionais

Apesar das minhas reservas sobre o mecanismo de verificação prévia da idoneidade política dos novos governantes, não concordo nada com as dúvidas, aqui expostas, acerca da sua legitimidade constitucional, quanto ao inquérito que foi tornado público, por alegada violação de direitos, liberdades e garantias pessoais (acesso indevido a dados pessoais) e políticos (limitação do direito de acesso a cargos políticos).

Discordo por várias razões:

    - não se trata de criação de impedimentos ou sequer de incompatilidades no acesso a um cargo público, mas somente de colher elementos para formação da decisão do Primeiro-Ministo ou do ministro competente, conforme os casos, que é um ato politicamente discricionário (ninguém tem direito a ser nomeado membro do Governo);

    - na sua maior parte, as perguntas sobre situação económica, fiscal e fnaceira e sobre possíveis conflitos de interesses replicam idêntico questionário noutras instâncias políticas, por exemplo na nomeação dos membros da Comissão Europeia, e versam sobre temas a que o futuro governante teria de responder nas declarações de rendimentos e de interesses que já são legalmente obrigatórias;   

 - só responde ao inquérito quem quer, podendo os convidados recusar-se liminarmente a responder, desinteressando-se da nomeação, não se tratando, portanto, de nenhuma obrigação; 

    - por último, as respostas ao inquérito não são, nem podem ser, tornadas públicas, apenas se podendo deduzir, em caso de nomeação, que elas foram globalmente satisfatórias sob o ponto de vista do critério político de nomeação. 

Não invoquemos a Constituição em vão, para condicionar indevidamente a necessária salvaguarda da ética e da responsabilidade política e da confiança nas instituições.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Amanhã vou estar aqui (14): 25 anos depois!

Amanhã vou estar na inauguração de mais uma edição do curso de pós-graduação em Direitos Humanos, que deixou de ter modo presencial desde a pandemia, mantendo-se em modo online, por a maior parte dos inscritos serem de fora.

Este ano tem um significado especial, pois se trata da 25º edição anual deste curso pioneiro entre nós, cuja criação promovi no final do século passado, e de que ainda sou codiretor e docente, apesar da minha jubilação na FDUC há vários anos. 

Old loves die hard!

Não dá para entender (29): Duplicidade ocidental

O mesmo Ocidente político que, em nome do Direito internacional, justamente condena a anexação russa dos territórios ocupados no leste da Ucrânia (mesmo tratando-se de territórios maioritariamente russófonos a que a Ucrânia recusava a devida autonomia e que desde 2011 flagelava militarmente), não levanta, porém, o mais ténue protesto contra a crescente anexação por Israel da cidade de Jerusalém e da Cisjordânia, incluindo a expulsão dos seus legítimos residentes palestinianos e o levantamento de muros de separação em território alheio. 

E enquanto a Ucrânia beneficia de apoio militar, financeiro e político sem limites dos membros da NATO, e a Rússia é alvo de sanções económicas e políticas sem precedentes, no Médio Oriente é o Estado ocupante que beneficia de todos os apoios ocidentais, enquanto as vítimas da anexação são abandonadas ao arbítrio do poderoso invasor.

Afinal, hipocritamente, há anexações e anexações - depende de serem feitas pelos nossos amigos ou pelos nossos inimigos estratégicos. E há, de um lado, as vítimas que merecem toda a proteção e, do outro, os "réprobos da Terra", que nenhuma merecem - azar dos palestinianos....

Adenda
Comentário de um leitor: «E com o actual governo de Israel lá se vai também o último argumento possível a seu favor, que era ser democrático, diferentemente dos regimes árabes». Tem razão: neste momento, em Israel, é o próprio Estado de direito que está em causa. Mas Israel mostra que a democracia não impede o expansionismo e a anexação territorial...

No bicentenário da Revolução Liberal (46): Celebrando a era constitucional

No âmbito do programa oficial das comemorações do bicentenário do constitucionalismo em Portugal, inaugurado pela Revolução Liberal, a Assembleia da República organiza, no próximo dia 25, o lançamento público de quatro obras sobre o tema ultimamente publicadas pela sua divisão editorial, entre as quais três de que sou coautor, junto como meu colega, Professor José Domingues. A mais recente delas, sobre as primeiras eleições parlamentares da nossa história, em 1822, foi lançada somente em dezembro passado.

Enquanto o deputado (e constitucionalista), Pedro Delgado Alves, apresenta a primeira das referidas obras, os dois coautores encarregam-se da apresentação das outras duas. 

Todos são bem-vindos!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (34): Tirar o tapete ao Governo

Por maior que seja a amplitude do poder de "externalização" de opiniões e comentários políticos pelo Presidente da República, um dos limites elementares deveria ser o de não tomar posição ao vivo em casos de conflito laboral entre os funcionários públicos e o Governo, como sucedeu agora, ao apoiar as reivindicações dos professores, tanto mais que estes negoceiam alavancados por greves rotativas que encerram muitas escolas e deixam milhares de alunos sem aulas. 

Com tais declarações, o PR fortalece obviamente a posição negocial dos sindicatos e debilita a do Governo na defesa do interesse público, tal como ele o vê. E ao sugerir o envolvimento do ministério das Finanças nas negociações, MRS mete mais uma vez a "foice em seara alheia", desrespeitando abusivamente a autonomia do Governo na sua própria organização e na condução dos negócios públicos, pela qual ele responde, em exclusivo.

Privilégios (11): Como é que situações destas persistem?!

1. No domingo passado, o diário Público fazia manchete com a notícia de que há juízes do STJ que passam tão fugazmente pelo lugar, requerendo logo a jubilação, que não chegam a ocupar-se de um único processo

A razão disso está obviamente no facto extraordinário de eles terem direito a uma pensão de valor superior à sua já elevada remuneração (acima da do primeiro-ministro!), pois, além de a pensão ter o mesmo valor daquela, eles deixam de descontar os 11% para a segurança social! 

Assim sendo, ao contrário do que sucede noutras carreiars públicas, por exemplo no ensino superior, em que os profissionais tendem a manter-se no ativo, por vezes até aos 70 anos (idade da aposentação obrigatória), para adiarem a importante redução de rendimento que a aposentação traz, os magistrados judiciais têm, ao invés, um incentivo para saírem logo que possível. Ganhar mais sem trabalhar, é irresistível.

Daí a elevada rotação na composição do STJ e nos demais tribunais superiores, com a inerente perda de produtividade, mercê de juízes que não chegam a "aquecer o lugar".

2. O que é extraordinário é não haver nenhum debate, nem no campo político nem na sociedade civil, sobre este injustificado privilégio, apesar de ele se tornar cada vez mais insustentavel, à medida que o valor das pensões do regime geral se vai distanciando das correspondentes remunerações à saída, quer pela degradação da "taxa de substituição", quer porque a atualização das pensões não acompanha a das remunerações.

Mas é de perguntar se, daqui a uns anos, é social e politicamente tolerável uma situação em que as pensões da generalidade dos portugueses são da ordem dos 50% do valor dos correspondentes vencimentos no ativo, enquanto uma pequena "elite da toga" continua a obter uma pensão mesmo superior à sua elevada remuneração, e beneficiando automoticamente de qualquer valorização superveniente desta.

É evidente que, ao contrário das demais, aquelas pensões nenhuma relação têm com os descontos  dos seus beneficiários para a segurança social. Nisto tudo, onde fica um mínimo de respeito pelo princípio constitucional da igualdade!?

Adenda
Um leitor argumenta que o caso mais escandaloso foi o da minha "correligionária política", a ex-ministra Francisca van Dunen, que nem chegou a ocupar o cargo, tendo acedido ao STJ e sido depois jubilada enquanto exercia funções ministeriais. Isso é verdade, mas, como assinalei na altura, o mal esteve na tomada de posse de um cargo jurisdicional sendo membro do Governo, em óbvia incompatibilidade com o princípio da separação de poderes e da independência política dos tribunais...

Adenda 2
Outro leitor observa que esse privilégio da pensão majorada e automaticamente atualizável vale para todos os juízes, e não somente para os dos tribunais superiores, e também para os agentes do Ministério Público, o que é ainda menos justificável, por estes não compartilharem nem do estatuto nem das responsabilidades dos juízes. Tem razão!

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Gostaria de ter escrito isto (30): Riqueza e pobreza num mundo só

Não se pode ler com indiferença este corajoso editorial do diretor do Público na edição de hoje sobre o fosso crescente entre a pequena minoria dos cada vez mais ricos e a esmagadora maioria das pessoas de baixos rendimentos. E não é preciso ser marxista nem ter lido Pickety, para compartilhar das suas preocupações quanto ao perigo que a crescente desigualdade económica e social potencia para paz social e a estabilidade das democracias. 

Este caminho para o abismo só pode ser travado eficazmente com medidas de ação pública acordadas internacionalmente, mas os governos progressistas têm a obrigação de o colocar bem alto na sua agenda política interna e externa. Tal como foi possível alcançar recentemente um acordo para a tributação mínima das multinacionais, também há de ser possivel avançar no sentido de uma tributação comum mínima das mais-valias, das heranças de elevado valor e das grandes fortunas.

Memórias acidentais (20): A minha primeira experiência política

1. Apraz-me saber que o antigo hotel de turismo da Guarda (acima numa foto antiga) vai ser devolvido à atividade, na rede das Pousadas de Portugal, depois de muitos anos de abandono e de degradação do edifício.

Ligam-me a ele agradáveis memórias, não como hóspede, o que só depois de 1974 ocorreu ocasionamente, mas como jovem aluno do liceu da Guarda, que frequentei entre 1955 e 1962 (embora oriundo da Bairrada). Morava perto, e o hotel, localizado junto ao tribunal, ao jardim e ao quartel da cidade, era o mais marcante edifício civil da urbe. Por vezes, íamos observar a chegada e saída dos abonados hóspedes e admirar os seus automóveis, especialmente os dos poucos estrangeiros que nessa altura visitavam o país, entrando pela fronteira de Vilar Formoso.

2. Porém, a minha principal memória juvenil do hotel tem a ver com o comício de Humberto Delgado, na sua empolgante campanha das eleições presidenciais de maio de 1958 e com a profunda impressão que me causou a sua vigorosa intervenção da varanda principal do hotel, perante o aplauso da multidão que se juntara para o ouvir, entre a qual se contava um pequeno número de alunos do liceu que desafiaram a advertência reitoral dessa manhã (meu pai foi depois chamado a justificar a minha ausência...). Ainda não tinha 14 anos, e essa foi a minha primeira experiência política contra o regime.

Iniciada nesse dia, nunca cessou a minha admiração pela coragem política e pessoal de Delgado contra a ditadura - que o havia de mandar assassinar poucos anos depois.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Praça da República (71): Desvio constitucional

1. Apesar de perfilhar publicamente uma interpretação "semipresidencialista" do nosso sistema de governo e de entender que a competência presidencial de nomeação do ministros e secretários de Estado, sob proposta do PM, é um poder politicamente "material" e não meramente "formal", Marcelo Rebelo de Sousa rejeitou publicamente o primeiro plano de António Costa sobre o mecanismo de avaliação prévia da idoneidade política dos membros do Governo, que colocava tal avaliação ao nível da nomeação presidencial. MRS terá entendido, e bem, que era demais envolver-se diretamente em tal procedimento, defendendo que ele devia ser da responsabilidade do próprio PM, antes de avançar com as propostas de nomeação.

Sucede, porém, que, embora na solução que veio a ser adotada, a avaliação decorra efetivamente ao nível do Governo, antes de os nomes serem enviados para Belém, o Governo decidiu - com o beneplácito do Presidente - que junto com a proposta seguem também as respostas ao inquérito e o compromisso pessoal das pessoas propostas, defendendo que o PR pode solicitar esclarecimentos adicionais. Trata-se, a meu ver, de "gato escondido com o rabo de fora", na medida em que o PR acaba mesmo por ser envolvido, por ação ou omissão, na referida avaliação e, em última instância, na validação política, dos novos governantes.

2. Considero despropositado, política e constitucionalmente, este envolvimento do PR nesse procedimento.

Em primeiro lugar, entendo que o único responsável pela seleção dos seus ministros e secretários de Estado é o Primeiro-Ministro, que dirige o Governo e responde por ele, não devendo compartilhar essa responsabilidade com Belém. Segundo, é ele que lidera a condução política do País e responde por ela, não se compreendendo que não goze de plena liberdade para formar a sua equipa, sem vetos presidenciais de nomes que considere adequados. Terceiro, o Governo não é politicamente responsável perante o PR, que o não pode censurar politicamente nem pela sua composição nem pela sua ação, pelo que, sem prejuízo dos conselhos que entenda dar ao PM, no uso do seu "poder moderador", o PR não deve interferir na composição da equipa governativa, justamente porque não se deve corresponsabilizar pela sua ação.

Por isso, não entendo o que leva o PM a aderir a uma leitura "hard" dos poderes presidenciais relativamente à nomeação dos membros do Governo.

3. Como defendo desde há muito, esta leitura político-constitucional da natureza da nomeação presidencial dos membros do Governo só deve ser relativamente derrogada no caso das equipas governativas da defesa e dos negócios estrangeiros, onde o PR tem um especial interesse institucional, como comandante supremo das Forças Aramadas e como representante externo da Republica, respetivamente.

É manifesto que este novo arranjo institucional entre São Bento e Belém quanto à avaliação prévia da idoneidade política dos governantes vai ao arrepio do entendimento e da prática constitucional até agora, alimentando a tese de que o atual PR está efetivamente a reconfigurar em seu proveito o sistema político-constitucional. Mas não deixa de ser estranha a "cumplicidade" de um PM socialista (para mais, em maioria absoluta) nesse "desvio" constitucional.

Adenda
Um leitor defende que, sendo o PR eleito diretamente, ele deve poder interferir na composição pessoal do Governo. Mas não tem razão. O direito constitucional comparado mostra que a eleição presidencial direta é compatível com sistemas de governo presidencialistas (onde o PR governa), com sistemas híbridos (em que o Presidente compartilha da função governamental com o primeiro-ministro, responsável perante o parlamento) e com sistemas de índole essencialmente parlamentar, como o nosso (em que o PR não governa nem participa no governo, que é reserva do primeiro-ministro). Entre nós, o PR não é eleito para a função governamental, pois não é proposto por partidos nem na base de um programa de governo; aliás, quando um novo PR é eleito, ele "herda" o governo em funções, cujo mandato se mantém, que ele não pode demitir e em cuja composição não pôde obviamente interferir. A legitimidade política do Governo não deriva do Presidente, mas sim das eleições parlamentares, justamente disputadas entre partidos e na base de programas de governo.

Às avessas (5): Hipocrisia sindical e política

É sempre em alegada defesa dos respetivos serviços públicos que os seus funcionários declaram as suas greves, e que os partidos da oposição de esquerda as aplaudem, como agora sucede com a greve dos professores em suposta "defesa da escola pública", mesmo quando se trata de defender puramente os seus interesses profissionais (o que é legítimo), ou de defender óbvias causas políticas (o que é menos...) 

O que tenho por evidente é que as greves gerais dos professores - pondo em causa o clássico "princípio da continuidade dos serviços públicos" - e a instabilidade que criam nas escolas e no aproveitamento escolar dos alunos, havendo milhares deles sem aulas, só prejudicam o ensino público, levando muitos pais, quando o possam fazer, a mudarem os filhos para o ensino privado (onde os professores não fazem greves, mesmo com condições menos favoráveis...). O ensino privado agradece a ajuda. 

A tal "defesa da escola pública" torna-se, afinal, num poderoso argumento contra a escola pública...

Sim, mas (11): Uma boa resposta política, com alguns riscos

1. O novo mecanismo aprovado pelo Governo para verificação prévia da idoneidade política de novos governantes - questionário sobre dezenas de dados relevantes e declaração de compromisso pessoal - foi apressadamente condenado como irrelevante ou como uma "mão cheia de nada" pelos partidos da oposição em geral e por muitos comentadores. Mais desbocado, o presidente do governo regional da Madeira chegou a falar em "palhaçada". Mas trata-se de uma atitude politicamente sectária, no primeiro caso, e puramente provocatória, no segundo.

Na verdade, parece-me óbvio que, se este controlo prévio já existisse antes da recente demissão de três secretários de Estado pouco antes nomeados, nenhum desses casos teria ocorrido, porque todos aqueles teriam sido liminarmente barrados antes de serem nomeados. 

Embora sem garantias de ser à "prova de bala" em todas as situações no futuro, não pode pôr-se seriamente em causa a pertinência e adequação da solução proposta.

2. Concordando globalmente com o mecanismo adotado, penso, porém, que o questionário peca por excesso em relação a algumas perguntas, demasiado genéricas ou equívocas, como, por exemplo, a pergunta nº 3 (sobre se "presta, ou desenvolveu nos últimos três anos, atividade de qualquer natureza, com ou sem carácter remunerado ou de permanência, suscetível de gerar conflitos de interesses, reais, aparentes ou meramente potenciais com o cargo a que é proposta/o"), a pergunta nº 21 (sobre rendimentos provenientes do estrangeiro, incluindo os do trabalho, como se todos fossem à partida suspeitos), ou a pergunta nº 29 (sobre se "alguma vez" o questionado foi condenado por infração contraordenacional, por mais antiga e por mais leve que tenha sido).

Mesmo que, obviamente, a resposta positiva a tais perguntas não seja só por si eliminatória, sendo elemento de apreciação global do PM ou do ministro convidante, conforme os casos, a verdade é que elas podem inibir muita gente, mais escrupulosa ou mais receosa, de aceitar o convite para integrar o Governo.

Adenda
O risco das perguntas menos cuidadas está em que, mal a imprensa descubra qualquer facto atinente a uma das perguntas, vai imediatamente querer saber que reposta lhe foi dada pelo governante em causa e questionar automaticamente a licitude da nomeação. Se a própria "imprensa de referência", descuidadamente, já o começou a fazer, o que não vai suceder com a imprensa tabloide?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Assim vai a política (15): "Fogo amigo"

Quando o Governo e o PS estão sob fogo intenso das oposições, por causa da sucessão de casos de demissão forçada de ministros e secretários de Estado, o que leva duas ex-ministras de António Costa, uma delas, aliás, com responsabilidades partidárias e deputada, a participar em iniciativas políticas do BE, o qual conduz, na AR e fora dela, uma agressiva oposição ao Governo e ao PS? 

Não é seguramente em nome da lealdade e da solidariedade política que devem ao PS e ao PM...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Privilégios (10): Bomba-relógio orçamental

1. Fez bem o Ministro da Educação em responder ao artigo arrogantemente crítico de Sampaio da Nóvoa sobre os professores. 

Todavia, num dos pontos abordados - o do aumento galopante de professores que chegam ao topo da carreira - o texto do Ministro vem confirmar os piores receios quando ao atual regime especial privilegiado da carreira do professores. De facto, uma carreira "plana", sem graus, em que a avaliação de mérito é uma ficção, só pode resultar num acesso generalizado ao topo da carreira.

2. Considerando o grande número dos profissionais em causa - de novo a crescer, apesar da perda de alunos das escolas -, o peso orçamental desse processo, quer em termos de remunerações, quer de pensões, só pode aumentar substancialmente. Como se mostrou há pouco anos, com o enorme impacto orçamental que teria a recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período da intervenção financeira externa - que levou o Primeiro-Ministro a ameaçar com a abertura de uma crise política -, é conveniente ter em conta que, a médio prazo, podemos estar criar uma bomba-relógio orçamental.

O ministro das Finanças e o Primeiro-Ministro não podem fechar os olhos a esta situação.

Ética republicana (5): Os partidos devem fazer mais

É evidente que o PS não pode deixar de condenar publicamente a desvergonha política da ex-secretária de Estado do Turismo que, em fragrante violação da lei, aceitou um cargo de gestão numa empresa do setor turístico, que tinha beneficiado de ajudas de Estado por decisão sua. Antes de ser ilegal, a conduta da senhora é politicamente indigna.

Mas em vez de remeterem despropositadamente o caso para a alçada dos tribunais, incluindo o Tribunal Constitucional (!), que nada podem fazer, dada o tipo de sanção prevista na lei para estas situações (inibição temporal do exercício de cargos públicos), os partidos podem e devem fazer bastante mais, nomeadamente: (i) instituir um mecanismo robusto de verificação prévia da idoneidade política das pessoas indigitadas para funções políticas (como aqui defendi); (ii) passar a exigir um compromisso escrito de cumprimento do código de conduta governamental no exercício de funções políticas, incluindo o estrito respeito pelas inibições legais pós-saída de funções; (iii) se membros do partido de Governo (não sei se era o caso quanto à senhora em causa), sujeitar os prevaricadores a um processo disciplinar por ofensa da honra política do partido.

Uma coisa tenho como certa: a dignidade da política e a confiança nos partidos políticos são fatalmente afetadas por situações destas.

[revisto]

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Carlos Santarém Andrade (1941-2023)

1. Antes de ser o consagrado especialista da história cultural de Coimbra que depois veio a ser, Carlos Santarém, como era conhecido, tornou-se uma figura mítica na academia coimbrã por causa dos seus desenhos satíricos durante a grande luta estudantil de 1969, que, reproduzidos aos milhares pela AAC, com meios rudimentares, foram um poderoso instrumento de denúncia da repressão governamental e policial. As memórias iconográficas da crise prestam-lhe o devido tributo.

Mais tarde, como membro da redação da Vértice (revista doutrinária ligada ao PCP, onde sucessivas gerações de autores de esquerda colaboraram), preparou e publicou em 1987 o precioso índice de autores da revista desde a sua fundação (1942-1986), que é um instrumento indispensável para a história intelectual do século XX.

2. Embora licenciado em direito, foi como bibliotecário (diretor da Biblioteca Municipal de Coimbra) e investigador da história literária coimbrã que se notabilizou, tendo publicado numerosos estudos não somente sobre a revista Presença, mas também sobre a ligação de muitos escritores e outros intelectuais dos séculos XIX e XX com a Universidade e a cidade de Coimbra, nomeadamente Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, António Nobre, Jose Régio, Vitorino Nemésio, José Gomes Ferreira, Fernando Lopes Graça, Carlos de Oliveira, Ruben A., Miguel Torga.

Alargando o âmbito da sua investigação à história política, ainda recentemente deu a público a sua monografia sobre o desenvolvimento das ideias republicanas na cidade do Mondego, desde meados do século XIX à proclamação da República na cidade, em 6 de outubro de 1910. 

É, portanto, grande a dívida de Coimbra para com ele.

3. É de esperar, por isso, que a importante contribuição de Carlos Santarém para a história cultural e política da cidade (para além do seu papel de diretor da Biblioteca Municipal) obtenha da câmara municipal de Coimbra o devido reconhecimento público.

Isso deve incluir, se possível, a aquisição e valorização do enorme fundo de revistas e suplementos literários e culturais que ele foi colecionando e organizando metodicamente durante décadas e que, com o seu nome, deve ser colocado à disposição dos novos investigadores.

Adenda
Uma maneira simples de recordar a obra de CSA seria a edição, pela CMC, de uma coletânea da série de opúsculos que ele elaborou e publicou sob o lema "Passear na Literatura", sobre os roteiros pessoais de vários dos escritores acima referidos em Coimbra, guiões esses que Mário Torres, também condiscípulo de Carlos Santarém e igualmente um apaixonado cultor da história de Coimbra, está a rememorar na sua excelente página do Facebook.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Assim vai a política (14): Quando os observadores políticos se precipitam

1. Este texto de Ana Sá Lopes no Público de hoje (reservado a assinantes) mostra que os comentadores políticos, mesmo em jornais de referência, podem entrar em elucubrações politicamente bizarras. 

Ao defender que António Costa se devia afastar, mais cedo do que tarde, do Governo e da liderança do partido, para preservar as futuras hipóteses eleitorais do PS, a autora não se dá conta de que se trata de uma hipótese aburda, por várias razões: (i) não existe nenhum movimento de opinião nesse sentido, nem no PS nem no País; (ii) António Costa continua a ser o principal ativo político do PS, sem alternativa à vista com estatura política comparável; (iii) a saída do PM suscitaria uma crise política que, conjugada com vagatura da liderança do PS, levaria necessariamente a eleições antecipadas; (iv) no atual quadro político não se vê que alternativa de Governo minimamente estável poderia sair de novas eleições parlamentares.

Ninguém de bom senso político poderia defender responsavelmente uma solução dessas.

2. Causa-me impressão a tendência de observadores políticos para julgarem os protagonistas políticos e os governos por fatores conjunturais, mesmo quando graves, como sucede com a recente sucessão de casos de demissão de membros do Governo, por motivos que, aliás, não dizem respeito diretamente ao PM.

Por um lado, sucede que estes casos vão seguramente levar à instituição de um mecanismo de verificação prévia da idoneidade política dos indigitados, o que representará um assinalável progresso na confiança dos cidadãos em quem governa.

Por outro lado, a recente agitação na equipa governativa não pode fazer esquecer o muito razoável desempenho do Governo nas complexas circunstâncias presentes e as perspetivas de melhoria do quadro existente, mercê designadamente dos investimentos do PRR e do esperado alívio da vaga inflacionista.

3. Não é preciso ser um yes man do Governo - o que não é manifestamente o caso do autor destas linhas, como este blogue mostra -, para valorizar, por exemplo, as medidas tomadas para atenuar o impacto da inflação nos grupos socialmente mais vulneráveis, os avanços no Estado social (salário mínimo, creches gratuitas, habitação social, reanimação do SNS, "ação afirmativa" no acesso ao ensino superior), a renovada aposta nas energias renováveis e no hidrogénio verde, o compromisso firme quanto à consolidação orçamental e a redução substancial do peso da dívida pública, o avanço decisivo no processo de decisão quanto a infraestruturas essenciais desde há muito adiadas (ferrovia e novo aeroporto), a reforma do Estado em curso quanto a pontos críticos (descentralização municipal, preparação da base material da futura descentralização regional, reforma das ordens profissionais), etc.

Decididamente, tão habituados estão os observadores políticos a focar-se sobre a superfície do dia a dia político, que se não dão conta dos movimentos de fundo, que, esses sim, podem afetar a vida dos portugueses e ditar o juízo definitivo sobre o governo em funções. 

Para quem preza a estabilidade e a responsabilidade política, a equipa governativa, tal como futebol, só deve ser julgada pelo cumprimento do seu programa e pelo resultado no final do jogo, ou seja, no termo da legislatura.

Adenda
Um leitor objeta que, contrariamente ao que escrevi, um dos casos, o da nomeação do ex-secretário de Estado da PCM, antigo Presidente da Câmara de Caminha, foi da responsabilidade política do PM. Tem razão: tive em mente somente nos casos mais recentes...

Novo aeroporto (5): Depois da saída de Pedro Nuno Santos

Eis uma boa análise, informada e objetiva, do dossiê do novo aeroporto, na sequência da demissão de Pedro Nuno Santos do ministério competente.

Quanto à pergunta sobre saber a quem responde politicamente o novo Ministro, se ao PM ou ao anterior ministro (de quem era secretário de Estado), parece óbvio que só a primeira alternativa se aplica. Todavia, o momento da decisão política tem de aguardar pelo relatório da comissão técnica independente, criada pelo Governo, em articulação com o PSD, na sequência do afastamento da precipitada decisão unilateral de PNS no verão passado, a favor da opção Monijo + Alcochete. 

A grande novidade do novo leque de opções em estudo é a solução de Santarém (quer isoladamente, quer em conjunto com a Portela), que tem vindo a ganhar uma credibilidade de que à partida parecia não dispor.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Estado social (11): Acesso mais equitativo ao ensino superior

1. Penso serem de aplaudir três medidas anunciadas pelo Governo quanto ao acesso ao ensino superior

   - reforçar, ainda que modestamente, o peso da classificação dos candidatos no exame nacional, atenuando o privilégio das classificação artificialmente elevadas das escolas privadas; 

   - incluir no exame nacional um teste de Português, combatendo a contínua degradação da preparação dos novos universitários quanto à língua; 

  - introduzir um novo fator preferencial de natureza social, quanto a um certo número de vagas, de modo a contribuir para a mobilidade social ascendente.

Politicamente, a mais inovadora é seguramente a última.

2. Apesar dos problemas constitucionais que suscita, é bem-vinda a instituição de mecanismos de "ação afirmativa" no acesso ao ensino superior, a fim de facilitar a entrada de estudantes oriundos de famílias de menores rendimentos. Trata-se, aliás, de estender a solução que já existe para filhos de emigrantes e estudantes oriundos dos Açores e da Madeira, assim como para alunos com deficiência.

Adotadas em vários países, a começar pelo Brasil, as quotas de entrada reservadas aos estudantes de origens sociais menos abonadas constituem uma importante alavanca para contrariar a tendência do ensino superior para servir de reprodução da elite social e promover a igualdade social. Nas palavras do secretário de Estado competente, trata-se de «dar uma vantagem a quem sempre viveu em desvantagem».

Nesta área, o Estado social não consiste somente em assegurar igualdade de oportunidades (bolsas de estudo, alojamento estudantil, etc.), cumprindo também contrariar em concreto a lógica de reprodução das diferenças sociais através da educação.

Adenda
Quando se sabe que a nota mais comum nas escolas privadas é de 20 nas disciplinas sem exame nacional, fica patente o irresponsável facilitismo do ensino privado e a falta de seriedade de quem defende a dispensa dos exames nacionais no acesso ao ensino superior. Mas esse dado também torna injustificável que eles continuem a não contar para a conclusão do ensino secundário.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Praça da República (70): A composição do Governo compete ao Primeiro-Ministro

1. Tem toda a razão o Presidente da República em rejeitar a ideia do Primeiro-ministro de associar Belém à verificação da idoneidade política dos membros de governo propostos para nomeação presidencial, defendendo que essa tarefa cabe ao próprio chefe do Governo numa fase anterior, ao escolher as pessoas a propor.

Com efeito, tal como aqui defendi, a seleção dos membros do Governo deve passar por uma cuidadosa verificação prévia sobre a integridade política dos indigitados, incluindo uma declaração pessoal destes de que não padecem de nenhuma "maleita" sob o ponto de vista da ética política.

2. No nosso sistema político-constitucional, de natureza parlamentar (embora por vezes indevidamente designado como "semipresidencialista"), a tarefa de formação política do Governo e de seleção da equipa governativa cabe exclusivamente ao primeiro-ministro. Por isso, um eventual veto político do Presidente só tem cabimento em situações-limite.

Neste quadro, não faz sentido transferir a referida verificação do caráter político dos membros do Governo para depois da proposta da nomeação e envolver o Presidente da República nessa tarefa, comprometendo-o politicamente na "validação" política dos membros do Governo nomeados.

Adenda
Em contrapartida, também não constitui incumbência do PR a denúncia pública de eventuais vulnerabilidades políticas de membros do Governo, antecipando-se aos próprios partidos de oposição. No nosso político-constitucional, o Governo só é politicamente responsável perante a AR, e não cabe ao PR substituir-se à oposição. O PR está claramente a tirar partido oportunisticamente dos "casos" que têm afetado o Governo para o "grelhar" politicamente.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

+ Europa (69): Mas uma provocação polaca

Só pode ser interpretada como uma inaceitável provocação a hipótese de restauração da pena de morte na Polónia, explicitamente mencionada pelo primeiro-ministro. Sucede, porém, que a pena de morte está rotundamente abolida pela Carta de Direitos Fundamentais da União e a sua interdição constitui um dos mais elevados valores compartilhados pelos Estados-membros. 

Ao equacionar a hipótese de restauração da pena capital, o goveno polaco não está somente a desafiar o Estado de direito e o direito constitucional da União, mas também os seus valores fundamentais. 

As instituições da União, a começar pelo Parlamento Europeu, não podem deixar passar esta nova  provocação política e institucional de Varsóvia sem a devida resposta.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O SNS em questão (4): Novos médicos

É animador saber pelo Ministro da Saúde do aumento do número de médicos em formação no SNS, incluindo nas especialidades mais carenciadas. Já é menos bom, pelo contrário, saber que no final muitos deles vão diretamente para o setor privado, nem sequer se candidatando às vagas abertas no SNS. 

Há muito tempo que contesto este sistema em que o Estado não somente sustenta quase todas as faculdades de Medicina, mas também faz a onerosa formação de quase todos os médicos, dispensando o setor privado dos custos de formar seu próprio pessoal. Penso que se impõem duas soluções: (i) exigir ao setor privado a formação dos seus próprios médicos, alterando a legislação respetiva e vencendo a resistência corporativa da Ordem dos Médicos; (ii) estabelecer uma obrigação a todos os novos médicos formados no SNS de se candidatarem durante um certo período de tempo às vagas abertas no setor público, assim retribuindo, ainda que modestamente, o pesado investimnento público na sua formação. 

É tempo de parar a parasitação do SNS e do dinheiro dos contribuintes pela clínica privada...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Não concordo (37): Ministério da Habitação

Discordo da criação de um ministério da Habitação, hoje anunciada pelo Primeiro-ministro.

Primeiro, trata-se de uma excessiva segmentação setorial do Governo, para responder a uma questão política que diz respeito essencialmente a Lisboa (devido à fatal concentração económica, política e  administrativa na capital) e que, a meu ver, na sua dimensão ativa - a da habitação social - deveria ser uma incumbência municipal e não estadual. Em segundo lugar, a elevação da política habitacional a ministério entregue à secretária de Estado cessante - que se fez notar há pouco tempo pela insólita defesa de uma obrigação do Estado de assegurar um suposto direito universal a morar nas zonas mais caras - apenas vai tornar mais visível a inconsequência das soluções até agora adotadas, apesar do investimento político e financeiro envolvido... 

Adenda
Também a solução de continuidade "endogâmica" para o ministério das Infraestruturas vai alimentar as acusações de falta de rasgo e ambição na solução da crise aberta pela saída de Pedro Nuno Santos. Por mais fiel que possa ser às políticas do seu antecessor, o novo ministro não tem a sua estatura nem autoridade política... 

domingo, 1 de janeiro de 2023

Praça da República (69): A questão das empresas públicas

A minicrise política gerada pelo caso da gestora afastada da TAP com uma choruda reparação que depois acabou nomeada secretária de Estado põe em relevo mais uma vez uma das principais vulnerabildades das empresas públicas, que é a politização da sua gestão. 

Elas não respondem somente perante os mercados, como as empresas privadas, mas também no campo político. Por isso, além de serem alvo privilegiado dos sindicatos, através de frequentes greves de fundo político (que se não verificam nas empresas privadas concorrentes), elas são também instrumentalizadas pelos partidos da oposição na sua luta contra o Governo, no parlamento e fora dele

[Foi mudado o título do post.]

Adenda

Um leitor observa que o Estado democrático não pode deixar de controlar os "monopólios naturais" e as alavancas do poder económico. Mas, mesmo sendo assim, há meios de separar o controlo público da gestão pública direta, nomeadamente as concessões e as PPP. É uma questão política e doutrinária...

Adenda 2
Outro leitor objeta que «os trabalhadores do setor público não perdem o direito à greve», o que é incontestável. O problema está na frequência das greves nos serviços públicos (escolas, SNS, transportes públicos, etc.), comparativamente com os setores privados concorrentes, apesar das regalias de que dispõem naqueles, a começar pelo horário de 35 horas semanais; muitas das greves só existem porque o patrão é o Governo e porque os problemas causados aos utentes pelas greves nesses setores são políticamente assaz incómodos.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Ética republicana (3): Um caso indecente

1. Como é que a gestora de uma empresa pública em oneroso processo de recuperação - à custa de mais de 3000 milhões de dinheiro dos contribuintes, de redução de pessoal e de diminuição salarial - consegue obter uma indemnização de meio milhão à conta de fim da relação contratual, por incompatibilidade (talvez deliberada) com a administração, e pouco depois é premiada, primeiro com a nomeação para gestora de outra empresa pública na mesma área e sob a mesma tutela, e depois com a nomeação para secretária de Estado no sensível ministério das Finanças?

Pior do que falta de escrúpulos da beneficiária é a indecência política da sua imediata nomeação para outra empresa pública e, pior ainda, para o Governo

2. Impõe-se claramente instituir um teste de ética republicana antes de todas as nomeações políticas, quer através do adequado escrutínio do CV dos indigitados, quer requerendo a todos eles uma declaração pessoal de isenção de envolvimento em qualquer ato ou omissão suscetível de pôr em causa a ética política. 

Numa república bem governada não basta a legalidade dos procedimentos políticos, mas também a sua conformidade com os princípios da integridade e da ética republicana.

No bicentenário da Revolução Liberal (44): Quando o grande protagonista do constitucionalismo "vintista" morreu

 

1. No passado dia 19 de novembro passaram 200 anos sobre a morte de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), figura maior da Revolução liberal e constitucional em Portugal, desde o Sinédrio (1818) às primeiras eleições parlamentares (verão de 1822), passando pela revolução, o governo provisório, as Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição de 1822.

No artigo acima referenciado - coautoria do meu colega Professor José Domingues e minha, na revista JN História, hoje publicada -, coligimos os principais testemunhos coevos sobre a sua morte, desde as cerimónias fúnebres em Lisboa e no Porto, passando pelos relatos na imprensa, até aos discursos na homenagem que lhe foi prestada poucos dias depois na Sociedade Literária Patriótica, nomeadamente de Almeida Garrett e Xavier de Araújo.

Nestas impressionantes manifestações de pesar e admiração sobressai devidamente a grandeza e a integridade política e moral do "patriarca" do constitucionalismo em Portugal.

2. Ninguém como Fernandes Tomás encarnou os ideais do vintismo na supressão do despotismo absolutista e na sua substituição por um regime constitucional baseado na liberdade individual, na cidadania, na soberania da Nação, na separação de poderes (legislativo, executivo, judicial), no governo representativo assente num parlamento eleito como titular exclusivo do poder legislativo e na submissão do governo à lei.

A sua morte prematura, que já não lhe permitiu iniciar o mandato de deputado às Cortes ordinárias, para que foi eleito em vários círculos eleitorais, anuncia simbolicamente a aproximação do fim do breve triénio vintista (1820-1823). Mas o seu legado de fundador da moderna era constitucional em Portugal, de que somos herdeiros, merece o nosso eterno tributo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

50 anos do 25 de Abril (1): Comemorar e refletir

Quando se aproxima o meio século da revolução democrática do 25 de Abril de 1974 - que pôs fim à longa ditadura do chamado Estado Novo e à guerra colonial e instituiu o Estado de direito constitucional, a democracia liberal e o Estado social de que hoje usufruimos -, importa não somente preparar as merecidas celebrações, mas também refletir aprofundamente tanto sobre os êxitos alcançados como sobre os desafios subsistentes.

Nessa última perspetiva, cabe naturalmente às universidades uma especial responsabilidade. Cumpre, por isso, saudar a iniciativa da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a dinâmica direção do Professor Gouveia Monteiro, de organizar nos primeiros meses do ano que vem uma série de conferências a duas vozes sobre um conjunto dos temas da maior atualidade.

É um bom começo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (44): As primeiras eleições parlamentares, 1822.

1. Assinalando os 200 anos das primeiras eleições parlamentares em Portugal (1822), acaba de sair do prelo, por conta das edições da Assembleia da República, o livro acima apresentado, mais um produto da minha coautoria com o meu colega José Domingues, no campo da história política e constitucional nacional. 

Até agora pouco conhecidas, por carência de documentação, a investigação que gerou este livro  deve-se à descoberta de um espólio até aqui desconhecido, relativo ao círculo eleitoral de Arcos de Valdevez (que abrangia todo o Alto Minho), que foi salvo, por feliz acaso, da sanha destruidora da contrarrevolução anticonstitucional, que mandou queimar toda a documentação oficial sobre as eleições vintistas.

2. Realizadas em agosto e setembro de 1822, ainda a Constituição não estava concluída, segundo lei eleitoral aprovada pelas próprias Cortes Constituintes, as eleições parlamentares de 1822 representaram uma notável mudança em relação às eleições constituintes de 1820, nomeadamente quanto à adoção da eleição direta dos deputados, em círculos eleitorais plurinominais, em vez da eleição indireta em quatro graus das eleições precedentes, tal como em Espanha.

Tendo-se mantido, apenas com ligeiras alterações, o direito de sufrágio (masculino) alargado de 1820, sem requisitos de rendimento ou literacia, as nossas primeiras eleições parlamentares não só comparam positivamente com os sistemas eleitorais coevos - em que a opção pela eleição direta, quando existia, era contrabalançada pelo sufrágio mais ou menos restrito -, mas também permaneceram sem seguimento na nossa história eleitoral praticamente até às eleiçoes constituintes de 1975, as primeiras por sufrágio universal!

3. Embora as eleições para as Cortes ordinárias de 1822 se tenham saldado por uma vitória política do "partido constitucional", apesar da ofensiva das correntes reacionárias, a verdade é que o campo parlamentar vintista se viu desfalcado da núcleo duro dos membros do Sinédrio, nomeadamente das suas figuras mais eminentes, como Fernandes Tomás (que faleceu prematuramente e não chegou a tomar posse do mandato) e Ferreira Borges (que não conseguiu ser eleito no seu Porto natal).

Privado da liderança política e moral dos "pais da revolução constitucional", o parlamento vintista não teve força suficiente para contrariar a redução da base social de apoio da revolução, designadamente entre os militares, nem para obtar à conspiração e sublevação miguelista.

Mas a brevidade da experiência vintista em nada diminui a importância dessas primeiras eleições parlamentares na nossa história eleitoral, parlamentar e constitucional.