quinta-feira, 23 de março de 2023

Não concordo (40): Apoios universais não fazem sentido

1. Não vejo que sentido faz reduzir o IVA sobre produtos alimentares, tornando-os supostamente mais baratos para toda a gente, incluindo aqueles que, pelo seu elevado rendimento, não precisam desse alívio fiscal. Mantenho que mais vale manter o IVA e destinar a receita adicional para subsidiar especialmente aqueles que, pelos seu baixos rendimentos, são mais atingidos pelo surto inflacionista em curso. 

Descidas gerais dos impostos correm o risco de continuar a alimentar a procura e a inflação, por causa do aumento transversal do poder de compra.

2. Julgo, aliás, que vão nesse sentido as recomendações tanto do BCE como da Comissão Europeia, para fazer cessar a contradição entre a política monetária contracionista do BCE (subida dos juros para travar a inflação) e uma política fiscal e/ou orçamental expansionista dos governos nacionais, através de subsídios ou reduções fiscais socialmente indiferenciadas, o que só pode obrigar aquela a ser ainda mais dura.

Para política orçamental expansionista, a fomentar a procura agregada e a puxar pelos preços, já basta o "maná" do PRR da UE.

Adenda
Pelo acima exposto, não posso subscrever a crítica de AC à continuada subida dos juros pelo BCE,  porque este está simplesmente a cumprir o seu mandato constitucional de fazer descer a elevada inflação, que é um cancro que corrói o tecido económico e social. Aliás, as medidas governamentais de apoio socialmente indiferenciadas ao poder de compra só tornam mais árdua a tarefa do BCE.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Corporativismo (43): O que falta fazer quanto às ordens profissionais

1. Com a promulgação da nova lei-quadro das ordens profissionais, consuma-se uma etapa essencial na reforma da regulação das profissões "ordenadas", numa perspectiva menos corporativista e mais aberta ao escrutínio público, incluindo a participação de personalidades externas na respetiva supervisão e disciplina profissional e um mecanismo de queixa dos clientes dos referidos serviços contra falhas e abusos na sua prestação.

Mas para concluir esta reforma torna-se obviamente necessário proceder à adaptação das leis orgânicas de todas as ordens existentes e, depois, fazê-las implementar no terreno, sendo de esperar que, desta vez, nenhuma das ordens consiga obter importantes derrogações singulares da nova lei-quadro, como sucedeu em relação à lei que ainda está em vigor, aprovada em 2013, com a conivência do Governo e da maioria parlamentar da altura.

2. Mas, embora resolvendo alguns dos graves problemas da regulação profissional entre nós - nomeadamente o défice de supervisão e de disciplina, a pulsão malthusiana na restrição do acesso às profissões e a falha na proteção dos direitos dos clientes -, esta substancial revisão legislativa dos poderes e da organização das ordens profissionais não enfrenta outro dos grandes vícios do regime vigente, que é o âmbito excessivo dos chamados "atos próprios" de cada profissão, vedados a outros profissionais, que as principais ordens conseguiram alargar a atividades fora do núcleo duro das respetivas profissões. 

Como restrições que são à liberdade de exercício profisssional de categorias profisssionais confinantes, os exclusivos profissionais têm de limitar-se ao minimo necessário, o que manifestamente não acontece desigadamente no que respeita aos advogados e aos médicos.

Ora, enquanto se mantiverem esses amplos monopólios profissionais, mantém-se plenamente válida a crítica da OCDE e da Comissão Europeia contra a indevida restrição à concorrência na prestação de serviços profissionais entre nós.  Por isso, impõe-se aproveitar a reforma das ordens profissionais para rever também tais exclusivos profissionais.

3. Acresce que nenhuma reforma legislativa vingará, se não houver uma mudança de atitude política quer da AR, quanto à contenção na criação de novas ordens sem nenhuma justificação, quer do Governo, no que respeita aos seus poderes de tutela sobre os abusos das ordens.  

Por um lado, não se compreende que as ordens profissionais - que representam um casamento "contra natura" entre  associações profissionais e regulação pública, com as contradições inerentes - tenham proliferado entre nós desde a implantação da democracia liberal (que convive mal com associações obrigatórias e com a representação oficial de interesses profissionais) e da economia de mercado (que assenta na liberdade e na concorrência profissional). Por outro lado, não se percebe como é que, ao longo destes anos todos, apesar da evidência generalizada das omissões e dos abusos das ordens profissionais (que fui denunciando neste blogue), os sucessivos Governos só tenham visto motivo para abrir uma inspeção a uma delas num único caso (à Ordem dos Enfermeiros).

A continuar esta "captura" estrutural do Estado pelas corporações profissionais, nenhuma reforma legislativa nos vale, por mais bem-intencionada que se apresente à partida.

terça-feira, 21 de março de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (20): Uma acusação infundada

1. O Diário de Notícias acusa hoje o Presidente do Tribunal Constitucional, que acaba de terminar o seu mandato mas não foi substituído até à data, de se «recusar sair pelo próprio pé», como se ele tivesse uma obrigação de sair e estivesse indevidamente agarrado ao lugar, juntando-se assim a dois outros juízes que já terminaram o seu mandato há muito mais tempo e também não foram atempadamente substituídos.

Trata-se, porém, de uma acusação totalmente infundada, baseada num manifesto erro de análise, que põe em causa injustificadamente a honorabilidade pessoal e cívica do Presidente e dos demais juízes.

2. Com efeito, ao abrigo de um princípio constitucional aplicável aos titulares de cargos públicos em geral, a começar pelo Presidente da República, os juízes do Tribunal Constitucional, chegados ao fim do seu mandato sem serem devidamente substituídos, não só não têm de deixar os cargos, como têm, pelo contrário, a obrigação institucional de se manterem no exercício de funções, em prorrogação do mandato, até serem efetivamente substituídos. Trata-se, obviamente, de não afetar o funcionamento regular do Tribunal. 

Sucede, aliás, que no caso específico dos juízes do Tribunal Constitucional, tal princípio está explicitamente consagrado num preceito legal, segundo o qual eles «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar» (art. 21º da Lei do TC), não podendo, portanto, abandonar o cargo antes disso, por sua livre decisão. Por isso, nessas situações, a renúncia, embora possível, deve ser uma ocorrência excecional, por indisponibilidade, mas não por capricho, pessoal.

Ora, embora o Presidente do TC tenha invocado explicitamente esse preceito legal, que o jornalista transcreve, este preferiu ignorá-lo, apesar de ele destruir todo o seu "caso".

3.  A lamentável conclusão a retirar deste episódio é que estes "passos em falso" podem ocorrer mesmo em "jornais de referência", quando o zelo e a isenção jornalística entram em pausa, cedendo à fácil tentação jornalística de "arrasar" um membro proemiente da "elite do poder".

Não é costume os titulares de cargos públicos recorrerem ao direito de resposta, aliás constitucionalmente protegido, mesmo quando ele se justifica, como seria manifestamente o caso. Mas não ficaria mal a um jornal com os pergaminhos do DN, voltar ao caso e corrigir oficiosamente o erro e a ofensa

[Texto pontualmente revisto]

Adenda
Um leitor argumenta que, se os juízes que estão em prorrogação do mandato renunciassem, libertar-se-iam da obrigação de continuarem em funções e forçariam o preenchimento das vagas. Duvido que isso servisse de alguma coisa, salvo libertá-los de encargos e criar dificuldades ao funcionamento do Tribunal, o que não se afigura intitucionalmente muito responsável por parte dos seus juízes, em especial do Presidente.

Adenda
Outro leitor diz ter lido que os juízes do TC querem continuar em funções para além do termo do seu mandato, para assim «obterem o direito a aposentarem-se com uma pensão igual à sua elevada remuneração». Sim, essa acusação contra a prorrogação dos mandatos já foi veiculada em alguns jornais, mas não passa de uma atoarda, sem nenhum fundamento. Como mostrei AQUI, o direito a pedir a aposentação com tal pensão "majorada" - regalia de que, aliás, discordo - obtém-se com a simples conclusão do mandato, sem necessidade de nenhum prologamento, pelos que os juízes que ficam em prorrogação, continuando em funções, apenas adiam o momento de a requererem, sem nenhuma vantagem adicional.

domingo, 19 de março de 2023

No bicentenário da Revolução Liberal (47): O debate sobre as eleições parlamentares há dois séculos

Eis a última produção do projeto de investigação sobre a Revolução Liberal de 1820 e a Constituição de 1822, que tenho desenvolvido na Universidade Lusíada do Porto em parceria com o meu colega José Domingues, desta vez com a colaboração dos doutorandos em Direito do ano letivo passsado. 
O livro, financiado pela FCT no âmbito daquele projeto, pode ser lido online AQUI.
Além dos trabalhos dos doutorandos sobre os vários capítulos do sistema eleitoral do parlamento vintista, a obra compreende também uma abrangente bibliografia e uma coletânea de textos coevos, alguns deles absolutamente inéditos, testemunhando o vivo debate público extraparlamentar sobre o tema, numa demonstração viva da cidadania política recém-conquistada

sábado, 18 de março de 2023

Praça da República (74): Pior do que no "Estado Novo"

1. Na vaga de nacionalizações de 1975, não foram poupadas as empresas concessionárias dos transportes locais de Lisboa (a Carris, o metropolitano e os transportes fluviais) e do Porto (o STCP), o que se traduziu na sua estatização e numa enorme restrição da autonomia local, que até o Estado Novo tinha respeitado.

Pior do que isso, passadas várias décadas de reversão das nacionalizações (desde a revisão constitucional de 1989), tal não abrangeu as referidas empresas de transportes, as quais, salvo a Carris e o STCP, desde há poucos anos, continuaram nas mãos do Estado, sob gestão governamental, privando os respetivos municípios da respetiva gestão (embora com a sua interesseira conivência...), em flagrante violação dos princípios constitucionais da descentralização e da subsidiariedade territorial.

2. Surge agora a notícia de que o Governo pretende fundir as duas empresas estatais de transportes fluviais de Lisboa e transferir esse serviço público para a esfera intermunicipal ou metropolitana, de onde, aliás nunca deveria ter saído.

Confiando que essa medida de descentralização territorial, que só peca por tardia, não venha a ser boicotada pelos sindicatos do setor - que, por razões políticas, preferem ter por patrão o Governo -, saudemos o afastamento, embora com décadas de atraso, de um mau legado da precipitada nacionalização geral dos transportes em 1975.

3. Há, porém, que registar a continuação da gestão estatal do metropolitano, não tendo havido concretização da abertura do então Ministro Matos Fernandes, no anterior Governo, em outubro de 2019, para desestatizar e transferir para a gestão metropolitana também esse serviço público.

Em 2016, celebrando a devolução da Carris ao município de Lisboa, o Primeiro-Ministro já tinha declarado que «quem gere a cidade deve gerir os seus transportes»Pelos vistos, porém, esse salutar credo descentralizador não tinha alcance geral...

É evidente que os muncípios beneficiários são os primeiros a não querer mexer no statu quo, já que assim é o orçamento do Estado - ou seja, os contribuintes nacionais em geral - a pagar os encargos desse dispendioso meio de transporte urbano. Mas não deixa de ser bizarro que as decisões sobre a rede de metro de Lisboa caibam a um ministro, e não ao governo da cidade ou da área metropolitana.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Antologia do nonsense (25): Acabar com a política de justiça?!

1. Parece-me francamente disparatada este proposta da SEDES, uma organização que se julgava imune a radicalismos políticos ou doutrinários, de extinção do ministério da Justiça, em alegada homenagem à separação de poderes.

Não faz nenhum sentido. Primeiro, a separação entre o poder executivo e poder judicial não é posta em causa pela existência do MdJ, havendo uma óbvia separação entre, por um lado, a atividade judicial e a gestão judicial, que constitucionalmente cabem exclusivamente aos tribunais e respetivos conselhos, e, por outro lado, a política da Justiça (cobertura judicial do território, equipamentos e pessoal, política criminal, custas judiciais, assistência judiciária, tutela das ordens profisssionais do setor, etc.), que cabe Governo, e pela qual ele responde politicamente perante a AR. Segundo, como mostra a lei orgânica do Governo, as competências do MdJ vão muito além da esfera dos tribunais e dos juízes (prisões, registos e notariado, Polícia Judiciária, reinserção social, etc.), sem esquecer a participação nacional na "formação" JAI do Conselho da UE. 

Em suma, uma proposta manifestamente irrefletida.

2. O que, pelo contrário, seria uma enorme violação da separação de poderes (desde logo entre o público e o privado) e da independência judicial (incluindo entre a judicatura e o Ministério Público) seria entregar a definição e execução da política de justiça, como propõe a SEDES, a um todo-poderoso "Conselho Superior Judiciário" centralizado, com representação conjunta de juízes, Ministério Público, advogados e oficiais de justiça... Só falta a Polícia Judiciária!

Uma verdadeira e despropositada salsada institucional.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Corporativismo (42): Alhos e bugalhos

1. Não tem nenhuma razão o advogado João Correia, quando acusa de inconstitucional a nova lei das ordens profissionais, no que respeita à Ordem dos Advogados, por alegadamente ofender o preceito constitucional sobre a proteção do patrocínio forense.

A verdade, porém, é que a nova lei não afeta em nada as imunidades do mandato forense, que existem independentemente de os adogados estarem, ou não, organizados em corporação pública, o que, aliás, sucede em muitos países. O tal preceito constitucional é totalmente irrelevante para a reforma da OA, em consequência da nova lei, pelo que decidiu bem o Tribunal Constitucional ao ignorar essa questão.

Trata-se, pura e simplesmente, de misturar alhos com bugalhos.

2. Enquanto ordem profissional, com funções de representação oficial da profissão e de regulação e disciplina profissional (por delegação do Estado), a OA em nada se distingue das demais, incluindo compartilhar, e de forma agravada, dos três grandes vícios de todas elas, designadamente: 

   - privilegiar descaramente a sua função sindical de defesa de interesses profissionais, em prejuízo da sua missão pública de supervisão e disciplina profissional, claramente negligenciada; 

   - cultivar aplicadamente a tradicional pulsão "malthusiana", restringindo abusivamente a liberdade de entrada na profissão (como se mostrou recentemente com a notícia de reprovação de mais de 80% dos candidatos no exame de acesso à profissão!); 

   -  defender ciosamente o amplo monopólio profissional para a prática de "atos próprios dos advogados", que nada justifica sejam exclusivos deles e vedados a outros profissionais (salvo o patrocínio judiciário), sendo uma forma privilegiada de restrição da concorrência na prestação de serviços profissionais.

Por conseguinte, não existe o mínimo fundamento para excecionar a AO da reforma da lei-quadro das ordens profissionais (aliás, modesta). Pelo contrário!

Adenda
Seguindo uma regra comum na profissão, também João Correia tenta desligar a Ordem dos Advogados do corporativismo do chamado Estado Novo, invocando que ela foi criada antes da instituição do regime corporativo. Mas é tarefa votada ao fracasso: ela foi criada logo em 1926 pela Ditadura militar que deu origem ao Estado Novo e foi inequivocamente integrada na organização corporativa desde o seu início, em setembro de 1933, através do diploma sobre os "sindicatos nacionais" (que abrangia os trabalhadores por conta de outrem e as "profissões livres"), o qual estabelecia explicitamente que «os sindicatos nacionais dos advogados, dos médicos e dos engenheiros podem adotar a denominação de "Ordens"». A função de representação e defesa profissional das ordens é de origem incontornavelmente corporativista. É feio tentar rever oportunisticamente a história.

Adenda 2
Acresce que os advogados (junto com os solicitadores) constituem o único caso de manutenção de um sistema privativo de segurança social de base profissional (a CPAS), aliás sem base constitucional, que é outro traço inequívoco do corporativismo "estado-novista".

Adenda 3
Nem de propósito para confirmar a persistência da memória corporativista na OA, vem a notícia de hoje, segundo a qual a respetiva Bastonária vai propor ao Governo a alteração do regime de segurança social dos advogados. Quando é que a OA se convence de que, como entidade pública administrativa que é, só pode atuar no âmbito das suas específicas atribuições legais e que entre elas não se conta, nem pode contar, a segurança social dos seus membros?

quarta-feira, 15 de março de 2023

Barbárie tauromáquica (14): Menos uma!

Eis que há mais uma praça de touros desativada e destinada a outro fim bem mais civilizado, ou seja, a hotel. Bela ideia!

Só é pena ser tão lento o ritmo de reforma dessas arenas de tortura animal para gáudio público...

terça-feira, 14 de março de 2023

Bloquices (25): Nem as pensam

O Bloco de Esqueda vai propor à AR que os advogados passem a ter opção entre manterem-se no seu regime privativo de segurança social (CPAS), ou migrarem para o sistema geral de segurança social - o que é um disparate.

Para além de os critérios de atribuição e de cálculo das pensões não ser idêntica nos dois regimes, essa opção não faz nenhum sentido em "sistemas de repartição", em que as pensões dos aposentados são pagas pelas contribuições de quem está no ativo. De facto: por um lado, as pensões de quem migrasse para o regime geral seriam pagas por este (ou seja, pelos trabalhadores em geral), apesar de as suas contribuições terem sido feitos para a CPAS? E como seriam financiadas as atuais e futuras pensões a cargo da CPAS, se uma percentagem importante dos advogados migrasse para o regime geral, deixando de contribuir para o fundo de pensões daquela?

falsas soluções fáceis...

sábado, 11 de março de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): Desvio de poder

1. Acentuando a sua compulsiva vertente de comentador político nesta entrevista dada à RTP e ao Público - em que, mais uma vez, falou sobre tudo e mais alguma coisa -, o Presidente da República permitiu-se fazer publicamente um balanço assaz crítico do primeiro ano do atual mandato governativo, assumindo o papel da oposição, o que manifestamente não cabe na sua função constitucional de "poder moderador", ou seja, de garante do regular funcionamento das instituições, de prevenção de abusos da maioria governamental e de proteção dos direitos da oposição. 

No nosso sistema político-constitucional, o julgamento político do Governo não cabe ao PR, mas sim ao parlamento, perante o qual aquele é politicamente responsável. Por maior que seja a liberdade de expressão política do PR, ela deve ser instrumental em relação às suas funções constitucionais, não devendo servir para usurpar ilegitimamente o papel da oposição e da Assembleia da República, afrontando a separação de poderes.

2. Mais grave ainda, sob o ponto de vista institucional, é a insistência de MRS no apoio à greve dos professores, cuja luta se permitiu qualificar explicitamente como «justa», alimentando a continuação da greve e indo ao ponto de "convidar" o Governo a passar a sua "linha vermelha" nas negociações em curso com os sindicatos, no que respeita à recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período de intervenção financeira externa.

Tudo é negativo nesta abusiva intervenção presidencial neste litígio sobre uma política sectorial: é incompreensível que ele intervenha publicamente num conflito entre o Governo e os sindicatos e tome partido pelos segundos contra aquele e é péssimo que, em vez de chamar a atenção para o privilégio profissional dos professores - uma carreira plana, sem verdadeira avaliação de desempenho, em que virtualmente todos podem chegar ao topo da carreira -, opte por intimar o Governo a abrir os cordões à bolsa, agravando a despesa corrente permanente e pondo em causa o equilíbrio das contas públicas.

Acontece, que, segundo a Constituição, é ao Governo, em exclusivo, que cabe a condução das políticas públicas, pelas quais é politicamente responsável perante a AR e os eleitores, bem como, no que respeita à responsabilidade orçamental, perante a União Europeia. É este quadro institucional de competência e de responsabilidade política que a indevida ingerência do PR lamentavelmente subverte.

Adenda
Compreende-se bem que o PS não queira abrir um litígio político com o PR, apesar da provocação deste. Mas bastava uma protocolar declaração de que "por princípio, o PS não comenta os comentários do PR". Ir ao ponto de considerar a entrevista presidencial como uma «análise equilibrada» é puro cinismo político (para dizer o menos...). 

Adenda 2
Os dirigentes do PSD que rejubilaram com a ingerência presidencial na área governativa considerá-la-iam aceitável, se fossem eles Governo?!

 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Não concordo (39): Contra a irresponsabilidade da ICAR

Discordo deste texto de Luís Aguiar-Conraria no Expresso de hoje, a propósito dos abusos de menores por padres

Apesar de, tal como ele, não ser crente, penso ter direito, não somente exigir ao Estado que não confira à Igreja e seus sacerdotes uma imunidade penal e civil, de que não podem gozar no Estado de direito constitucional que somos, mas também exigir algo à própria ICAR, como organização beneficiária de inúmeras "ajudas de Estado", também financiadas com os meus impostos - que ela assuma a responsabilidade institucional pelos danos físicos e morais causados às vítimas pelos seus clérigos, prevalecendo-se dessa qualidade, e que colabore lealmente na investigação e julgamento dos casos reportados pela comissão independente, em vez de tentar "lavar as mãos" do processo, como tem ensaiado fazer até agora.

Seria intolerável juntar a irresponsabilidade ao continuado encobrimento.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Aplauso (28): Levar a sério a independência dos juízes

Defendo desde sempre que os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência dos juízes não consentem que os juízes desempenham cargos políticos ou equiparados. 

Por isso, embora menos drástica, considero ser de apoiar esta proposta do CSM, no sentido de só admitir essa "migração política" dos juízes mediante uma licença sem vencimento e um período de "nojo" de três anos antes de retomar funções judiciais.

Quando a Constituição se aproxima do meio século de vida, é tempo de levar a sério a independência política dos juízes, pondo fim a esse reiterado desvio constitucional, em que irresponsavelmente governos e juízes têm incorrido.

Adenda
Só me parece que a proposta deveria igualmente proibir a nomeação de titulares de cargos políticos para funções judiciais, como sucedeu há anos quando a ministra da justiça de então, que era magistrada do MP, foi nomeada e tomou posse como juíza do STJ!


domingo, 5 de março de 2023

Não com os meus impostos (11): A habitação para todos a cargo do Estado?

1. A ministra da Habitação - que já como secretária de Estado se fizera notar, ao afirmar que o Estado devia garantir a todos o direito a habitar nas zonas mais ricas -, veio agora dizer que a habitação é um «direito de todos, cuja responsabilidade deve ser assumida pelo Estado» e que a política da habitação em curso «deve ficar no País (...) como o SNS ou a escola pública».

Trata-se, porém, de uma comparação despropositada, pois, enquanto o SNS e a escola pública (ambos previstos na Constituição com meios de assegurar os correspondentes direitos sociais) são serviços públicos prestacionais universais e gratuitos, a Constituição não prevê obviamente nenhum "serviço nacional de habitação", e a obrigação pública de garantir o direito à habitação é necessariamente supletiva, em relação a quem não consiga arranjar habitação decente pelos próprios meios. 
Trata-se, portanto, de misturar alhos com bugalhos, comparando arbitrariamente coisas não comparáveis.

2. A comparação é tanto mais infeliz, quanto é certo que tanto o SNS como a escola pública, além do seu crescente custo orçamental, encontram-se em processo de acentuada perda de cobertura social, mercê da fuga para o setor privado, o que já se não limita às camadas sociais de mais elevado rendimento, correndo ambos o risco de se virem a tornar, a prazo, reserva de quem não dispõe de meios de acesso à saúde e à escola privadas.

A pergunta que precisa de resposta é a de saber como é que vai ser financiada a pesada fatura orçamental permanente de uma política de habitação não estritamente supletiva. Aumentar a despesa pública estrutural não é seguramente uma boa ideia, quando se acabar o maná do PRR e quando a entrada dos países do leste (incluindo a Ucrânia) na UE fizer "secar" os próprios fundos de coesão para Portugal.

quinta-feira, 2 de março de 2023

SNS em questão (24): Os erros custam caro

1. O estudo em que se baseia esta notícia do Jornal de Notícias de ontem mostra como a redução do horário de trabalho na função pública das 40 para as 35 horas custou vários milhões de horas de trabalho por ano ao SNS e como as numerosas contratações posteriores mal deram para tapar esse enorme rombo. 

Nada que não tivesse podido ser antecipado na altura, bastando fazer contas elementares. Mas o facilitismo político e o peso da "constituency" eleitoral da função pública levaram a melhor.

2. Sabemos agora o impacto negativo dessa desafortunada decisão sobre o SNS. Não é dificil estimar também o seu elevado custo orçamental continuado em mais despesa pública.

Parece evidente que, em vez de gastar muitos milhões de euros a mais para compensar a perda de horário de trabalho, pagando mais pelo mesmo serviço, mais valera tê-los investido na subida da remuneração dos profissionais e na melhoria dos serviços, atenuando a baixa atratividade do SNS.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Corporativismo (41): A Intersindical das Ordens

1. Como AQUI se defendeu, o Tribunal Constitucional rejeitou as acusações de inconstitucionalidade contra a nova lei-quadro das ordens profissionais. É de saudar esta decisão, que vai permitir pôr alguma ordem na deriva corporativista e no crescente abuso e desvio de poder das ordens profissionais.

Mas a reação das ordens, que - em vez de acatarem e respeitarem o veredicto judicial, como autoridades públicas que são - ameaçam com uma rebelião e tranformam o CNOP numa espécie de Intersindical corporativa, mostra que o Governo vai precisar de um módico de coragem política para fazer cumprir a lei, desde já quanto à revisão dos estatutos das ordens.

2. Infelizmente, nem a nova lei nem o Presidente da República questionaram a raiz de todos os problemas, que é a impossível coabitação da defesa do interesse público na regulação e disciplina das profissões com a representação e defesa de interesses de grupo. A autorregulação e a autodisciplina profissional não impõem essa fatal promiscuidade, que acaba sempre por subjugar o primeiro aos segundos. 

Vai sendo tempo de pensar em separar as duas coisas. As autoridades públicas, entre as quais as ordens se contam, só devem servir para defender o interesse público, tal como definido pelo Estado, e não para representar e defender interesses profissionais, tarefa que, numa democracia liberal, só pode relevar da liberdade de associação e de ação coletiva privada.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Lisbon first (28): O Governo da capital

 

Benificiando de cerca de 2300 milhões de euros de fundos, o PRR é um maná para Lisboa.

Como se não bastasse ter as vantagens de alojar as instituições centrais do Estado - ministérios, tribunais centrais, institutos públicos, empresas públicas, museus, teatro nacional, ópera, etc. -, a capital beneficia também da generosidade do Estado no que respeita a despesas que, segundo normais regras de descentralização territorial, não lhe deviam caber, como o metropolitano, as ajudas aos transportes públicos urbanos, a habitação, etc. etc. Por isso, já não surpreende mais este privilégio na repartição do PRR.

Visto de longe, o Governo da República parece ser, antes de mais, o Governo da capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não dá para entender (30): Deriva corporativista

1. Depois de, ao longo destas décadas, ter sido campeão na proliferação e banalização das ordens profissionais (até há uma Ordem dos Economistas!), o PS vai mais longe, propondo de novo ressuscitar a Casa do Douro como "associação pública", ou seja, como entidade de representação profissional oficial, unicitária e obrigatória da viticultura da região demarcada do Douro, regressando a 1932, nos primórdios do corporativismo do Estado Novo, e ao arrepio do modelo de autorregulação interprofissioal vigente, com base em associações profissionais livres, aliás comum a todas as regiões demarcadas.

É evidente que, para ser congruente e respeitar o princípio da igualdade, o PS deveria propor também a recriação do antigo Grémio dos Exportadores e restaurar o modelo corporativo nas demais regiões vinícolas. Como o não faz, torna-se evidente que a recriação da Casa do Douro como organismo oficial obedece a uma motivação puramente regionalista e oportunista.

2. Aprofundando a minha posição anticorporativista, venho defendendo nos últimos anos (por exempo, AQUI e AQUI) que a representação oficial de certas profissões não é compatível com a democracia liberal, baseada na liberdade e no pluralismo de associação, na separação entre interesse público e interesses privados e na exclusiva dedicação da Administração pública à defesa do interesse público.

Mesmo não indo tão longe, creio ser consensual a ideia de que o monopólio de representação profissonal oficial só se pode justificar, caso ela seja imprescindível ou pelo menos necessária para o desempenho das tarefas públicas confiadas pelo Estado às entidades profissionais, no quadro da autorregulação e autodisciplina profissional, como se tem entendido, até agora, ser o caso das ordens profissionais.

É certo que, para tentar contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a uma anterior tentativa de  recriação da Casa do Douro como entidade pública associativa, a projeto do PS entrega-lhe agora o desempenho de algumas tarefas públicas, como o registo oficial dos viticultores e o respetivo cadastro predial, expropriadas ao Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro (IVDP), mas não se vê em que é a execução de tais tarefas puramente burocráticas exige a representação oficial, unicitária e obrigatória dos viticultores do Douro. Não existe nenhuma correlação orgânica entre as duas coisas.

A suposta causa não justifica a consequência.

3. Independentemente da questão constitucional, não vejo como é que politicamente esta deriva corporativista do PS pode ser compatível com as suas próprias fontes doutrinárias como partido social-democrata, designadamente o liberalismo, o republicanismo, a democracia e os direitos sociais. 

Nenhuma dessas fontes legitima a opção corporativista e várias delas a contrariam. Numa democracia liberal e republicana, a representação profissional releva da liberdade de associação e o Estado cuida exclusivamente do interesse público e não de interesses de grupo, por mais politicamente relevantes que estes sejam.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Não concordo (42): O Estado senhorio

1. Um aspeto negativo no pacote governamental de medidas para a habitação, que não tem merecido a devida atenção, consiste em fazer impender sobre o Estado central - e não sobre os municípios, como deveria ser -, as dimensões "prestacionais" do direito à habitação, incluindo a disponibilização de terrenos para construção, a oferta pública de casas para arrendamento, ou a tomada de arrendamento de casas privadas para subarrendamento. 

Com tais medidas, além de regulador do setor e da utilização de instrumentos fiscais e financeiros, o Estado torna-se também um grande senhorio nacional, arrendando, reparando casas, exigindo a cobrança de rendas, entrando em litígios judiciais, etc., etc.

Trata-se de uma visão hipercentralista e governamentalista, que contraria a solução municipalista que é adotada em geral noutros países.

2. Sucede, porém, que a Constituição não se limita a consagrar o princípio da descentralização territorial do poder público, mas também o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado só deve assumir as tarefas públicas que não possam ser bem desempenhadas pelas coletividades infraestaduais, designadamnte os municípios.

Ora, não existe nenhuma razão para pensar - aliás, tendo em conta os exemplos alheios - que os municípios, se dotados dos meios financeiros apropriados, não estariam em melhores condições, desde logo, a proximidade, para inventariar e responder às carências habitacionais nos seus munícipes.

Aparentemente, o Governo quis tirar rápido partido da "cornucópia" do PRR para fazer um "brilharete político", cooptando essa tarefa em susbtituição dos municípios. Além do princípio constitucional da subsidiariedade, escandalosamente ignorado, a outra vítima é a consistência do discurso do Governo e do PS em prol da descentralização

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (53): A guerra também é nossa

Nesta entrevista de hoje ao Público sobre a Guerra da Ucrânia, em que se mostrou inteiramente alinhado com o discurso bélico ocidental, o Primeiro-Ministro subscreveu também a posição de que só Kiev «tem legitimidade para definir qual é o momento e quais são os termos e as condições para negociar a paz», pelo que os aliados devem abster-se de interferir nesse processo.

Permito-me discordar desssa posição. Um ano depois de iniciado, o conflito é, cada vez mais, uma guerra também dos Estados Unidos e, especialmente, da UE: no fornecimento de armas e no treino da sua utilização, no acolhimento dos refugiados, no financiamento maciço do orçamento e da economia da Ucrânia, sem falar no custo astronómico da sua reconstrução pós-bélica. Quanto mais a guerra se prolonga, mais esses custos se elevam, à custa dos orçamentos e dos contribuintes europeus.

Ora, se a guerra também é nossa, porque a pagamos, não podemos deixar de ter uma palavra sobre o momento e as condições para lhe tentar pôr termo.

Adenda
Um leitor entende que a Europa está "tramada", porque o Presidente dos EUA «vai querer prolongar a guerra até às eleições presidenciais do próximo ano», utilizando-a como trunfo eleitoral; desta vez na guerra de Washington contra o velho inimigo do século passado, «não há soldados americanos a morrer» e os Estados Unidos até estão a ganhar economicamente com ela. Penso que tem razão.

Não concordo (41): O caso do arrendamento compulsivo

1. Independentemente da questão da sua desconformidade constitucional (sobre que me pronuncio abaixo), considero um erro político a proposta de arrendamento compulsivo das habitações "devolutas" ao Estado no novo "pacote" de políticas de habitação.

Por um lado, os custos da sua implementação - dificuldades práticas de aplicação e, previsivelmente, um elevado contencioso entre proprietários e Estado - podem vir a superar as suas discutíveis vantagens. Por outro lado, sendo a falta de confiança no Estado por parte de investidores e proprietários um dos principais fatores do défice de construção e de oferta no mercado de arrendamento, uma medida tão intrusiva e tão "ideológica" como esta só pode agravar essa desconfiança. Desde há muito se sabe que a insegurança e a imprevisibilidade quanto aos direitos de propriedade são fatais para o investimento.

Um provável tiro pela culatra, portanto.

2. Quanto à questão constitucional, não concordo nem com quem entende que se trata de uma «medida equiparada à expropriação» (e, logo, inconstitucional à partida, por falta de previsão na CRP), nem com quem defende, inversamente, que não há nenhum problema, em virtude da «função social da propriedade».

Não tenha dúvidas de que, embora o direito à habitação (tal como os demais direitos sociais) seja exigível apenas ao Estado (em sentido amplo) e não aos proprietários privados, a sua realização por aquele pode, porém, justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias de terceiros, como é o direito de propriedade e a liberdade contratual. Ponto é que se preencham os requisitos cosntitucionais da necessidade e da proporcionalidade das restrições em causa.

Ora, o que pode justamente questionar-se é saber se o mesmo objetivo - ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento - não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento.

Tendo a pensar que sim.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Economia social de mercado (5): Cogestão, porque não?

1. Estive hoje no lançamento deste livro em Coimbra por duas boas razões: porque prezo muito o autor e porque o tema me interessa, académica e politicamente.

Trata-se de uma abordagem acessível de um tema pouco debatido entre nós, a saber, a representação dos vários stakeholders, e não somente dos stockholders (acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades. A questão tem a ver sobretudo com a participação de representantes dos trabalhadores da empresa, como sucede há muitas décadas na Alemanha ("cogestão"), solução que entretanto se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos.

Em Portugal, porém, apesar de a própria Constituição impor a participação dos trabalhadores no governo das empresas públicas - o que, aliás, não é, em geral, cumprido -, o tema não tem entrado na agenda política nem sindical.

2. Desde há muito que defendo a participação dos trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão (por exemplo, AQUI, AQUI, AQUI e AQUI), considerando que essa solução faz todo o sentido no âmbito de uma "economia social de mercado", onde as empresas não podem limitar-se a "criar valor" para os acionistas. 
Tenho de constatar, porém, que o partido político que deveria lutar por essa reforma, que é o PS, não tem pegado nessa bandeira da social-democracia europeia - sendo essa uma das falhas que apontei no programa eleitoral do PS de 2022 -, e nem sequer a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos pelo partido ou a submeter à consideração do Conselho Económico e Social.
O facto é que não vejo explicação para tal opção política!

Adenda
Verifico que no seu projeto de revisão constitucional o PS propõe o alargamento do direito à representação dos trabalhadores aos órgãos sociais das empresas privadas, nos termos a definir por lei, embora sem adiantar nenhuma explicação para esta pequena revolução político-doutrinária. Resta saber se esta importante inovação vai merecer o investimento político necessário para recolher o apoio do PSD.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Este país não tem emenda (34): Puro egoismo proprietário

Não deixa de ser estranha a convocação de um referendo sobre o alargamento do estacionamento pago - apesar de a Constituiação, por razões óbvias, proibir os referendos sobre matéria tributária (em que se incluem as taxas) -, quando era evidente que a rejeição venceria por larga margem, como se verificou.

Em Portugal, a generalidade das pessoas continua a entender que não tem de incluir os custos de estacionamento no custo do automóvel, por achar que tem direito a estacionamento gratuito. Ora, (i) não existe nenhum direito privado a ocupar livremente o espaço público e (ii) e enquanto houver estacimento gratuito, as cidades vão continuar a ser invadidas por automóveis, tornando a vida urbana num inferno.

O referendo de Benfica é uma manifestação de puro egoismo proprietário e de completa insensibilidade perante a degradação da qualidade de vida urbana.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Não concordo (40): Confessionalismo escondido com o gato de fora

1. É fácil vencer um argumento contra um adversário inventado, como neste texto sobre a polémica do "palco-altar" da JMJ projetado pela CML.

Com efeito, que eu saiba, nenhum constitucionalista acusou de inconstitucionalidade «emprego de dinheiros públicos na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa», porque isso seria tonto. Mas uma coisa é Estado "cooperar" na realização da JMJ - como, aliás, apoia outras iniciativas sociais e culturais da Igreja Católica -, outra coisa é, como assinalei aqui, substituir-se à Igreja Católica (ou a qualquer outra) na planificação e construção de equipamentos especificamente religiosos (neste caso um altar, com cruz e tudo, e uma capela), o que só pode ser exclusivo delas.

2. Se, em nome de um oximoro conceptual, como "laicismo cooperativo" (e já agora, seletivo), se considerasse admissível tal transferência de responsabilidades religiosas para Estado, então teríamos de admitir, aliás ao abrigo do princípio da igualdade e não discriminação, que ele assumisse iguais incumbências em relação a outras religiões, dedicando-se, por exemplo, à planificação, financiamento e execução de sinagogas, mesquitas, templos evangélicos, etc.

Por mais flexibilidade que possa ser dado ao princípio da separação entre Estado e as igrejas (sem exceção), dela deve estar, porém, excluída a possibilidade de ele comportar o desempenho pelo primeiro de tarefas especificamente religiosas das segundas. Separação quer dizer, pelo menos, a cada lado a sua própria jurisdição, sem invadir a do outro (mesmo que este agradeça...).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Praça Schuman (14): Democracia e governo da UE

No sábado que vem, dia 11 de fevereiro, vou participar neste programa de pós-graduação sobre direito da UE, com uma palestra sobre a democracia e o sistema de governo da União.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (52): Uma receita para o desastre

1. A notícia de que o Chega exige que o Governo declare a Rússia como Estado terrorista permite sublinhar que há um óbvio plano em marcha para envolver diretamente a UE na Guerra da Ucrânia

Na verdade, impulsionado por Kiev e pelos "falcões da guerra" dentro da UE (Polónia, países bálticos e escandinavos), está em curso avançado um processo tendente a: (i) fazer entrar a Ucrânia rapidamente na UE, mesmo estando em guerra (o que é insano), e deixando para trás os países balcânicos, que há muito esperam a adesão, e a (ii) levar as instituições da União e todos os Estados-membros a qualificar a Rússia, não apenas como agressor, mas também como "Estado terrorista".

2. Que importância é que tem essa qualificação? Decisiva. 

Se conseguirem os seus objetivos, a primeira coisa que a Ucrânia faria como membro da União seria ativar a "cláusula de solidariedade", estabelecida no art. 222º do TFUE, segundo o qual, «em caso de ataque terrorista» contra um Estado-membro, «a União mobiliza todos os meios ao seu dispor, incluindo meios militares disponibilizados pelos Estados-membros».

Ou seja, um guerra direta entre a UE e a Rússia, preto no branco, que rapidamente poderia degenerar em III Guerra Mundial, com o possível arrastamento dos EUA e da China.

3. Que o "partido da guerra", com a conivência dos partidos da direita europeia, não recua perante essa ominosa perspetiva, assusta. Mas que a esquerda europeia em geral e os socialistas em especial possam ser cúmplices, isso ultrapassa o entendimento.

Felizmente, não parece que em Portugal nem o Governo nem o PS tenham ensandecido.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (18): O legado do jornal Público

Ao censurar severamente, com toda a razão, um lamentável artigo do Público sobre a questão da construção da altar da Jornada Mundial da Juventude pelo município de Lisboa - que eu tinha já assinalado AQUI, apontado a violação da separação constitucional entre o Estado e as igrejas -, o Provedor do Leitor veio resgatar o legado de jornalismo crítico e respeitador do pluralismo de opinião do diário fundado por Vicente Jorge Silva. 

Ainda bem: aquela peça de jornalismo acrítico e subserviente não podia ficar impune.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

+ Europa (71): UE atrasa-se

1. Como mostra o quadro acima, sobre as previsões económicas do FMI para 2023, mais uma vez a União Europeia, embora contrariando as piores previsões anteriores, vai crescer bem menos do que os seus competidores na frente do grupo das maiores economias, atrasando-se de novo em relação aos Estados Unidos e à China.

Obviamente, a guerra da Ucrânia tem um papel nisto, dado o seu forte impacto negativo na economia europeia (energia mais cara, perda do mercado russo) e o seu impacto positivo tanto nos Estados Unidos (indústria de armamento, exportações de energia) e na China (energia russa mais barata e aumento das exportações para o mercado russo).

O problema é que essa assimetria não se afigura ser passageira...

2. Curiosamente, a economia russa também vai voltar a crescer, contornando as pesadas sanções ocidentais e desmentindo os apressados prognósticos iniciais da Comissão Europeia, de rápida derrota de Moscovo na guerra, por efeito do desmoronamento da sua economia.

A UE não somente não conseguiu os seu objetivos, mas também está a pagar um preço elevado no campeonato global do crescimento económico.

Adenda
Um leitor nota que destas grande economias, só o Reino Unido tem uma previsão de queda, e pergunta porquê. Muito provavelmente, por causa do Brexit.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Bloquices (23): A "falsa" democracia política

1. Um dos primitivos argumentos do pensamento antidemocrático era o de que a democracia política, baseada nas eleições, dá o mesmo peso a todos, a elite e a plebe, os letrados e os analfabetos, os ricos e os pobres que nada têm perder, os cidadãos empenhados e os desinteressados, e assim por diante. O governo da maioria prevalecia sobre o "governo dos melhores".

Desde há muito tempo, também a extrema-esquerda - em geral eleitoralmente pouco expressiva, mas boa a explorar os descontentamentos sociais - argumenta que uma coisa são as maiorias eleitorais, que governam, e outra, as alegadas "maiorias sociais", ou seja, a coligação de organizações e movimentos que comandam as reivindicações sociais, e que são tudo menos maioritárias, política ou sociologicamente. 

2. Sem surpresa, tal é a lógica visceralmente antidemocrática deste discurso da líder do BE, tentando fazer esquecer a enorme derrota que sofreu nas últimas eleições.  

O antigo argumento antidemocrático - a elite contra a maioria da plebe - só mudou de sinal. Agora são as minorias nas ruas que devem prevalecer sobre a maioria das urnas.

Era o que faltava (7): Oportunismo político

Embora sem defender a recuperação integral do tempo de serviço dos professores durante o período de intervenção financeira externa para efeitos progressão na carreira (como tontamente defendeu Rui Rio), o atual líder do PSD diz que tem dúvidas sobre as "quotas de avaliação" em vigor

Mas trata-se de um "namoro" puramente oportunista aos sindicatos em greve, pois Montenegro sabe bem que nenhum Governo responsável as pode dispensar numa carreira plana e com uma ficção de avaliação, como é a dos professores, como pequeno travão à promoção por simples antiguidade até ao último escalão, com encargos orçamentais incomportáveis em remunerações e pensões.

O apoio oportunista de um candidato a primeiro-ministro a lutas sindicais que põem em causa a sustentabilidade das finanças públicas é puramente lamentável.