terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (12): Ideias perigosas

1. É muito provável que o verdadeiro manifesto de candidatura que Gouveia e Melo (GM) publicou no Expresso do fim de semana passada venha confirmar, se não reforçar, a sua liderança nas sondagens sobre intenções de voto nas eleições presidenciais de janeiro do próximo ano. 

A receita não poderia ser mais bem concebida: (i) exploração da nota das virtudes pessoais de "liderança" e "capacidade de decisão", subliminarmente associadas à condição militar; (ii) reiterada afirmação das vantagens de um Presidente sem fidelidade partidária, e por isso à margem de "compadrios ou intrigas político-partidárias"; (iii) afastamento das dúvidas sobre a sua colocação no expectro político, colocando-se no seu centro geométrico, entre o PS e o PSD; (iv) compromisso expresso com a democracia liberal e a economia de mercado, respeitando o acquis quase consensual deste meio século de regime democrático; (v) last but not the least, a promessa de submeter a "referendo" dos eleitores, mediante a antecipação das eleições parlamentares, a destituição dos governos que, no entender do Presidente, traiam as suas promessas eleitorais ou deixem de contar com o apoio da opinião pública. A única falha digna de registo é a estranha ausência de qualquer referência à integração nacional na União Europeia.

Em suma, a começar pelo feliz título da peça ("Honrar a democracia"), há nela pouco para afastar e muito para atrair a generalidade dos eleitores, salvo a extrema-direita e a extrema-esquerda

2. Mas uma análise mais funda sobre o entendimento de GM acerca dos poderes presidenciais, em especial o de dissolução parlamentar, suscita sérias preocupações. 

Constitucionalmente, salvo dois curtos períodos de "defeso" - após a eleição parlamentar e antes da eleição presidencial -, a dissolução parlamentar surge, à primeira vista, como um poder discricionário do Presidente, sem condições especiais, só dependente de adequada fundamentação. Todavia, por um lado, traduzindo-se a dissolução na interrupção da legislatura e do mandato quadrienal conferido pelos eleitores, ela constitui uma derrogação da separação de poderes e da autonomia do parlamento, pelo que só deve ocorrer em caso de necessidade, como medida de última instância, nomeadamente para solucionar impasses ou crises políticas. Por outro lado, levando a dissolução parlamentar necessariamente à demissão do Governo em funções, ela não pode ser instrumentalizada como mecanismo de tutela política do Presidente sobre o executivo, quando a Constituição, desde a revisão de 1982, exclui manifestamente a responsablidade política do Governo perante o PR.

Ora, no texto de GM é evidente o propósito de usar a dissolução parlamentar em função do juízo de Belém sobre o mau desempenho do Governo, tornando em regra geral o que até agora só tinha ocorrido no caso excecional da dissolução de 2004 (Jorge Sampaio).

3. O texto merece ser reproduzido aqui, para não haver dúvidas: 

«Este poder [de dissolução] só deve ser exercido quando existir a forte convicção que o contrato entre governados e governantes [estabelecido nas eleições parlamentares] foi significativamente comprometido: por uma perda de confiança insanável do povo no Parlamento e/ou no Governo em funções; por um desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo (...).»

Nesta passagem nuclear do seu texto, GM adota uma visão essencialmente errada dos mandatos políticos numa democracia representativa, em que (i) os governos não são diretamente eleitos, em que (ii)  nem os partidos nem os deputados têm um mandato vinculativo, em que, portanto, (iii) não existe nenhum "contrato governativo" entre governantes e governados, em que (iv) os governos têm direito a ser julgados no final do seu mandato, e não num momento menos favorável do seu percurso, e em que, (v) consequentemente, não há lugar para a figura do recall, ou seja, submeter a votação popular a destituição antecipada do mandato de um cargo político.

Acresce que a maior parte dos governos são minoritários ou de coligação, pelo que os partidos de governo se veem impedidos à partida de realizar os seus programas eleitorais, seja por falta de apoio parlamentar, seja pelos compromissos inerentes às coligações de governo. Neste quadro, faz muito pouco sentido falar em incumprimento de um suposto "contrato governativo". E se houvesse, a Constituição não confere ao PR o poder de sancionar o governo e a mairia parlamentar pelo alegado incumprimento, que cabe à oposição no parlamento durante o mandato e aos eleitores no final dele. 

Ao contrário, quem não responde pelos abusos de poder no seu mandato - que, aliás, não pode ser encurtado -, é o próprio Presidente da República, pelo que o mais prudente é não facilitar numa definição expansiva do âmbito desses poderes.

4. O autor utiliza a controversa noção de "semipresidencialismo" para qualificar o sistema de governo vigente, o que pode explicar a sua conceção intervencionista do papel do PR. 

É certo que, sendo, a meu ver, errada a qualificação semipresidencialista do nosso sistema de governo, desde a revisão de 1982 (como mostrei AQUI), há, porém, muita gente, incluindo muitos comentadores e politólogos, que a usam acriticamente sem nenhuma substância própria, para designar indiferenciadamente os países que conjugam o sistema de governo parlamentar com um PR diretamente eleito, onde, portanto, também caberia Portugal. No entanto, no caso de GM, não sobram dúvidas de que a noção está usada em sentido próprio, ou seja, para designar uma fórmula de governo em que o Presidente também compartilha do poder executivo e em que o Governo não responde politicamente somente perante o parlamento, mas também perante aquele, pelo menos através da tutela presidencial sobre o desempenho do Governo para efeitos de dissolução parlamentar, como se viu.

Mas, como é evidente, instalar a ameaça de dissolução parlamentar, a qualquer momento, por alegado incumprimento do "contrato de governo" ou de invocada perda de confiança do eleitorado no Governo seria uma receita para a desconfiança permanente nas relações entre Presidente e o PM e para a insegurança e a instabilidade política, que é justamente o contrário do que se espera do "poder moderador" do PR no nosso sistema de governo, tal como está desenhado na Constituição.

Adenda
Um leitor, que diz não ter filiação partidária e já ter votado em vários partidos, considera inaceitável considerar, como insinua Gouveia e Melo, que os quatro PR anteriores (Soares, Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo R. S. ), todos tendo sido líderes dos respetivos partidos, exerceram o seu mandato "ao serviço dos partidos". Concordo: a independência e a isenção política que é inerente a vários cargos públicos, e não somente ao PR (como os juizes do TC, ou o Provedor de Justiça, ou o PGR), não pressupõe a virgindade partidária, mas somente a suspensão da sua vinculação partidária.

Adenda 2
Tem razão o leitor que observa que, «se o critério de rejeição dos governos pela opinião pública para dissolver o parlamento se aplicasse na Grã-Bretanha, a Câmara dos Comuns devia ser dissolvida já, dadas a elevadíssima taxa de desaprovação do Governo trabalhista eleito há poucos meses, com grande maioria parlamentar». Com efeito, nesta sondagem do início de janeiro, a taxa de aprovação do Governo é de 25% e a de desaprovação é de 66%, ou seja 2/3. Mas, a não ser que se demita antes, o Governo só vai ser julgado eleitoralmente no final do mandato para que foi eleito - e é assim que deve ser.

Adenda 3
Um leitor objeta que GM «não seria o 1º Presidente a inventar pretextos para dissolver a AR». Tem razão: o atual PR também inventou dois novos motivos em relação à prática anterior: primeiro, o chumbo do orçamento (2021) e depois, a autodemissão do PM por causa de uma suposta investigação criminal (2023). O que eu defendo é que, para usar a "bomba atómica" presidencial contra a AR e o Governo em funções, toda a inovação é perniciosa.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Alma mater (5): "Regressar a casa"


Quando, no final das minhas várias "comissões de serviço" na atividade política e afim, me perguntavam: «o que vais fazer agora?», a minha resposta era sempre a mesma: «regresso a casa!»
A porta dessa minha "casa" de regresso, sempre acolhedora, como se tivesse saído na véspera, é a que está na imagem desse cartaz de um filme sobre a FDUC. Mesmo jubilado, continua ser a minha casa de referência, académica e profissional, onde me apraz regressar sempre que se proporciona. 

Outras causas (12): Um curso de direitos humanos diferente

1. Desde a II Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (DUDH), de 1948, as liberdades e os direitos pessoais deixaram de ser protegidos somente pelas constituições e leis nacionais, como até aí (com as terríveis exceções dos Estados autoritários), passando a gozar também do seu reconhecimento em numerosas convenções internacionais, tanto de nível regional (caso do Conselho da Europa) como global (ao nível das Nações Unidas), através das quais os Estados se vinculam reciprocamente perante outros, e perante aquelas orgnizações internacionais, a garantir tais direitos no seu território em relação aos seus residentes.

Além dos meios políticos internacionais e do escrutínio das ONG a isso dedicadas, essa proteção transnacional dos direitos humanos passa, em certos casos, por tribunais internacionais especializados (como o TEDH) ou por "comités de peritos" independentes, que muitas daquelas convenções preveem.

2. Ora, segundo a nossa Constituição, as convenções internacionais de direitos humanos - e Portugal ratificou todas - valem diretamente na ordem jurídica interna, pelo que podem ser invocadas perante os tribunais nacionais por quem se considere lesado, e devem ser aplicadas pelos tribunais, até porque: (i) elas prevalecem sobre a legislação nacional que eventualmente as desrespeite e (ii) Portugal pode vir a ser condenado nas referidas instâncias jurisdicionais ou parajurisdicionais internacionais, se os nossos tribunais não as fizerem valer devidamente.

Ou seja, os tribunais nacionais são hoje os primeiros garantes do direito internacional dos direitos humanos e podem fazer desencader a responsabilidade internacional do País. Por isso, é muito importante o conhecimento dessas convenções, incluindo a jurisprudência dos respetivos tribunais internacionais (TEDH, TPI) e dos referidos "comités de peritos", quando à sua interpretação e aplicação. Daí a importância de um curso como este, de propósitos práticos, especialmente direcionado para os juízes e demais operadores judiciários.

O que outros pensam (9): A questão da "democracia iliberal"

1. Não acompanho esta tese de J. Pacheco Pereira, nesta coluna no Público, segundo a qual a noção de "democracia iliberal" não faz sentido, porque, no seu entender, as democracias, ou são liberais ou não são democracias.

Ora, desde há muito que a filosofia e a teoria políticas usam dois critérios diferentes para a classificação dos regimes políticos: (i) o critério de titularidade do poder, distinguindo entre democracia e autocracia e (ii) o critério dos limites do poder, levando à distinção entre liberalismo e autoritarismo

Os primeiros pensadores liberais modernos, como Locke, não eram democratas, pelo contrário, por entenderem que a democracia envolvia o risco de uma "ditadura da maioria", com inerente ameaça para as liberdades individuais. Inversamente, o pai da doutrina democrática moderna, Rousseau, não era liberal, por entender que a "vontade geral" da coletividade deveria prevalecer sobre os interesses individuais.

Embora, na prática, as associações mais prováveis sejam entre democracia e liberalismo e entre autocracia e autoritarismo, a história mostra exemplos de democracias não liberais (como era o caso da democracia clássica de Atenas, onde não havia limites ao poder) e de autocracias liberais (como foi o caso das monarquias constitucionais dualistas do séc. XIX, que não eram nada democráticas, mas eram assaz liberais).

2. A noção de "democracia liberal" é uma síntese entre democracia e liberalismo, mas não uma simples adição de ambas. Na verdade, a democracia liberal é uma democracia limitada pelo liberalismo e um liberalismo limitado pela democracia

Com efeito, na democracia liberal, o poder do povo, expresso por eleições, não é absoluto, sendo constitucionalmente limitado pelas liberdades individuais, pela separação de poderes e pelo Estado de direito (princípio da legalidade, judicial review, etc.). E, por sua vez, o liberalismo pode ser limitado para assegurar a democracia, como é o caso da proibição de associações armadas, ou de ideologia fascista ou racistas, ou da proibição do discurso do ódio racial ou contra minorias.

Como sabemos, as mais antigas democracias liberais (Estados Unidos, Reino Unido, países da Europa ocidental) começaram por ser liberais muito antes de se tornarem democracias, não sem passarem alguns delas por dramáticas experiências de monocracias ditatoriais (como a Alemanha nazi ou a Itália fascista, ou os dois países ibéricos entre os anos 30 e 70 do século passado).

3. Acresce que a oposição entre democracia e autocracia e a contraposição entre liberalismo e autoritarismo não são dicotomias ou/ou, mas sim escalas gradativas entre dois "tipos ideais" (no sentido de Max Weber). Entre as democracias plenas (se é que existem...) e as autocracias absolutas, há democracias imperfeitas, semidemocracias, semiautocracias; entre os regimes liberais e os autoritários há outros mais ou menos liberais ou autoritários, desde o extremo do ideal anarquista ao do oligarquia despótica.

Existem várias instituições académicas e políticas que classificam regularmente os regimes políticos e que não se limitam à dicotomia democracia-autocracia, apostando sempre em "grelhas" de quatro ou mais posições. E nem sempre são convergentes. Por exemplo, numa delas, Portugal figura como "democracia liberal com falhas", enquanto noutras consta como democracia liberal plena.

4. Em conclusão, a noção "democracia iliberal" ou mesmo de "democracia autoritária" pode fazer todo o sentido, para designar aqueles regimes em que a dimensão democrática existe, nomeadamente a democracia eleitoral, mas em que a dimensão liberal é substancialmente subvertida pelo défice de limites ao poder político.

Tal como na Antiga Grécia, também hoje o voto popular pode favorecer, em certas circunstâncias, regimes políticos mais ou menos autoritários, dispostos a limitar liberdades individuais (incluindo a liberdade de expressão), a separação de poderes (a favor do poder executivo), a independência dos tribunais e os poderes de controlo judicial.

Lamentavelmente, nos Estados Unidos, o Presidente Trumnp e a maioria republicana no Congresso, enquanto promovem uma agenda anarcoliberal no campo da política económica, desmantelando o "Estado regulador" (como mostrei AQUI), parecem apostados, ao invés, em implantar um regime político com claros traços autoritários, tanto pela eliminação de checks ao poder executivo e ao poder federal em geral, como pela restrição das liberdades dos cidadãos e da sociedade civil.

Eis a maior supresa dos tempos que correm - ver a mais antiga democracia liberal do mundo em vias de se converter em democracia iliberal.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Unten den Linden (3): Do mal, o menos

1. Insólitos tempos políticos estes, em que uma pessoa de esquerda social-democrata, como eu, tem de saudar a vitória da direita conservadora da CDU/CSU nas eleições alemãs de hoje, apesar do miserável resultado do SPD (~ 17%), só porque se trata de uma vitória da direita democrática e não da extrema-direita populista, como sucedeu recentemente nos vizinhos Países Baixos e na Áustria, e pode vir a suceder em breve na França.

Mas, além da enorme derrota do SPD, não deixa de ser preocupante o crescimento das forças políticas radicais, antieuropeístas, tanto à direita (AfD, > 20%, duplicação do resultado das eleições anteriores) como à esquerda (Linke+BSW, ~14%, quase o triplo). Ou seja, 1 em cada 3 alemães votou em partidos hostis à democracia liberal e à UE.

2. Mesmo não sendo fácil a equação governativa que daqui resulta - pois, desta vez, somente uma complexa aliança CDU/CSU+PSD+Verdes garante uma maioria parlamentar, não bastando a já experimentada "grande coligação" entre os dois primeiros -, ainda é possível uma solução de compromisso governamental entre partidos europeístas no quadro da democracia liberal, e bastante menos à direita do que o programa eleitoral do novo Chanceler. 

Do mal, o menos!

Adenda
Outro facto inquietante é a persistente clivagem eleitoral entre as duas antigas Alemanhas, passadas mais de três décadas sobre a reunificação, com vitória da CDU em quase toda a antiga RFA e vitória da AfD em quase toda a antiga RDA, como mostra a figura junta

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Stars & Stripes (19): O fim de uma grande invenção americana?

1. Em mais uma das suas "executive orders" ilegais, por contrárias a leis do Congresso, o Presidente Trump determinou a sujeição ao seu controlo das "agências reguladoras independentes", as quais, portanto vão deixar de o ser, passando a "agências executivas".

Nascidas nos Estados Unidos há quase um século, nos anos 30 do século passado (na imagem o selo da SEC, criada em 1934), elas constituíram a  resposta à crise subsequente ao grande crash da bolsa de Nova York, de 1929, que revelou a falta da regulação pública das "falhas de mercado", desde logo no mercado de valores mobiliários (ações e obrigações) e na banca. Posteriormente, foram criadas agências reguladoras para outras atividades económicas, como as telecomunicações, as relações laborais, a energia, os seguros, a segurança dos produtos de consumo, a defesa da concorrência, entre outras.

A invenção das agências reguladoras independentes nos Estados Unidos inaugurou o moderno modelo de "Estado regulador", pondo fim ao "Estado abstencionista", de separação absoluta entre a economia e o Estado.

2. As razões para apostar na regulação independente dos mercados, afastando essa tarefa da esfera da administração executiva, sob controlo presidencial, foram essencialmente duas: (i) não sendo possível evitar a regulação públicamanter ao menos a separação entre a regulação económica, por um lado, e o governo e a política, por outro lado; e (ii) assegurar aos agentes económicos estabilidade e previsibilidade da atividade regulatória, visto que a independência das agências lhes garantia continuidade em caso de mudança de governo.

Apesar de não terem cobertura na Constituição e constituírem uma derrogação da unidade da administração federal sob direção do Presidente, as agências de regulação independentes foram  validadas pelo Supremo Tribunal federal logo em 1936 e nunca foram postas em causa desde então, nem pelos Democratas, que as criaram, nem pelos Republicanos.

Resta saber se esta ofensiva de Trump, manifestamente ilegal, vai prevalecer no Congresso (onde há uma maioria Republicana em ambas as câmaras), ou se aquele não vai tentar fazer reverter o "precedente judicial" de 1936 no Supremo Tribunal (onde há uma confortável maioria republicana), declarando as agências reguladoras independentes como inconstitucionais. Aí, sim, estaria cosumada a contrarrevolução regulatória de Trump, que é parte da ofensiva "anarco-liberal" dos seus ideólogos contra o "Estado administrativo".

3. Essa reversão da regulação independente na sua pátria de origem é tanto mais surpreendente quanto é certo que as agências reguladoras independentes foram um dos principais artigos de exportação norte-americana no último meio século, após o esgotamento do modelo de "Estado intervencionista" que prevaleceu  na Europa desde a I Guerra Mundial. 

O triunfo quase universal da ecoomoia de mercado e do Estado regulador no último quartel do século passado determinou a importação do modelo das agências reguladoras independentes. Hoje em dia, serão poucos os países de economia de mercado onde não exista uma autoridade da concorrência e agências de regulação dos serviços financeiros (banca, seguros, valores mobiliários) e das utilities (energia, telecomunicações, transportes, etc.). Não deixa de constituir uma ironia o facto de os Estados Unidos se desfazerem de uma das suas mais virtuosas, e mais copiadas, invenções institucionais.

Decididamente, Trump está em processo de depredação do património institucional e cultural dos Estados Unidos. Esperemos que os governos trumpistas que vão aparecendo noutros países não lhe sigam as pisadas...

Adenda (26/2)
Vale a pena ler este comentário de Cass S. Sunstein, um insigne constitucionalista estadunidense - que acaba de anunciar um novo livro sobre a separação de poderes -, a contestar a teoria da "executivo unitário", em que se baseia a ofensiva de Trump contra as agências reguladoras independentes. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Lisbon first (30): O Governo de Lisboa

1. É espetacular! Poucas semanas depois de sabermos que a terceira travessia do Tejo em Lisboa não é somente ferroviária, como inicialmente se pensava, mas também rodoviária, eis que surge agora a notícia (na imagem) de um tunel rodoviário sob o rio, entre Algés e a Trafaria. Em suma, a capital ficará com quatro ligações rodoviárias e duas ligações ferroviárias para a outra margem.

Como é fácil imaginar, o custo de tais obras, mais os respetivos acessos, vão montar a muitos milhares de milhões de euros, que só muitas décadas depois as portagens cobrirão. Mas, pelos vistos, no grandioso projeto governamental de fazer de Lisboa uma megametrópole, incorporando a margem sul e o novo aeroporto, não há limites nem constrangimentos financeiros. A regra é: em benefício de Lisboa, vale tudo, que o País paga

2. No entanto, sob a perspetiva do resto do País, que padece da falta de infraestruturas elementares e de obras públicas essenciais ao seu desenvolvimento, estes megainvestimentos públicos  "cheiram" a privilégios chocantes, reforçando a macrocefalia lisboeta e discriminação territorial. 

Referindo o caso de Coimbra, por exemplo, por ser a minha cidade, basta mencionar as seguintes situações: a inacabada AE 13 (Tomar-Coimbra), que termina abruptamente na margem esquerda do Mondego, a montante da cidade, sem a prometida ligação com Souselas, a norte da cidade; a continuação da miséria rodoviária, congestionada e perigosa, que é o IP 3 entre Coimbra e Viseu, únicas capitais de distrito no litoral do país sem autoestrada; a degradação do IC2 a norte de Coimbra, por dentro de povoações e com numerosos cruzamentos de nível e rotundas; a permanência da enorme penitenciária dentro da cidade, ocupando uma área central no espaço urbano, ao contrário do que já foi feito em Lisboa.

Dá raiva pensar que estes e outros investimentos em falta por esse País fora vão continuar a esperar, para financiar as megaobras na capital e arredores. Decididamente, o suposto "Governo da República" é cada vez mais o Governo privativo de Lisboa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): Confusão de papéis

1. Procurando, comprensivelmente, preencher o longo período de tempo que vai até às eleições, em janeiro do próximo ano, o primeiro candidato a anunciar oficialmente a sua candidatura presidencial, Luís Marques Mendes, com o apoio do PSD (de que chegou a ser líder), anunciou a realização de uma iniciativa pública, para debater as suas "causas do Presidente" (iniciativa a que o Público chamou indevidamente "Estados gerais", uma noção que, desde há três décadas, pertence ao património político do PS) .

Tendo o candidato deixado o seu espaço dominical de comentário televisivo - o que é de louvar -, esta iniciativa é uma boa ideia, permitindo-lhe ocupar o espaço político e ganhar visibilidade como candidato, enquanto outros possíveis candidatos adiam o momento de "entrar em cena", designadamente o(s) candidato(s) da área socialista e o almirante Gouveia e Melo, que até agora tem os melhores índices nos inquéritos à opinião pública, apesar do (ou devido ao?) seu absoluto silêncio sobre o assunto.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Marques Mendes, em ocupar o terreno, enquanto este está vago e não há concorrentes à vista.

2. Mais problemático é o tema da iniciativa, a saber, debater as "causas da Presidência", nada menos de doze, que o anúncio da iniciativa discrimina, desde a pobreza à ambição económica, o que em tudo faz lembrar um programa eleitoral partidário de candidatura à chefia do Governo. 

Ora, no nosso sistema político-constitucional, os candidatos presidenciais não são candidatos partidários, nem candidatos a governar (ao contrário do que sucede nas eleições parlamentares), pelo que não tem nenhum cabimento apresentarem um programa de governo ou algo de parecido. Da Constituição resultam, sem margem para dúvidas, duas coisas: (i) quem governa é o Governo, saído das eleições parlamentares, e não o Presidente; (ii) o Governo é responsável politicamente perante a AR, e não perante o PR.  

Por isso, é o Governo, e não o PR, que define as políticas públicas em todas as áreas e o modo de as realizar.

3. Daí decorre que, no nosso sistema constitucional, o PR não integra o "poder executivo" da clássica separação tripartida dos poderes e de órgãos do Estado, sendo um "quarto poder", o qual, ao contrário dos poderes legislativo e executivo -  que são poderes de origem e expressão partidária -, só pode ser um "poder neutro" (B. Constant), que está acima da dialética Governo-oposição, vocacionado para «assegurar o regular funciomento das instituições democráticas» (como diz a Constituição), desde logo o respeito pelas regras do jogo por parte dos atores políticos (AR, Governo, partidos). Nessa função de tipo arbitral, não cabe ao PR defender causas políticas, em concorrência, e portanto em potencial conflito, com quem é suposto tê-las, ou seja, justamente  o Governo e as oposições.

Neste quadro, não se vê que sentido faz o lançamento, por parte de um candidato presidencial, de um debate sobre políticas públicas que ele não tem poder para implementar, sob pena de conflitos com quem tem o poder de o fazer, ou seja, o Governo.

4. Sem dúvida, no exercício do seu mandato constitucional o PR tem obrigações explícitas, que pode abraçar como "causas".

Tais são, em primeira linha, as que resultam das suas competências constitucionais - que são sempre poderes-deveres -, tal como enunciadas no art. 120º da Constituição, a saber: representar a República, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições e assumir o cargo de comandante supremo das Forças Armadas. Mas a estas tarefas devemos acrescentar o de «defender (...) e fazer cumprir a Constituição», como consta do seu juramento ao iniciar funções (art. 127º, nº 3), o que lhe permite promover, por meio dos poderes que tem, os demais valores constitucionais, desde o Estado de direito ao Estado social, desde a integração europeia à solidariedade lusófona, etc. etc. 

São essas "causas cosntitucionais" que justificam a generalidade dos poderes do PR, tanto os poderes próprios, como os poderes em relação aos outros dois órgãos políticos, a AR e o Governo, e que se traduzem em derrogações da autonomia destes, como a dissolução parlamentar, o veto legislativo, a recusa de nomeação de cargos públicos propostos pelo Governo, etc. Ora, é fácil verificar que quase nenhuma das doze propostas colocadas por Marques Mendes na agenda das suas "causas presidenciais" tem algo a ver diretamente com as referidas causas constitucionais.

5.  É certo que, embora o PR não tenha funções governantes, há uma obrigação constitucional do PM de o informar sobre a condução da atividade governativa, pelo que, mesmo sem norma expressa, há um consenso doutrinal de que ele pode aconselhar o Governo, e, na minha opinião, o Primeiro-Ministro tem mesmo o dever de o consultar sobre a condução da política externa e da política de defesa, devido às sua incumbências constitucionais de representação externa da República e de comandante supremo das Forças Armadas.

Todavia, tratando-se sempre de interferência, embora soft, no mandato governativo, essa função consultiva do PR deve ser exercida de modo discreto, nos encontros regulares com o PM, e não em público, o que configuraria uma ingerência óbvia na esfera governativa, suscetível de gerar conflitos entre os dois poderes, pondo em risco a estabilidade política e governativa. Afinal, mesmo quando tomados sob consulta do PR, a responsabilidade dos atos do Governo recai sempre exclusivamente sobre ele, até porque aquele não é politicamente responsável no exercício do seu mandato.

Por conseguinte, não se consegue vislumbrar qual é a lógica de os candidatos submeterem a debate público prévio as suas supostas "causas presidenciais" e de se vincularem publicamente a elas, para efeitos de uma atividade consultiva, que, além de não ter expressão pública, pode não ter qualquer consequência.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Gostava de ter escrito isto (37): Decência parlamentar

«[Na AR] o Chega insulta mulheres por serem mulheres. O Chega insulta pessoas com deficiência. Qual é a sua reação? O povo tem de repensar o seu voto daqui a três anos. Isto é um absurdo. E se eles continuarem a achincalhar outros deputados por mais três anos? E se começarem à pancada? Antes de ser um desrespeito pela república, isto até dá um péssimo exemplo cá para fora, para a rua, para as escolas. Como é que numa sala de aula um professor pode agora educar um bully se v. exa é incapaz de o fazer no centro do poder?» 
[Henrique Raposo, «Dr Aguiar Branco, não é o povo quem mais ordena», no Expresso.]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Direito à habitação (6): Insistir no erro

Não acompanho o líder do PS nesta reivindicação de que «o Estado tem que assumir também a sua responsabilidade de construir para a classe média»

Três razões para a minha discordância: 

- primeiro, entendo que, por razões de justiça social, a prioridade na realização do direito à habitação, antes da classe média, deve ser das pessoas de mais baixos rendimentos; 

- segundo, penso que, numa economia de mercado, é mais eficiente estimular a construção e a oferta privada, dinamizando o mercado habitacional, seja para habitação própria, seja para arrendamento, do que recorrer à oferta pública de habitação, mais morosa e financeiramente mais onerosa; 

- terceiro, julgo que, de acordo com os princípios constitucionais da descentralização e da subsidiariedade territorial, a oferta pública de habitação é uma tarefa própria dos municípios, e não do Governo central.

Decididamente, não consigo ser convencido por esta conceção estatista e centralista na realização do direito à habitação.



domingo, 16 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): O PR como "poder moderador"

«No regime político português o Presidente da República desempenha um papel que ultrapassa o do Chefe de Estado que simboliza a comunidade e unidade nacionais. O seu “poder moderador”, como cunhou Benjamin Constant, é ponto fulcral de equilíbrio no sistema. Equilíbrio entre os poderes independentes - executivo, legislativo e judicial; entre Governo e Oposição; entre os que actuam dentro das instituições e os que se sentem marginalizados, e, dentre estes, os motivados a “destruir o sistema”. (...)  
O Presidente não governa, não legisla, não julga; não funda partidos, nem lidera partes para tentar governar o todo; não “refunda”, nem destrói o “sistema”.»

1. Poderia subscrever sem reservas este excerto do texto do atual ministro da Presidência, A. Leitão Amaro, no Expresso de sexta-feira, sobre o perfil do PR no sistema político nacional, que corresponde ao que eu mesmo tenho vindo a defender há muitos anos: um "quarto poder", sobreposto aos três poderes clássicos do Estado (legislativo, executivo e judicial), que exerce um "poder moderador", no sentido que lhe deu Constant há dois séculos, nomeadamente de garantia das "regras do jogo", mas que, embora dispondo das faculdades de veto e afins que a Constituição lhe confere, não põe em causa a independência dos demais poderes nem se intromete no seu exercício, sendo, por definição, um "poder neutro" na dialética entre o governo e a oposição.

Sendo certo que nem sempre esta perceção prevalece no discurso político entre nós - a começar pelo atual titular do cargo presidencial -, apraz sempre encontrar num responsável político este entendimento correto do nosso sistema político

2. Como tenho defendido, este "poder moderador" presidencial, embora não sendo usual nos países de sistema de governo parlamentar,  não é incompatível, muito menos contraditório, com ele, pois não conflitua com nenhum dos seus dois postulados: (i) a origem e a legitimidade parlamentar do Governo e (ii) a exclusiva responsabilidade política deste perante o parlamento.

Uma vez que entre nós, como diz o autor, o PR não governa (nem cogoverna), pois tal é do foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR, não faz sentido invocar a noção de "semipresidencialismo", pois ela só se justifica no caso de um poder executivo "dualista", em que o PR compartilha de algum modo do poder governamental, tendo no mínimo um poder de tutela sobre o Governo, por efeito de responsabilidade política deste perante o aquele -, o que não sucede em Portugal desde a revisão constitucional de 1982. 

Não é por acaso que essa equívoca noção - aliás, ausente, como era de esperar, do texto acima transcrito -, esteja em processo de tendencial desuso no discurso político e no "comentariado". Não faz falta nenhuma!

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (9): Até quando?

O meu aplauso para este artigo de Pedro Marques Lopes na Visão desta semana, que, convincentemente, defende dois pontos de uma enorme gravidade: (i) que a crise da Justica se tornou no mais preocupante problema institucional do regime democrático e que os abusos de poder do Ministério Público na investigação penal constituem o epicentro dessa crise; (ii) que esta situação só se mantém, e vai continuar, porque os responsáveis pelos dois partidos de governo, PSD e PS, não assumem a responsabilidade política de lhe pôr fim. 

Ora, enquanto persistir essa pusilanimidade política, muitos titulares de cargos políticos impolutamente dedicados à causa pública vão continuar a ser vítimas (como, recentemente, Fernando Medina no processo Tutti Fruti, como assinalei AQUI) daquilo a que tenho chamado a intolerável instrumentalização da investigação penal como arma de lawfare para fins de perseguição política (como mostrei, por exemplo, AQUI e AQUI). 

Invocando a interpelação de um clássico romano, importa perguntar: quosque tandem?

Free & fair trade (21): Como responder à cruzada protecionista dos EUA?

1. Em mais um salto na sua escalada protecionista - depois da aplicação de tarifas punitivas ao México e ao Canadá, entretanto suspensas mas não revogadas, e à China, e de uma taxa de 25% à importação de aço e alumínio, de qualquer país -, o Presidente Trump decretou agora a aplicação de "tarifas recíprocas" às importações de todos os países. 

Ora, as regras da OMC - de que os Estados Unidos são membro fundador e a cujas normas está obrigado -, estabelecem que: (i) a pauta aduaneira de cada país, que está depositada na OMC e teve o assentimento dos outros membros, proíbe que eles apliquem tarifas acima dessa pauta; (ii) cada membro da OMC tem uma pauta aduaneira única, não podendo discriminar entre os seus parceiros comerciais (chamada "cláusula da nação mais favorecida"). 

Ao passar a aplicar tarifas de importação diferenciadas para os mesmos produtos, subindo-as até refletirem as tarifas correspondentes de cada um dos seus parceiros comerciais, os Estados Unidos, que têm tarifas em média muito baixas, rasgam descaradamente as duas referidas obrigações, com tarifas acima da sua pauta e tarifas discriminatórias

2. Obviamente, os países mais prejudicados vão ser os menos ricos, incluindo a Índia e o Brasil, que tendem a ter tarifas em média bem mais elevadas do que os EUA ou a UE.

Mas a própria União vai ser atingida, não somente na exportação daqueles produtos cujas tarifas de importação americanas são inferiores às europeias (por exemplo, os automóveis), e que, portanto, vão subir, mas também de muitos outros produtos, pois bizarramente Trump considera o IVA europeu como uma tarifa sobre as exportações americanas, quando é óbvio que os produtos importados de qualquer origem pagam na Europa o mesmo IVA que os produtos nacionais (aliás, ao abrigo da regra do "tratamento nacional" da OMC).

A aplicação deste absurdo critério pode vir a lesar profundamente muitas exportações para os Estados Unidos.

3. Há comentadores que defendem - por exemplo, Luís Aguiar-Conraria ontem no Expresso - que os países afetados, a começar pela UE, não devem retaliar com a subida das tarifas de importação dos produtos vindos dos EUA, quando elas são mais baixas do que as americanas, pois a subida de tarifas só iria prejudicar os consumidores e as empresas europeias, que passariam a pagá-los mais caras. Mas não estou de acordo, convergindo com a posição retaliatória prontamente anunciada pela Comissão Europeia.

Há três boas razões para isso: 1º - as violações graves, como estas, das regras da OMC não podem ficar impunes; 2º - se a ofensiva de Washington lesa obviamente as exportações europeias, o único modo de obrigar Trump a revogá-las é atingir na mesma medida as exportações norte-americanas (salvo nos casos em que não haja alternativa a elas); 3º - em resposta ao protecionismo de Trump, que ameaça não ficar por aqui, a UE deve aprofundar a sua política de comércio livre com outras geografias igualmente lesadas (aqui em concordância como referido autor).

O neoimperialismo económico norte-americano não pode deixar de ser combatido por quem o pode fazer. E no caso do comércio internacional, a UE pode!

Adenda
García Bercero, um insigne ex-negociador de acordos comerciais da UE e agora colaborador de um importante think tank em Bruxelas - que conheci bem, quando fui presidente da Comissão parlamentar de Comércio Internaciuonal (INTA) do Parlamento Europeu -, vem dizer o tem de ser dito: «Com os Estados Unidos, estás perdido, se mostras fraqueza». Como acompanhei as negociações do TTIP com os Estados Unidos, concordo inteiramente - e isso é especialmente verdade com Trump.

Adenda 2
A França defende que, face ao protecionismo de Washington, a alternativa comercial da UE está noutras economias como a América Latina e a Índia. Muito bem, mas depois desta declaração, espero que a França abandone a oposição que tem manifestado ao importante acordo da UE com o Mercosul, que se torna ainda mais importante para ambos os lados, depois desta ofensiva geral de Trump. Haja coerência política!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (10): Contra o presidencialismo universitário

1. Decididamente, a proposta governamental de revisão do Regime Jurídico do Ensino Superior (RJIES) não é de mera revisão, mas sim uma demolição da lei de 2007, removendo as suas traves-mestras. Se é assim quando à subversão do sistema binário (como mostrei AQUI), também o é quanto ao sistema de governo das IES públicas, que é virado do avesso.

Com efeito, uma das principais inovações do regime vigente, partindo da conceção das IES como entidades de prestação de serviços, foi a adoção de um sistema de governo de tipo corporate governance, em que um "conselho de administração", composto por representantes dos "acionistas" de cada instituição (professores, investigadores e estudantes) e por um número limitado de elementos externos cooptados, recruta o chefe executivo da instituição, mediante concurso público internacional. Ora, este modelo de board + CEO, tributário da filosofia do new public management, é agora substituído pelo regresso a um antigo modelo "corporativista" de conselho + presidente eletivo da instituição, que não deixou boa recordação.

Trata-se de um monumental recuo, que altera completamente a filosofia do governo das IES.

2. Enquanto no modelo vigente o reitor é um gestor executivo, que implementa as deliberações do Conselho e que responde perante este, podendo ser demitido por ele (embora só por maioria de 4/5), o sistema proposto regressa ao modelo de eleição direta do reitor pelos diferentes corpos da comunidade académica, dos professores aos antigos estudantes, cada um deles com um peso diferenciado.

Embora a eleição incida sobre dois candidatos pré-selecionados pelo Conselho, a verdade é que a eleição direta do reitor vai redundar necessariamente num sistema de governo presidencialista, em que aquele, por passar a gozar de uma legitimidade política própria, vai reforçar o seu poder e deixa de ser responsável perante o Conselho, a pretexto da responsabilidade perante os seus eleitores, podendo gerar conflitos de orientações entre os dois órgaos eletivos, entre o poder deliberativo e o poder executivo, como é frequente nos regimes presidencialistas. 

Mesmo excluindo a hipotése de eleição de personalidades autoritárias, irremovíveis durante quatro anos, o potencial disruptivo desta solução presidencialista é enorme, podendo pôr em causa a estabilidade e regularidade de funcionamento do governo das universidades.

3. A eleição do reitor foi saudada pelos corpos universitários e por quase todos os comentadores do anteprojeto governamental, em nome da "democracia universitária" (que, aliás, não goza de assento constitucional).  

Mas, a meu ver, trata-se de um equívoco: primeiro, o "governo representativo" já está plenamente assegurado pela eleição do Conselho; segundo, na nossa ordem política, salvo os municípios e as ordens profissionais, não existe nenhuma instituição dotada de autogoverno em que haja eleição direta de ambos os órgãos de governo, tanto o deliberativo como o executivo. E, como mostram ambos os casos, a eleição direta dos presidentes, além dos seus confitos com os órgaos deliberativos, redunda no seu protagonismo e na secundarização destes, eliminando a efetivação da responsabilidade dos primeiros perante as segundos, o que não é propriamente um avanço democrático.

Do mesmo modo, o presidencialismo vai aumentar a concentração de poder num órgão uninominal que não responde perante ningém, à custa do debate deliberativo num órgão colegial de representação plural e proporcional, como é o Conselho. Portanto, democracia a menos, e não a mais. Monocracia e democracia só têm de comum a rima; ao invés, da monocracia à autocracia vai um passo...

E aqui está a razão por que  uma solução aparentemente "superdemocrática" de governo das IES, que poderia ser associada a uma visão de esquerda, é proposta por um governo de direita a um parlamento maioritariamente de direita, e pode vir a ser aprovada!

Adenda
Um leitor comenta que há «um elemento positivo na proposta do Governo, [que é] a participação dos antigos estudantes na eleição do reitor». Concordo que é muito positivo incluir os alumni no governo das suas antigas universidades, mas eu creio que mais importante do que participarem de 4 em 4 anos na eleição do reitor, com um peso reduzido, seria terem uma representação permanente no Conselho Geral, junto com os demais corpos académicos aí representados.

Adenda 2
Um leitor sugere uma solução intermédia entre o atual sistema de seleção e a eleição direta, que seria a eleição indireta por um colégio eleitoral ad hoc, composto pelo CG e por representantes adicionais dos corpos académicos, eleitos ao mesmo tempo que o CG. Penso que se tiver de abandonar-se o sistema vigente, do mal o menos... Em todo o caso, com quatro condições, para reduzir o risco de abuso do cargo: (i) eleição na base de um programa de ação apresentado ao colégio eleitoral; (ii) eleição por maioria absoluta; (iii) obrigação de prestação de contas regulares perante o CG e (iv) possibilidade de impeachment, por maioria de 3/4 dos membros do CG, em caso de violação grave das suas obrigações legais ou regulamentares, ou do seu programa de ação. 

Adenda 3
Lamentavelmente, o projetodo de revisão do PS, de que acabo de tomar conhecimento, também abandona o atual regime de designação do reitor e, embora remetendo o modo de eleição para a autonomia estatutária das IES, admite explicitamente a eleição direta (que. não tenho dúvidas, seria  a solução geralmente adotada, sob o falso argumento de ser "mais democrática"). Decididamente, nem a esquerda escapa à errada propensão para favorecer a presidencialização da governação universitária...

Adenda 4
Um leitor objeta que o PR também é diretamente eleito e «não corremos o risco de nenhuma ditadura presidencial». Trata-se, porém, de uma confusão: o PR é diretamente eleito, mas não governa nem tem poder de tutela política sobre o Governo, que é politicamente responsável perante a AR, enquanto o reitor é o órgão executivo da sua universidade, pelo que, se for diretamente eleito, deixa de ser responsável perante outro órgão. A diferença é essencial. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Guerra na Ucrânia (60): «O tempo da UE acabou»

1. Infelizmente parece ter razão o desbocado ex-primeiro-ministro russo, Medvedev, quando veio dizer que «o tempo da UE acabou», ao comentar o início de negociações entre a Rússia e os Estados Unidos para o fim da guerra na Ucrânia, decidido à margem desta e da União Europeia. 

Sendo a União quem mais tem contribuído para o esforço de guerra ucraniano e quem mais tem sofrido economicamente com as sanções impostas à Rússia e as contrassanções desta, trata-se de um profundo revés, tanto mais quando é muito provável que Moscovo venha a obter o essencial dos seus objetivos nesta guerra, nomeadamente impedir a Ucrânia de se incorporar na Nato e integrar definitivamente não somente a Crimeia mas também os territórios russófonos do Dombass entretanto ocupados. Obtidos esses resultados, Moscovo pode bem comprometer-se num esquema internacional de segurança da Ucrânia, em troca da garantia da sua própria segurança. 

Uma dupla desfeita para Bruxelas, que continuava apostada em negar ambos os objetivos russos.

2. A verdade é que, cada vez mais, a guerra na Ucrânia é insustentável a prazo e que o seu prolongamento só traz, do lado da Ucrânia, mais perda de vidas humanas, mais destruição de infraestruturas e mais território perdido, e do lado da União, mais fundos consumidos, mais pressão sobre a sua economia, mais ceticismo dos seus cidadãos e mais capital político desperdiçado. 

Lamentavelmente, mercê dos falcões da Nato e da russofobia primária de alguns dos seus Estados-membros, a União viu-se impedida de defender ativamente uma solução negociada entre as partes, na base do sofisma de que tal dependia exclusivamente da própria Ucrânia e de que qualquer cedência à Rússia seria uma luz verde para aumentar a sua suposta ameaça sobre a Europa.

Agora que em Washington o seu principal ex-aliado se prepara para concertar com Moscovo o fim da guerra e os seus termos, incluindo a cessação imediata da ajuda norte-americana a Kiev, resta à UE fazer de assessora contrafeita nas negociações e preparar o pesado cheque para pagar a reconstrução da Ucrânia. 

Os cidadãos europeus mereciam melhor dos seus governos e de Bruxelas.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Causa palestina (14): O criminoso plano de Washington

1. Como se não bastasse a ocupação, a destruição fisica e o massacre israelita em Gaza, tragédia inteiramente abençoada e generosamente financiada pelos Estads Unidos sob Biden, a respetiva população enfrenta agora a loucura política de Trump, com o seu sinistro plano de se apropriar do território, deportar definitivamente toda a população e transformar as ruínas numa estância turística, plano que o chefe de Governo israelita se apressou a aplaudir, como seu verdadeiro instigador!

Não há memória desde a II Guerra Mundial de um plano de um Estado democrático tão flagrantemente violador das normas mais elementars do direito internacional, como a proibição de deportação de populaçoes civis, a proibação de limpeza étnica, o direito das populações às suas terras e de regresso à suas casas, o direito dos povos à autodeterminação. E nenhum tão desuman e moralmente tão execrável.

Só pelos crimes contra a humanidade envolvidos nesta proposta, Trump devia ser alvo de um mandato de captura do Tribunal Penal Internacional, tal como Netaniahu já foi. Por muito menos, Putin tem também ele um mandato de captura. Porque é que o presidente dos Estados Unidos há-de gozar de imunidade?

2. Muitos países, incluindo os países europeus, condenaram a ideia de Trump, mas fizeram-no em geral sem o vigor que a sua barbaridade justificava e sem retirarem as necessárias consequências políticas para as suas relações com Washington. Em especial, os países europeus não conseguem abandonar a duplicidade de critérios  com que encaram o neoimperialismo americano, nem assumir que a tradicional aliança com Washington está mortalmente ferida e que os Estados Unidos se tornaram um perigo para a estabilidade internacional.

Enquanto hipocritamente se vão dizendo defensores da solução de "dois Estados", mas não reconhecem o da Palestina, enquanto esta é destruída (como é o caso de Portugal), de que estão à espera: que Trump acabe o serviço de Netaniahu e liquide de vez a população de Gaza?

Adenda
Confirmando o que acima disse sobre o "respeitinho" dos governos europeus em relação a Washington, o MNE português recusou-se a comentar o miserável plano de Trump. Lamentável.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (9): Contra o desvio do Conselho de Estado

1. Na sua entrevista de ontem à CNN, o candidato presidencial Marques Mendes anunciou que, se for eleito, tenciona prosseguir com a prática da reunião frequente do Conselho de Estado, incluindo o convite a personalidades convidadas, considerando positiva a inovação trazida por Marcelo Rebelo de Sousa nesse ponto.

Comprendo o seu ponto de vista, tanto mais que, como conselheiro de Estado de nomeação presidencial, ele foi "cúmplice" e beneficiário dessa prática. Mas não penso da mesma maneira -, pelo contrário. Várias vezes denunciei o abuso e a instrumentalização política do Conselho de Estado pelo PR cessante (por exemplo, AQUI e AQUI). E por isso incluí tal item no meu "catálogo do bom candidato presidencial" (AQUI).

Como diz a Constituição, o CdE só pode ser convocado para aconselhar o PR no exercício das suas funções, o que, a meu ver, requer duas coisas: (i) que o PR submeta ao Conselho uma questão relativa ao exercício de um dos seus poderes constitucionais, (ii) a fim de obter um parecer do Conselho sobre a mesma.

Tal como os demais órgaos constitucinais, o CdE só pode ser chamado a exercer os poderes previstos na Constituição, e não para outros efeitos.

2. Por isso, o Conselho não deve ser convocado para se pronunciar sobre, ou só para para debater,  as políticas públicas setoriais, que são da competência do Governo, sob escrutínio da AR, e não do foro presidencial, pelo que também estão fora dos poderes daquele. 

Ao contrário do que tem sucedido, o Conselho não pode ser despromovido a uma mera tertúlia política de senior citizens - que o PR sempre poderá reunir à volta de um discreto repasto -, nem muito menos ser promovido a uma espécie de segunda câmara parlamentar de escrutínio da ação governamental, à margem do seu conceito histórico e da atual Constituição, que claramente optou, desde a origem, por um parlamento unicamaral, representativo das diversas forças políticas, e que, desde 1982, estabelece inequivocamente que o Governo só responde politicamente perante a AR, e não perante o PR, nem direta nem indiretamente.

Não ignoro que não falta quem defenda a criação de um senado, o que se comprende entre os próprios putativos "senadores da República", mas não é essa manifestamente conceção constitucional do CdE, que deve ser precisamente respeitada

Adenda
Em contrapartida, concordo inteiramente com as declarações de Marques Mendes contra os comentários presidenciais às leis aquando da sua promulgação, prática em que o atual titular do cargo é useiro e vezeiro, e que condenei desde o princípio (AQUI). Tendo um poder de veto sobre as leis e sobres alguns atos do Goveno, o PR não é, porém, cotitular do poder legislativo nem do poder governamental.

Adenda 2
Não tem razão o leitor que objeta que, «se o Presidente não puder convocar livremente o Conselho de Estado, este de nada serve». Com efeito, além dos casos de convocação constitucionalmente obrigatória (como a dissolução da AR e dos parlamentos regionais), o Presidente pode sempre convocá-lo para dar parecer sobre o exercício de outros dos seus poderes, como, por exemplo, a declaração do estado de sítio (ou a sua renovação), o veto de leis parlamentares (que, a meu ver, deveria ser obrigatório, pelo menos no caso das "leis orgânicas"), a convocação extraordinária da AR, a nomeação do PGR e do presidente do Tribunal de Contas, a ratificação dos tratados de adesão a organizações internacionais, etc. Não é preciso convocar o Conselho à margem da Constituiação, para dar trabalho aos conselheiros...

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (8): Um privilégio inconstitucional

1. No anúncio da sua candidatura às eleições presidenciais, Marques Mendes informou ter entregado ao PSD o seu cartão de filiado, no entendimento de que o cargo presidencial é independente dos partidos, e como um compromissso, se for eleito, de uma «magistratura de isenção, independência e imparcialidade».

Concordo inteiramente com a decisão e com esse entendimento, sendo essa mesmo a primeira obrigação dos interessados, no meu catálogo de obrigações dos candidatos presidenciais, que explanei AQUI.

2. Todavia, entendo que isso não basta, e que os candidatos de origem partidária devem também prescindir da organização e financiamento das suas campanhas eleitorais pelos partidos que os apoiam. De facto, a lei eleitoral estabelece que a campanha eleitoral pode ser organizada pelos próprios candidatos e seus proponentes, mas também pelos partidos que apoiem a sua candidatura, e a lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais admite o financiamento partidário.

Ora, como já escrevi há alguns anos num texto académico (AQUI), considero que essa possibilidade não é conforme com a Constituição, não somente por ser incompatível com a referida separação entre eleições presidenciais e partidos políticos, mas também por violação do princípio da igualdade entre as candidaturas, conferindo aos candidatos que usufruam da organização e do financiamento das suas campanhas pelos seus partidos uma enorme, e iníqua, vantagem sobre os demais.  

3. Parece-me evidente que uma coisa é o apoio político externo dos partidos, outra coisa é o apoio logístico e material na própria campanha eleitoral, apropriando-se dos candidatos.

Não tenho dúvidas: se fosse o candidato Gouveia e Melo, não hesitaria em impugnar as candidaturas que beneficiassem desse privilégio... 

Adenda
Um leitor objeta que «todos os candidatos, mesmo os que não têm origem partidária, podem vir a obter apoio de um ou mais partidos, incluindo na organização e financiamento da sua campanha», pelo que não vê onde está a discriminação. Discordo, em absoluto: 1º - mesmo quando não tenham origem partidária, os candidatos têm todo o direito de rejeitar o apoio de partidos, para assim assegurar a sua independência;  2º - os diferentes partidos não têm as mesmas capacidades logísticas e fianceiras; 3º - sobretudo, a organização e o financiamento partidário da campanha eleitoral traduz-se necessariamente na "captura" partidária da candidatura e na criação de uma dívida do candidato perante o(s) partido(s) financiadores, que depois vai ser cobrada a Belém, se ele for eleito.

Adenda 2
Um leitor aplaude esta minha «descoberta (...), que vai livrar o país da invasão de praças e rotundas por uma chusma de cartazes e de paineis de propaganda eleitoral». Assim espero!

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Perguntas oportunas (3): A vileza pessoal e política fica impune?

O vil e abjeto ataque público do líder do Chega a Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues, que os atinge deliberadamente na sua dignidade moral e política, só pode ser objeto de total repúdio e desprezo por todos os que entendem que há exigências éticas mínimas na luta política.

Pessoalmente, entendo que os alvos do tratante não devem enveredar pela via penal, pois, embora uma ofensa desta gravidade só pudesse dar lugar a prisão, o processo seria utilizado por ele para continuar a lançar lama sobre as vítimas. Mas não compreendo como é que uma torpeza destas pode ser ignorada na coletividade política e, em especial, na AR, onde ambos os alvos da desprezível criatura foram deputados e, no caso de Ferro Rodrigues, presidente da instituição.

Por isso, como já alguém perguntou, pode a AR deixar de manifestar a sua solidariedade com o seu antigo Presidente, face à baixeza de que é vítima, aliás por alguém que, sendo atualmente deputado, também injuria o parlamento, que devia respeitar?

Adenda
Que eu tenha notado, o PS ainda não reagiu a este infame ataque ao seu antigo secretário-geral e antigo presidente da AR. Está à espera de quê?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Praça da República (83): Contra os juízes-ministros


1.
A imagem acima constitui um excerto da entrevista do Presidente do STJ, Consº Cura Mariano, na última edição do semanário Expresso. Como já tive ocasião de dizer diretamente ao autor, por quem nutro uma elevada consideração pessoal e profissional, discordo em absoluto do exercício de cargos governativos por juízes, como sucede lamentavelmente no atual Governo, contradizendo descaradamente um compromisso eleitoral.

De facto, tenho por evidente que se trata de uma solução que afronta dois pilares incontornáveis do Estado de direito constitucional desenhado na CRP, a saber: (i) a separação de poderes entre o poder judicial (e os seus titulares, os tribunais) e poder político (e os seus titulares, PR, AR e Governo) e (ii) a independência política dos juízes, que só aquela garante. É a posição que venho denfendendo desde sempre, quer no meu ensino de Direito Constitucional, quer em declarações públicas ocasionais (por exemplo, AQUI e AQUI).

Ou seja, no meu entender - e também era esse o entendimento do anterior presidente do STJ... -, os juízes que queiram enveredar pelo exercício de cargos políticos, nomeadamente ser ministro, devem abandonar previamente a carreira judicial. Ser ministro, mantendo o estatuto de juiz, é uma contradição nos termos.

2. Não ignoro que mercê de uma recente alteração no Estatuto dos magistrados judiciais (promulgada pelo PR sem fiscalização prévia de constitucionalidade), essa acumulação é legalmente permitida. Mas ser permitida não quer dizer que seja recomendável, e não é preciso ser constitucionalista para saber que as leis não prevalecem sobre a Constituição, pelo contrário.

De resto, tal solução contrasta manifestamente sobre outras disposições legais que, em conformidade com os referidos princípios constitucionais, vedam o exercício de cargos políticos e outras atividades políticas aos juízes, nomeamente a incapacidade de candidatura à AR e a quaisquer órgãos políticos eletivos e a proibição de atividades partidárias de caráter público. Ora, se não podem ser deputados nem ter atividade partidária, como é que se entende que possam ser ministros ou secretários de Estado de governos de natureza indesmentivelmente partidária, que executam o programe eleitoral do(s) partido(s) governante(s) e que respondem pessoalmente na AR perante os partidos de oposição?
Trata-se de uma contradição legislativa demasiado grosseira - e a culpa não está nas leis que fazem valer a independência política dos juízes, mas sim naquela que a subverte.

Adenda
Um leitor pergunta se a doutrina deste meu post também se aplica aos juízes do Tribunal Constitucional. Obviamente que sim: também não podem exercer atividades políticas durante o seu mandato nem aceitar cargos políticos sem renunciarem ao mandato (como, aliás, já ocorreu). A única diferença está em que eles têm um mandato de 9 anos (não renovável), enquanto os magistrados judiciais têm uma carreira (salvo as quotas de entrada externa no STJ), a qual só termina com a aposentação, a não ser que saiam antes, por vontade própria ou por sanção disciplinar. E se os juízes do TC podem exercer atividades e cargos políticos antes e depois do seu mandato, como qualquer outro cidadão, o mesmo sucede com os demais juízes, quer antes de iniciarem a carreira (desde logo, nas lutas estudantis e nas juventudes partidárias), quer depois de a terminarem, seja antecipadamente, seja depois da aposentação (salvo se optarem pela jubilação. A ideia de que os juízes do TC gozam de algum privilégio neste ponto não tem nenhum fundamento.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Manifesto pela Reforma da Justiça (8): Mais uma vítima

1. Apesar do zelo posto na tentativa de o acusar, o MP viu-se obrigado, manifestamente contra vontade, a desistir de acusar o antigo Presidente da CM de Lisboa (e depois ministro das Finanças), Fernando Medina, de um supostos crimes de corrupção e de prevaricação, que desde o início não tinha nenhum pé para andar, como protestava com toda a razão o visado. Mas a suspeita só veio a ser levantada passados todos estes anos de julgamento e condenação pela "imprensa popular" e na praça pública, sem apelo nem agravo, com o inerente prejuízo para o seu bom-nome e reputação, no plano pessoal e político. 

Medina é, pois, mais uma das vítimas da intrumentalização política da investigação penal pelo Ministério Público, na sua cruzada contra a "classe política", por definição propensa ao crime, segundo a cultura interna prevalecente no MP.

2. Penso há muito que entre as razões para a crescente falta de atratividade dos cargos políticos fora do círculo dos partidos políticos, nomeadamente entre académicos e profissionais, para além da baixa remuneração, estão dois outros fatores: o receio de serem vítimas destes abusos do MP e a tendência cada vez maior dos tribunais para a impunidade das ofensas à honra e ao bom nome dos políticos na imprensa e, ainda mais, nas redes sociais, onde vale tudo.

Aliás interligados pela sistemática violação do segredo de justiça quando estão em causa políticos, estes dois factores constituem um enorme dissuasor da disponibilidade para o exercício de cargos políticos, por mais impoluto e respeitador do interesse público que se seja. Ver arruinado o seu bom nome reputação, à margem de qualquer conduta censurável, é um risco que muitos cidadãos não estão disponíveis para correr, por mais atraente que seja para eles servir a causa pública.

Adenda
No caso de Medina, o MP acrescenta o vitupério à ofensa. Não tendo conseguido encontrar matéria para o acusar de nenhum crime, o MP permite-se, porém, censurar a conduta do Presidente da CML neste caso. Ora, além de um óbvio mau perder, trata-se de um claro abuso de poder, pois não compete ao MP, em sede de investigação penal, pronunciar-se nem sobre a legalidade nem sobre o mérito da acção administrativa, cujo escrutínio é da exclusiva competência da justiça administrativa, quanto à primeira, e dos munícipes de Lisboa, quanto ao segundo. Esta intolerável conduta persecutória dos magistrados do MP neste processo não devia ficar disciplinarmente impune, e o PGR não devia manter um silêncio cúmplice sobre ela.

Centralismo (2): Até as creches!?

1. Segundo uma notícia de há dias, a Assembleia Municipal do Porto veio reivindicar a criação de uma «rede de creches públicas estatais» no munícipio

Mas eu pergunto: num Estado que, constitucionalmente, deveria ser descentralizado nas coletividades locais, de acordo com o princípio da subsidiariedade, faz algum sentido que as creches sejam geridas pelo Estado, a partir de Lisboa? Sendo um serviço público eminentemente local, não seria mais lógico que elas fossem uma atribuição plena dos municípios, ou até das freguesias maiores, obviamente munido/as dos competentes meios financeiros? Como se compreende que sejam os próprios municípios a querer meter o Estado nisto?

Infelizmente, parece que entre nós o atavismo centralista gera conformismo político geral com o statu quo.

2.  Há muito que defendo que para cumprir o programa constitucional da descentralização na área da educação, o ensino básico deveria ser transferido integralmente para os municípios e o ensino secundário deveria ser transferido para as autarquias regionais a criar com a chamada regionalização, ficando a cargo do Estado somente o ensino superior.

Além de aliviar o Estado de tarefas que não lhe deviam competir, a descentralização territorial da educação implicaria só por si uma profunda alteração da repartição da despesa pública entre o Estado e as autarquias territoriais, tornando-a menos discrepante com a média da Europa. Mas quando vejo um município a pedir ao Estado que se ocupe das creches, é caso para perguntar se entre nós faz algum sentido exigir a descentralização e condenar o centralismo, com que afinal convivemos sem problema

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

+ União (86): Um momento decisivo

Aplauso para este "cartaz" do Movimento Federalista Europeu, que denuncia graficamente a incapacidade da União Europeia para se assumir como potência mundial e ombrear com os EUA, a China e a Federação Russa. ´

Sucede que as atuais circunstâncias se apresentam como um momento decisivo para a afirmação estratégica da União, quando Washington, sob Trump, deixou de ser um aliado fiável, a Rússia afirma a sua determinação de hegemonia no campo euro-asiático e a China não esconde a sua vontade de disputar a liderança mundial. Em contrapartida, a UE, além de estar a perder a corrida do crescimento económico, vê o défice de condições institucionais (nomeadamente a regra da unanimidade na política externa e de defesa) e as suas divisões internas (governos naciolistas em cinco Estados-membros) a impossibilitarem a sua afirmação estratégica. 

É triste ver a UE fora deste campeonato, em risco de ser vítima da disputa entre as três potências. 

Manifesto pela Reforma da Justiça (7): O sindicato dirigente

1. Merece ser lido este texto ontem publicado no Público pela magistrada aposentada do Ministério Público, Maria José Fernandes, sobre o sindicato dos seus magistrados e sobre como ele passou de uma organização de defesa de direitos e interesses laborais, como é próprio dos sindicatos, para um centro de poder hegemónico dentro da própria instituição. Mais uma vez a autora dá uma prova de coragem incomum na defesa da instituição a que dedicou a sua vida profissional.

Com o conhecimento de causa que o texto revela, ele vem ao encontro de algo que há muito tempo denuncio aqui, ou seja, a captura do governo do MP pela autogestão sindical da corporação, que constitui uma ameaça fatal à autoridade do Procurador-Geral como presidente da PGR, ao princípio da hierarquia funcional e à autonomia do Ministério Público, constitucionalmente garantida.

2. Tal como a autora, não creio que a situação seja reparável por autorreforma da conduta do sindicato. Quem tomou um  poder numa instituição tão importante no nosso sistema de justiça penal (e não só) não abdica dele de motu proprio.

Reiterando as propostas que tenho feito sobre o assunto, a captura sindical do MP só pode ser desfeita por duas vias simultâneas: (i) a transferência para o PGR de poderes de que nunca deveria ter sido privado, como presidente que é da Procuradoria-Geral, como o movimento dos magistrados e a ação disciplinar; (ii) a redução da representação dos magistrados no Conselho Superior da instituição, perdendo a absurda a maioria que atualmente detêm.

Ao contrário do sindicato, que, por definição, representa interesses particulares de grupo, o PGR goza de legitimidade democrática para governar a instituição à luz do interesse público, sendo nomeado (e eventualmente destituído) pelo PR sob proposta do Primeiro-Ministro, e só ele pode responder pela atividade do MP, como é devido numa Estado de direito constitucional, quer perante quem o nomeou, quer perante a AR.

Decididamente, é altura de uma reforma do governo do Ministério Público em plena conformidade com a Constituição.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Stars & Stripes (18): Uma absurda guerra comercial

1. Tem razão o Financial Times, ao qualificar de «absurda» a guerra comercial aberta ontem por Trump ao subir substancialmente as tarefas de importação de bens oriundos do Canadá e do México (em 25%)  e da China (em 10% ) - que estão entre os maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos - , a pretexto de obrigar os dois primeiros países a travar a entrada de imigrantes ilegais e de fentanyl (uma droga) nos Estados Unidos, e sem nenhuma justificação para o caso da China.

Com efeito, além do absurdo da justificação - como se os governos desses países promovessem ou apoiassem tais situações e fosse fácil impedi-las, e não coubesse sobretudo aos Estados Unidos controlar as suas fronteiras -, a subida das tarifas não vai prejudicar somente as exportações dos países atingidos para o mercado estadunidense; vai também fazer subir os custos dos produtos importados desses países (combustíveis, bens alimentares, peças de automóvel, etc.), à custa dos consumidores e das empresas norte-americanas. Acresce, a inevitável retaliação desses países vai afetar também as exportações norte-americanas, de novo à custa das suas empresas e dos seus trabalhadores.

Em suma, mesmo que os Estados Unidos percam menos do que as vítimas (sobretudo o México), trata-se de uma guerra estúpida, em que todos perdem

2. Mas há outro aspeto que torna esta guerra inaceitável sob o ponto de vista do direito do comércio internacional, que é a sua flagrante ilegalidade. 

Por um lado, ela afronta as normas da Organização Mundial do Comércico (OMC), de que os Estados Unidos foram fundadores, que proíbem tanto a discriminação tarifária de terceiros países por motivos políticos, como a aplicação de tarifas acima da pauta inscrita por cada país na OMC -, como é o caso. Por poutro lado, e ainda mais grave, ela viola frontalmente a acordo de livre comércio entre os três países da América do Norte, aliás negociado e aprovado por Trump no seu primeiro mandato, que estabeleceu a liberdade de circulação de produtos entre eles, sem tarifas.

Em suma, estamos perante uma dupla ilegalidade, que infringe descaradamente os compromissos contratuais dos Estados Unidos e a "ordem económica internacional sujeita a regras" criada depois da II Grande Guerra, em grande parte por impulso dos Estados Unidos.

3. É evidente que o próximo alvo da guerra comercial de Trump vai ser a UE, que ele considera ter sido desde o início uma conspiração contra os Estados Unidos.

Sendo o mercado norte-amerticano o primeiro destino das exportações europeias, um choque tarifário de Washington vai causar muito dano à economia europeia, e não somente nos Estados-membros que mais dependem das exportações para o outro lado do Atlântico. 

Mas a UE não esta desarmada e é de esperar que a resposta a esta guerra não deixe de ser igualmente dura e que, embora seletiva nas subidas tarifárias, seja especialmente danosa nos setores que mais doem à economia americana, inclundo no acesso do investimento norte-americano na Europa.

A UE não pode falhar neste teste provocado pela agressão económica de um ex-aliado, por mais poderoso e agressivo que ele seja.