quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Memórias acidentais (14): Gorbatchev (1931-2022)

1. Gorbatchev não foi somente o dirigente russo que, tendo iniciado em 1985 uma reforma do sistema soviético - baseado no Estado-partido e na economía estatizada, conforme aos cânones  leninistas -, acabou por desencadear um processo que levou à queda do muro de Berlim (1989) e a tudo o que se seguiu, designadamente o fim  da União Soviética e do comunismo na Europa, a independência de várias das antigas repúblicas soviéticas (Países bálticos, Ucrânia, etc) e o termo da "guerra fria". 

Além disso, ele mudou o mundo. Politicamente, o séc. XX termina em 1989, marcando simbolicamente o triunfo da economia de mercado e da democracia liberal sobre as economias coletivizadas e as "democracias populares".

2. As ideias reformistas de Gorbatchev também contribuíram, desde o início, para abalar os partidos comunistas ocidentais, quase todos de filiação soviética, como era o caso do PCP, acabando por fazer implodir o movimento comunista internacional. 

No caso português, a "abertura" de Gorbatchev em Moscovo animou os comunistas portugueses que não compartilhavam da fidelidade aos dogmas do marxismo-leninismo nem se reviam no modelo soviético a saírem a terreiro e a abrirem o debate dentro do Partido. Daí nasceu o "grupo dos seis", de que fiz parte, o qual em 1987, num documento entregue à direção do partido e depois tornado público, apresentou uma visão muito crítica do estado do PCP, ousando propor a abertura de um processo de "reestruturação geral" do partido. Ao "grupo dos seis" seguiu-se a chamada "terceira via". 

Apesar de quase todos os envolvidos nessa contestação da orientação tradicional terem abandonado o Partido (como foi o meu caso) ou terem sido expulsos, o PCP perdeu parte importante da sua elite intelectual e acentuou desde então o seu lento, mas inexorável, declínio como força política em Portugal.

Adenda
O lamentável comunicado do PCP sobre a morte Gorbatchev, condenando-o pela "destruição da URSS", revela a sua  impenitente fidelidade ao antigo modelo soviético e ao dogma marxista-leninista, aliás canonizado por Estáline, e a inerente hostilidade à democracia liberal e à economia de mercado, o que obviamente exclui qualquer aliança governativa com o PS, por manifesta incompatibilidade ideológica, comprovando que a "Geringonça" era uma aliança de circunstância que não podia durar muito, como aqui sempre se argumentou.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Assim vai a política (12): A saída de Marta Temido

1. A prolongada crise das urgências hospitalares e dos serviços de obstetrícia, centrada na região de Lisboa - o que ampliou a sua visibilidade mediática, exploração corporativista e exposição política -, não podia deixar de fazer "rolar cabeças".

Se o SNS tivesse uma direção própria, teria sido a Ministra a demiti-la; como não tem, e a Ministra funciona realmente como diretora do SNS, gerando necessariamente a politização de todos os problemas de gestão, teve de ser ela a demitir-se, passando rapidamente do "Capitólio à Rocha Tarpeia" da política. São os custos da responsabilidade ministerial.

2. Sucede, porém, que as coisas não têm de ser assim. 

O ministros servem para fazer política, preparando e dirigindo a respetiva política setorial e superintendendo na sua execução, e não para tarefas de gestão ou administração, pelo que não devem ser diretos responsáveis pelos serviços públicos sob sua tutela, servindo também de bombeiros em caso de acidentes. Tal como o ministro da Defesa não gere as forças armadas e o ministro da Administração Interna não gere as forças policiais, e assim por diante, também o ministro da Saúde não tem que gerir o SNS, que, aliás, está longe de ter o monopólio da prestação de cuidados de saúde em Portugal. 

O novo Estatuto do SNS veio finalmente criar uma direção executiva própria para o serviço, responsável pela sua gestão (embora naturalmente sob superintendência ministerial). Mas, por culpa própria, para Marta Temido essa separação e desconcentração de tarefas chegou tarde.

Adenda 
Embora pense, como já disse várias vezes, que o SNS não tem futuro na sua atual configuração, julgo que a existência de uma direção própria, responsável pela sua gestão, pode melhorar as coisas, desde que ela tenha poder para nomear e responsabilizar os gestores das suas "unidades de produção", os quais, por sua vez, serão incentivados a velar pelo desempenho dos serviços e do seu pessoal. Com efeito, a meu ver, a grande falha do SNS é a sua baixa eficiência, filha do défice de avaliação e de responsabilidade da gestão e do desempenho dos serviços.

Adenda 2
Um leitor argumenta que MT foi "vítima do continuado subfinanciamento do SNS", que a impediu de resolver os problemas de fundo. Discordo em absoluto. Nos últimos anos o orçamento do SNS aumentou três mil milhões de euros, com um aumento substancial também dos números do pessoal (mais de 20 000), sem que tal substancial acréscimo de recursos se refletisse em correspondente subida de produção.  Ou seja, aumentou a ineficiência e o desperdício - que são a grande falha do SNS (como mostrei AQUI).

Guerra na Ucrânia (46): Insensatez agravada

Depois da estúpida exclusão de russos de provas desportivas e de eventos culturais no início da guerra, agora há quem queira proibir a entrada de turistas russos na UE.

Está visto que a sensatez e a decência não resistem a guerra. Além de ser mais um tiro no próprio pé - como se argumenta neste editorial do Financial Times -, fechar a UE aos civis russos traduz-se numa punição coletiva pela ação bélica do seu governo, que nenhum argumento pode justificar e que os princípios por que se rege a União excluem. 

Espero que o Governo português não embarque nesta política aventureira.

Adenda
Um leitor pergunta se esses países vão também propor a «proibição de os cidadãos europeus visitarem a Rússia e, depois, de lerem Tolstoi e de escutarem de Tchaikovski». Espero que não cheguem aí, mas parece evidente que o agressivo fundamentalismo antirrusso de alguns países do Leste está a contaminar a União e a minar os seus valores de humanismo, cosmopolitismo e universalismo nas relações entre os povos, por sobre os litígios entre os Estados.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (40): O contributo decisivo de José Liberato

1. Acaba de ser publicado na revista História JN um artigo assinado pelo Prof. José Domingues e por mim, evocando os 250 anos do nascimento de José Liberato (1772-1855), um dos "pais intelectuais" da Revolução Liberal.

Lembrando a sua vida e obra política, o artigo sublinha também o contributo decisivo do Campeão Português, por ele editado e redigido a partir do seu exílio em Londres, no período anterior e imediatamente posterior à Revolução Liberal (entre 1819 e 1821), quer pela crítica tenaz do absolutismo, quer pela proposta constitucional que apresentou.

O nosso artigo visa resgatar esse contributo de Liberato, que não tem tido a atenção e o estudo que, a nosso ver, merece.

2. Este artigo é um extrato adaptado de um livro em preparação pelos autores sobre o pensamento político-constitucional de José Liberato nesse período crucial da história nacional, assim como sobre a sua repercussão na Constituição de 1822 e nas constituições seguintes da monarquia constitucional (Carta Constitucional de 1826 e Constituição de 1838).

Sendo acima de tudo um liberal, focado na defesa e garantia dos direitos e liberdades individuais, Liberato (aliás, nome por ele adotado a caminho do exílio), cuidou, porém, de sublinhar o papel essencial das cortes, como representação política nacional, quer na antiga constituição da monarquia pré-absolutista, quer na nova era constitucional inaugurada pela Revolução Liberal.

Aliás, para Liberato, o «direito às Cortes» era o mais decisivo direito político da antiga constituição, que o absolutismo postergara, e cuja repristinação, ainda que em novos moldes, só por si justificava a revolução constitucional.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Stars & Stripes (8): A ameaça autoritária de Trump

1. Impõe-se ler este artigo do credenciado analista político do Financial Times, Martin Wolf, sobre o risco de uma deriva autocrática dos Estados Unidos, caso Trump viesse a retomar a presidência daqui a dois anos.

Wolf afirma rotundamente que o Partido Republicano adotou o "Führer Prinzip", ou princípio do chefe, segundo o qual a autoridade do líder é inquestionável e a fidelidade pessoal ao líder é absoluta, forçando o afastamento de todos os que ousem questioná-la, como sucedeu agora com a "defenestração" da deputada Liz Cheney, nas eleições primárias do Partido Republicano do seu Estado, por ter ousado contrariar a conspiração de Trump contra as eleições presidenciais que perdeu.

2. Sendo certo que Trump continua a liderar confortavelmente o apoio dos Republicanos (como mostra o quadro acima) e que - salvo acusação penal por causa do incentivo à invasão do Capitólio por apoiantes seus em 6 de janeiro de 2020 - virá a ser de novo o seu candidato presidencial, a única maneira de afastar o risco da deriva autocrática reside numa nova vitória dos Democratas, o que neste momento é temerário prever.

A possível derrota Democrata nas eleições intercalares de outubro deste ano pode anunciar dois anos de preocupante incerteza política quanto ao desfecho do desafio autocrático na disputa da Casa Branca em 2024.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Guerra na Ucrânia (45): Ao contrário do previsto, a economia russa aguenta

Quando o Ocidente reagiu à invasão russa da Ucrânia com um maciço programa de sanções económicas e financeiras (incluindo a captura das substanciais reservas de divisas russas em bancos ocidentais), o objetivo era levar a Rússia a um rápido colapso económico (incluindo um default de pagamentos), obrigando-a a recuar. Nove em cada dez analistas prognosticaram uma devastadora crise económica!

Seis meses depois, a situação económica russa está longe de ir ao encontro de tais previsões. A respeitada revista britânica The Economist diz que poucos previam que a economia aguentasse e explica por que razões é que ela continua a desmentir as previsões, entre as quais se contam a considerável autossuficiência económica da Rússia, o facto de muitos países não terem alinhado nas sanções e de o próprio ocidente continuar a importar energia russa e a circunstância de a guerra e as sanções terem valorizado as principais exportações russas.

Seja como for, uma coisa parece óbvia: não será por asfixia económica da Rússia que a guerra vai acabar. E uma vez que a Ucrânia também não está disponível para se dar por vencida, preparemo-nos para um conflito duradouro (como, aliás, desde o início aqui se alertou). 

Adenda
Segundo esta notícia, «Moscovo fatura agora quase mais 90 por cento do que há um ano [nas suas exportações de energia para os 27 países da UE]», mercê do aumento de preço, que mais do que compensa a redução da quantidade. Ou seja, as sanções funcionam em benefício do sancionado, que se dá mesmo ao luxo de ameaçar com redução das suas exportações! Uma gritante contradição.

domingo, 21 de agosto de 2022

Não dá para entender (25): Estranha ausência


Realizou-se ontem a inauguração da restaurada "catedral velha" de Quelimane (Moçambique), um importante legado histórico do património arquitetónico luso-moçambicano, edificada no século XVIII, que se encontrava à beira da total ruína, sendo a recuperação devida a uma bem-sucedida iniciativa cívica de moçambicanos e portugueses. 
No entanto, apesar dessa ligação especial do referido monumento a Portugal e de termos sido um dos países doadores de contribuições financeiras que permitiram custear a realização da obra, a embaixada portuguesa em Moçambique não se fez representar no festivo evento, ao contrário dos embaixadores de outros países doadores, como a Noruega e os Estados Unidos. Ora, a sua presença impunha-se tanto mais quanto é certo que a visita dos presidentes de Portugal e de Moçambique, que chegou a ser anunciada, não pôde concretizar-se.

O MNE em Lisboa deve uma explicação sobre esta estranha ausência.

Adenda
Sobre o restauro da velha catedral ver este artigo que, junto com Maria Manuel Leitão Marques, escrevi para o Público - e que torna ainda mais incompreensível a ausência do nosso embaixador da inauguração

O que o Presidente não deve fazer (31): Interferência nos partidos

Não é de saudar a ida do Presidente da Repúblicaa a uma realização política do PSD, pelo contrário.

No nosso sistema cosntitucional, o PR não é eleito com base em candidaturas partidárias e, uma vez eleito, representa a República, ou seja, a coletividade política no seu conjunto, na sua expressão política multiforme. Por isso, a participação de MRS na iniciativa do PSD constitui uma manifesta violação da sua obrigação de neutralidade partidária. Muito menos lhe cabe "puxar" por um partido, por sinal aquele de que é oriundo, interferindo no livre jogo partidário, favorecendo-o contra os demais. 

Nenhum partido pode ter o privilégio de beneficiar publicamente dos favores presidenciais.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Pobre língua (22): Banalização do erro

Quando um semanário como o Expresso, num artigo assinado por duas jornalistas, escreve "séniores", em vez de "seniores", ecoando o erro que se vai generalizando nos comentadores desportivos, dá vontade de perguntar se as autoras, seguramente com curso superior, pronunciam a palavra tal como a escrevem, acentuada na primeira sílaba. Provavelmente também dizem e escrevem "júniores"...

Se a língua sofre destes maus tratos na imprensa de referência, é de temer o pior...

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Stars and stripes (7): A imprudência de Washington

Depois de ter provocado a Rússia com a extensão da Nato à Ucrânia, contra o estatuto de neutralidade desta - e criando um excelente pretexto para a invasão russa -, Washington resolveu provocar também a China com a inesperada visita da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, a Taipé, que mesmo a imprensa normalmente amistosa considera incoerente

Não se poderia imaginar melhor meio de solidificar a aliança entre Moscovo e Pequim!

Adenda
Um leitor comenta que «é preciso ser realmente muito arrogante e muito estúpido» e que «hoje à noite, Putin abre uma garrafa do melhor champanhe que tenha por lá». Concordo.

Adenda 2
Um leitor pergunta se a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, também vai a Taipé, na peugada de Nancy Pelosi, e comenta que o «alinhamento acrítico da UE com a política externa dos Estados Unidos torna a ideia de autonomia estratégia da União uma verdadeira farsa». Concordo!

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Acuso: Património público em ruínas

Os três edifícios do lado direito na foto, localizados no sítio do Farol, ilha da Culatra, à entrada da Barra de Faro - Olhão, são património público, sob jurisdição da Administração dos Portos de Sines e do Algarve, e encontram-se abandonados e em processo de ruína. Há mais dois edifícios nas mesmas condições.

Se o Estado não precisa deles, como parece, porque não os aliena ou concessiona a qualquer entidade de interesse público? O abandono e a ruína é que não são solução. Um Estado que deixa arruinar o património público não merece a confiança, nem os impostos, dos cidadãos.

Adenda 
Um leitor argumenta que «é do interesse do Estado que essa ilha fique tendencialmente desabitada», pelo que «o interesse do Estado é de facto que todos os edifícios na ilha caiam progressivamente em ruína, e não que sejam utilizados». Concordo que a Culatra e demais ilhas-barreira nunca deviam ter sido ocupadas, mas foram-no, havendo na Culatra três núcleos habitacionais, entre eles o Farol. Ora, as tentativas dos governos Sócrates e Passos Coelho de demolir as construções ilegais - que, aliás, não incluíam o núcleo original do Farol, onde se encontram os tais edifícios públicos - falharam de forma humilhante para o Estado. Com os governos de António Costa tal propósito foi esquecido, revelando que, passadas estas décadas, ele se tornou politicamente inviável. De resto, mesmo se fosse intenção do Estado desfazer-se daqueles edifícios, a solução seria demoli-los e renaturalizar o terreno, e não abandoná-los. Não há pior imagem para o Estado do que o património público em ruínas.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (39): "De súbditos a cidadãos"

Acaba de ser publicado, em versão eletrónica (a que se seguirá a versão impressa), o livro De súbditos a cidadãos, do Vintismo à atualidade, que reúne as quatro comunicações apresentadas por outros tantos autores no colóquio com o mesmo nome realizado em outubro de 2020, no âmbito das comemorações dos 200 anos da Revolução Liberal, numa parceria entre a Universidade Lusíada / Porto e o município do Porto.

A essas comunicações os coordenadores juntaram um estudo sobre o primeiro "catecismo constitucional" publicado entre nós, em 1820, cujo texto (de autor anónimo) é igualmente reproduzido, como exemplo de uma prática de educação cívica nos primórdios do constitucionalismo, seguindo o exemplo de França e da Espanha.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Amanhã vou estar aqui (11): Bicentenário da Constituição de 1822, na Feira do Livro de Coimbra

1. Amanhã, sexta-feira, pelas 21:00, vou estar na Feira do Livro de Coimbra - que este ano regressou à Praça do Comércio, na Baixa da cidade (programa completo AQUI) -, para falar do bicentenário do constitucionalismo entre nós, junto com o meu colega e coautor José Domingues, a propósito da Constituição de 1822, saída da Revolução Liberal de 1820, que vai fazer 200 anos em 23 de setembro deste ano e de que a CRP de 1976 é herdeira em muitos aspetos.

Trata-se de um dos grandes bicentenários nacionais a assinalar este ano, junto com a independência do Brasil, a realização das primeiras eleições parlamentares e a morte do principal protagonista da Revolução Liberal e das Cortes Constituintes, Manuel Fernandes Tomás.

2. Fazemos uma história do nascimento dessa nossa primeira Constituiação e descrevemos os seus traços fundamentais no 1º volume da nossa trilogia sobre o Bicentenário da Revolução Liberal I - Da Revolução à Constituição, Lisboa, Porto Editora, 2020 (imagem acima).
Note-se que Coimbra (cidade, câmara municipal e Universidade) é tudo menos alheia a esta história, como mostrámos no nosso livro 'Há Constituição em Coimbra': no bicentenário da Revolução Liberal, Coimbra, CMC, 2020 (imagem abaixo). 
Bem perto da Feira do livro, as ruas Ferreira Borges e Fernandes Tomás e, mais acima, a de Borges Carneiro (da Sé Velha ao Museu Machado de Castro), testemunham a devida homenagem da cidade aos heróis de 1820-22.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Regionalização (9): Não é bem assim!

Com base na opinião de um constitucionalista, e aparentemente com a concordância do Presidente da República, o Público considera que o referendo sobre regionalização já não poderá ter lugar, dado que ele teria de ser precedido de uma lei-quadro que precisa de maioria de 2/3, o que se torna impossível com a oposição do PSD.

Há aqui, porém, um equívoco. Segundo a Constituição, a lei-quadro da regionalização - que, aliás, já existe desde 1991 (aprovada numa AR com maioria absoluta do PSD...) e não foi revogada nem caducou com o referendo de 1998 - só precisa de maioria absoluta. O que precisaria de maioria de 2/3 seria somente o modelo de designação do órgão executivo das autarquias regionais, nos termos resultantes da revisão constitucional de 1997. Todavia, uma disposição transitória dessa mesma revisão (art. 298º) estabelece explicitamente que «até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 3 do artigo 239.º [o que até agora não aconteceu], os órgãos das autarquias locais são constituídos e funcionam nos termos de legislação correspondente ao texto da Constituição na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro», o que obviamente salvaguarda o regime estabelecido para as regiões na referida lei-quadro de 1991. Por conseguinte, só se se pretendesse alterar esse regime (e não se vê porquê...) é que seria necessária uma maioria de 2/3.

Em conclusão, não é por razões jurídicas, mas sim políticas (como argui AQUI), que o referendo sobre a descentralização regional pode ter sido "assassinado" pelo novo líder do PSD (com indisfarçável aplauso do PR)...

Adenda
Um leitor comenta malevolamente que constitucionalista e PR se deixaram «confundir pelo sua fobia anti-regionalização». O problema, quanto ao PR, está em que, incumbindo-lhe velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições da República, ele não pode deixar-se tomar por nenhum fundamentalismo político-doutrinário contra uma instituição prevista na Constituição, tornando-se cúmplice do continuado incumprimento desta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Guerra na Ucrânia (44): Quanto mais longa, mais penosa

1. O Financial Times informa que a Alemanha incorreu em défice comercial externo, pela primeira vez desde há três décadas. Entre as causas deste défice avulta a subida do custo das importações de energia e outras commodities, em consequência da guerra da Ucrânia e das sanções ocidentais à Rússia.

Esta má notícia, particularmente negativa num país habituado a considerar-se uma potência comercial superavitária, vem somar-se a outras, como a inflação também em níveis máximos de décadas, a necessidade de reativação de centrais elétricas a carvão (recuando na transição energética), o anúncio de próximo racionamento de gás. 

O quadro pode tornar-se ainda mais preocupante, se a própria Rússia, revertendo a lógica das sanções, continuar a reduzir o abastecimento de gás aos países da União...   

2. Nestas condições, não será improvável que a opinião pública alemã se torne cada vez menos disponível para ser "vítima colateral" de uma guerra que ameaça prolongar-se indefinidamente e que, quanto mais se prolonga, mais triunfos territoriais proporciona ao invasor e mais custos vai envolver na recuperação pós-bélica da Ucrânia, neste momento já estimada em cerca de 700 000 milhões de euros (que também vai impender em boa parte sobre os contribuintes alemães). 

Se esta evolução negativa se mantiver, vai seguramente acabar por impor-se a alternativa de uma cessação negociada das hostilidades, a fim de interromper a sucessão e acumulação de perdas, cada vez mais dolorosas para a parte vencida.

Amanhã vou estar aqui (10): A política de comércio externo da UE


Amanhã de manhã, vou participar, mais uma vez, no Colóquio de Verão luso-brasileiro, promovido pelo Associação de Estudos Europeus da FDUC, intervindo no painel sobre Economia e Comércio Internacional (programa do evento, que hoje se inicia, na página referida). 
Proponho-me falar sobre os mais recentes desenvolvimentos da política de comércio externo (e de IDE) da UE, que acompanho regularmente, e em particular sobre o importante acordo UE-Mercosul, cuja ratificação está em risco.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Regionalização (8): Assassinato a frio

Não deixa de ser surpreendente que o novo líder do PSD tenha anunciado friamente a "morte" da regionalização no Porto, provavelmente a cidade mais favorável ao avanço da descentralização regional (incluindo nas hostes do PSD e entre os seus "autarcas" municipais) e a que mais teria a ganhar com ela, como capital da região Norte. 

Claramente, além de denegar a Costa a hipótese de um enorme trunfo político nesta legislatura, Montenegro paga o preço da necessária simpatia do inquilino de Belém, assim como de Cavaco Silva (conhecidos adversários da regionalização), e da inclusão na sua equipa dirigente de intransigentes inimigos da criação de autarquais regionais. 

Também para o PSD, o poder está em Lisboa e, para o conquistar, não se pode hostilizar a capital.

Adenda
Um leitor objeta que nem a lei das regiões nem a convocação do referendo precisam do voto do PSD, bastando a maioria absoluta do PS, sem contar com outros partidos adeptos da descentralização regional. Sendo isso verdade, não é menos verdade que, com a oposição política do PSD, o referendo seria muito provalmente negativo, sendo, portanto, irresponsável convocá-lo. Só se fosse para arrumar definitivamente a questão e apagar esse capítulo constitucional, há quase meio século por cumprir

Outras causas (7): Contra o império do automóvel

1. Na quinta-feira passada, ao final da tarde, demorei quase uma hora no trânsito supercongestionado do Porto, para ir de Aldoar à estação de Campanhã, tendo perdido o comboio para Coimbra. 

O motorista da Uber, brasileiro, comentava sobre a irracionalidade do regresso em força do automóvel à cidade, depois da pandemia, apesar da enorme subida do preço dos combustíveis, e dos seus custos em tempo e poluição ambiental. 

Lamentavelmente, em vez de aproveitar a subida da cotação internacional dos combustíveis para impulsionar medidas contra o uso do automóvel e pela poupança de combustível, em prol da agenda climática, da qualidade de vida urbana e da balança comercial externa, o Governo optou por reduzir a carga fiscal, aliviando o seu impacto sobre o consumo de combustíveis. Além de socialmente regressivo, esse bónus fiscal não contribui para a redução do uso do automóvel e para a necessária poupança de combustível.

2. Como venho comentando há muitos anos, existe entre nós uma manifesta relutância em tomar as medidas necessárias para travar a invasão automóvel das cidades, que hoje são comuns em muitos países, nomeadamente as seguintes:

    - aumentar o IUC anual, tornando a posse de automóvel mais custosa;

    - acabar com o estacionamento gratuito, a começar nos estabelecimentos públicos, devendo o custo do estacionamento passar a entrar na equação de custos da posse de automóvel;

    - alargar as áreas vedadas ao trânsito nos centro das cidades e multiplicar as faixas e vias reservadas a transportes públicos;

    - melhorar os transportes públicos, incluindo itinerários gratuitos entre parques de estaciomento na periferia e o centro das cidades, e favorecer a solução dos automóveis partilhados;

    - introduzir portagens eletrónicas no acesso às cidades e no acesso aos centros urbanos.

O combate ao império do automóvel nas cidades passa necessariamente por tornar mais onerosa a sua posse e utilização, enfrentado o comodismo individual e o poderoso lobby automóvel. Trata-se, aliás, da única solução equitativa, indemnizando a coletividade pelas pesadas "externalidades negativas" geradas pela utilização do automóvel individual.

Adenda
É incompreensível que, nestas recomendações para Portugal, o FMI proponha ao aumento do IMI (imposto anual sobre as casas) e não faça o mesmo para o IUC (imposto anual sobre os automóveis), apesar das enormes "externalidades negativas" destes.

sábado, 2 de julho de 2022

Antes que seja tarde (3): A questão da sustentabilidade do SNS

1. Não deixa de ser curioso que, numa conjuntura crítica de alguns serviços de saúde, a ministra da Saúde esteja a ser acusada de "coveira" do SNS por comentadores e políticos da direita que nunca morreram de amores por ele e que, pelo contrário, sempre defenderam, por razões político-doutrinárias, um sistema de saúde alternativo, baseado na liberdade de escolha dos utentes entre prestadores dos setores público, social e privado.

Não faltam também os habituais comentários críticos à esquerda, segundo os quais tudo se resume a falta de pesssoal e ao subfinanciamento do SNS, em consequência da maléfica opção do PS por uma política de rigor orçamental e de contenção do défice e da dívida pública, sem se quererem dar conta de que o substancial aumento de pessoal e do financiamento dos últimos anos não resultou em aumento correspondente de consultas, exames e cirurgias.

A questão, a meu ver, é que o SNS padece crescentemente de problemas estruturais geradores de ineficiência e de desperdício, que não são resolúveis nem com medidas de contingência avulsas nem com "despejar dinheiro" sobre eles.

2. Como tenho defendido anteriormente em várias ocasiões (nomeadamnte na série de artigos sobre os 40 anos do SNS aqui no Causa Nossa), entre os referidos fatores contam-se os seguintes:
    - acumulação no Ministro da Saúde da política de saúde e da gestão do SNS, sobre quem recaem todos os problemas e dificuldades deste, politizando-os;
    - deficiente contratualização de cuidados e de custos entre a gestão central do SNS e as entidades prestadoras (hospitais, etc.) e inconsequência do incumprimento dos contratos;
    - falta de avaliação de desempenho de gestores, serviços e profissionais, incluindo para efeitos de remuneração diferenciada; 
    - insuficência dos cuidados primários e transformação das urgências hospitalares em porta de entrada massiva dos utentes no sistema de saúde;
    - inexistência de uma base nacional de dados de todos os utentes, o que gera repetição redundante de exames e tratamentos;
    - irrefletida redução do horário semanal de trabalho na função pública para as 35 horas, que privou o SNS de milhões de horas de trabalho normal por ano e desarranjou os ciclos de turnos de serviço; 
    -  acumulação generalizada de emprego no setor privado, que faz com que em muitos hospitais, as salas e equipamentos de cirurgia só funcionem de manhã, com evidente subutilização de recursos; 
    - instrumentalização dos hospitais como serviços de apoio social a pessoas que já não carecem de internamento, mas que não dispõem de apoio familiar;
   - acumulação de funções de direção de serviços no SNS e em empresas de saúde privadas, em manifesto conflito de interesses, a que se tem somado recentemente a despudorada participação de alguns deles em campanhas publicitárias das respetivas empresas privadas (como referido em post anterior);
    - complacência do Estado com o malthusianismo e com o abuso de poderes das ordens profissionais, especialmente da Ordem do Médicos, transformadas em sindicatos oficiais das respetivas profissões, à custa das suas missões públicas de fiscalização e de disciplina profissional;
    - papel deletério da ADSE, gerida pelo próprio Estado, como exemplo de um sistema de saúde alternativo ao SNS, baseado no autofinancimento, na separação entre a entidade financiadora e os prestadores dos cuidados de saúde, na liberdade de escolha dos utentes e na prontidão dos cuidados de saúde.

É fácil ver que a maior parte deste fatores derrotam a vontade reformista de qualquer ministro da Saúde, por maior que ela seja - o que, aliás, não tem sequer abundado há muito tempo! 

3. Com o tempo, tenho vindo a ponderar se um SNS de tipo britânico como o nosso, de gestão centralizada e baseado no papel tendencialmente exclusivo do Estado como financiador e prestador de cuidados (agravado pelo imprudente abandono das PPP) é compatível com a idiossincrasia nacional relativa à tradicional ineficiência da gestão pública, ao débil sentido da ética do serviço público e da separação entre interesse público e interesses privados, ao hipercorporativismo profissional das ordens, ao abuso irresponsável do que é gratuito, como se não custasse dinheiro, etc.

Forçoso é constatar que o SNS vai reduzindo a sua base social de utentes, correndo o risco de, a breve prazo, ser o serviço de saúde apenas dos que não beneficiam da ADSE ou de seguros de saúde, cada vez mais numerosos. A prosseguir este desenvolvimento, o SNS arrisca-se a perder apoio social e político como serviço supostamente universal financiado pelos impostos de quem o não utiliza.

4. Votei militantemente o SNS na Constituinte de 1975/76 e a sua criação legislativa em 1979; como juiz do Tribunal Constitucional ajudei a salvar o SNS da tentativa de extinção por um Governpo da AD (PSD e CDS) nos anos 80; tenho pugnado ao longo dos anos pela sua consolidação e pelo seu aperfeiçoamento. Mas, como se retira deste post, estou a ficar cada vez mais cético quando à viabilidade do modelo vigente.

Quanto mais tarde se assumir que existe uma questão de sustentabilidade social e política (e não somente orçamental) do SNS, mais penosa será a sua reforma.


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Antes que seja tarde (2): Reduzir a inflação

1. A inflação continua a sua escalada na Europa e em Portugal, batendo records de há muitos anos e aprofundando o seu impacto negativo sobre o poder de compra, o valor das poupanças, as rendas e os preços da habitação, a confiança na economia, etc.

Proporcionada por uma prolongada política monetária facilitista do BCE e por políticas orçamentais expansionistas nacionais, apesar da forte retoma económica, e estimulada pela guerra da Ucrânia (subidas dos combustíveis e de commodities alimentares), a escalada dos preços exige medidas efetivas, quer na frente monetária (que o BCE só agora iniciou, e timidamente), quer na frente das políticas de rendimentos, sob pena de criação de um espiral inflacionista sem controlo.

2. O facto de a guerra da Ucrânia estar para durar não permite alimentar ilusões sobre a persistência prolongada de fatores favoráveis à subida dos preços nem sobre o risco sério do seu agravamento endógeno, pela pressão para a atualização de salários e pensões em função da inflação. 

Quanto mais tardias forem essas medidas (subida dos juros, travagem nas subidas de salários e pensões, restrição do crédito ao consumo, etc.), mais duras elas terão de ser no futuro e mais penosas serão as suas consequências, designadamente a eventualidade de uma recessão económica.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não dá para entender (25): A "salsada" aeroportuária

1. Poucas semanas depois de "convidar" o PSD a indicar a solução para o novo aeroporto, o Governo veio anunciar uma solução-surpresa, sem sequer informar previamente o líder do PSD, que só no final desta semana assume o seu cargo, expondo-se à justa crítica deste.

Um pouco mais de consistência era bem-vinda!

2. Quanto à solução agora adotada, o Governo retoma a solução Portela+Montijo, mas não como alternativa ao novo aeroporto, como tinha sido proposto pela ANA/Vinci, sendo agora uma solução temporária, enquanto o novo aeroporto, agora ressuscitado, e a localizar em Alcochete, não estiver operacional, substituindo Lisboa.

Para além de não prevista no contrato de concessão, a adoção de uma solução transitória (Montijo) vai fazer acrescer os respetivos custos aos do novo aeroporto. O País vai pagar um pesado investimento adicional, por irresponsável demora política na decisão sobre o novo aeroporto.

3.  A decisão de optar por Alcochete, também do outro lado do Tejo, para a localização do novo aeroporto, faz certamente rejubilar o lobby financeiro-imobiliário que desde o início apostou nessa solução para instalação de uma "sucursal" da capital, com proveitos de milhares de milhões de euros, mas condena definitivamente o País a uma solução aeroportuária territorial e demograficamente descentrada e que arrasta consigo a necessidade de um gigantesco investimento nos acessos rodo-ferroviários, incluindo uma nova travessia sobre o Tejo.

Em vez de reduzir a "salsada" política do novo aeroporto, esta nova decisão só serve para a aumentar.

Adenda (1/7)
Embora condenando o Ministro pela precipitada decisão à revelia do Primeiro-Ministro e das prometidas negociações com a oposição, um leitor lamenta a revogação da nova solução, por concordar com o «regresso à ideia de um aeroporto de raiz para substituir a Portela» e por lhe parecer que é necessária uma solução transitória para responder ao enorme congestionamento de Lisboa que aí vem. Estou inteiramente de acordo com a retoma da ideia de um novo aeroporto, que nunca deveria ter sido abandonada, em favor da alternativa Portela+Montijo que a ANA/Vinci atravessou por interesse próprio e que o Governo Costa I erradamente validou -, para agora abandonar, perdidos mais cinco anos. O que tenho por seguro é que, na enorme "salsada" política em que o problema se transformou, o Governo não pode avançar com nenhuma solução sem tentar um acordo com o PSD, incluindo a abertura a uma eventual alternativa à errada solução de Alcochete para o novo aeroporto.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Concordo (22): Acabar com a água a baixo custo

Concordo inteiramente com esta proposta do regulador público setorial para alinhar o preço da água pelo menos pelos seus custos, acabando com a sua subsidiação, como sucede em muitos municípios, excepto o apoio às famílias de menores recursos, por se tratar de um «serviço de interesse económico geral» (SIEG), a que todos devem ter acesso, independentemente dos recursos económicos.

Para além de a subsidiação geral fomentar o desperdício de água, que se vai tornando um bem escasso, à medida que a seca se agrava, não se comprende que os municípios gastem recursos financeiros a subsidiar a água de quem não precisa e depois invoquem falta dinheiro para financiar outras tarefas coletivas (transportes públicos, escolas, etc.).

Como há muito defendo, ressalvadas as tarifas sociais, nas public utilities o princípio deve ser o do utilizador-pagador.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Não dá para entender (24): Fraude impune no SNS

Não se compreende porque é que um caso de fraude no registo de falsas presenças de médicos em estabelecimentos do SNS, alegadamente cometidas em 2019 - o que constitui tripla infração (criminal, disciplinar e deontológica) - ainda está por apurar e por punir três anos depois.

O que é estranho é que médicos possam dar-se fraudulentamente como presentes ao serviço, sem deixarem rasto de nenhuma atividade (consultas, exames, cirurgias, visita a doentes, simples reuniões, etc.), o que quer dizer que os estabelecimentos do SNS não procedem a nenhum controlo diário da atividade do seu pessosal. Depois admiremo-nos com a lamentável e onerosa ineficiência do SNS!

Assim, o SNS não vai sobreviver!

Guerra na Ucrânia (43): Escalada

A CNN dá conta de uma investigação do New York Times, segundo a qual agentes da CIA e comandos dos Estados Unidos e de outros países da Nato estão na Ucrânia, atuando «no terreno, com objetivo de coordenar o fornecimento de armas e informação à Ucrânia, bem como treinar as forças de Kiev para a frente de batalha»
Não é preciso sublinhar os riscos desta escalada de intervenção ocidental no conflito, desmentindo, aliás, as garantias dadas até agora às opiniões públicas sobre os limites externos da ajuda ocidental. Por um lado, essas forças podem tornar-se alvo de ataques russos; por outro lado, com o avanço da invasão russa no território e as crescentes perdas das forças ucranianas, pode ser irresistível a tentação de intervenção direta das forças especiais ocidentais em operações de combate. 
Qualquer das hipóteses poderia constituir o rastilho para um temível confronto militar entre a Rússia e Nato, que obviamente não ficaria contido dentro dos limites da Ucrânia.

Adenda
Um leitor considera que, havendo um explícito compromisso ocidental de «não deixar cair a Ucrânia», a intervenção militar da Nato se torna inevitável quando for claro que a Kiev está mesmo a perder a guerra e que não há nenhuma esperança realista de reversão da situação. Ominosa perspectiva...

Adenda
Há também a registar a escalada na violência da invasão russa contra alvos civis. O bombardeamento de um centro comercial em Kremenchuk, mesmo que este pudesse alojar combatentes, ultrapassa o tolerável em operações bélicas. Com atos destes, a Rússia não aprofunda somente a condenação ocidental da invasão, arriscando-se também a mobilizar a condenação em países por esse mundo fora, que até agora se têm mantido à margem da guerra.

domingo, 26 de junho de 2022

Corporativismo (24): Linha vermelha

1. Ao anunciar publicamente que, por discordar da lei da eutanásia, não irá nomear um representante para a Comissão de monitorização da aplicação da lei, a Ordem do Médicos ultrapassa uma linha vermelha que o Estado não pode consentir. 

De facto, é a autoridade do Estado, na sua forma mais elementar, que fica em cheque, se uma instituição pública, criada pelo Estado para o exercício de poderes públicos, se recusar a cumprir uma estrita obrigação estabelecida por lei da República.

Esta provocação da OM não pode vingar!

2. Estranhando que este despautério da OM não tenha suscitado nenhuma reação oficial, como se fosse irrelevante, parece óbvio que neste caso, dada a sua gravidade extrema, o Governo não pode "assobiar para o ar", como tende a fazer quando a autoridade do Estado é desafiada por poderosas corporações, tendo de atuar de forma exemplar (como já fez anteriormente, ao ordenar, pela primeira vez,  uma inspeção à Ordem dos Enfermeiros).

Se, chegado o momento, a OM concretizar a sua ameaça, há duas vias separadas ou conjuntas para lidar com a situação: (i) solicitar ao Ministério Público que, no uso do seu poder (e obrigação) de defesa da legalidade, recorra à justiça administrativa para obrigar a Ordem a cumprir a lei, mediante injunção judicial; (ii) equacionar a hipótese extrema de extinção legal da Ordem, por desafio à ordem democrática.

Vai sendo tempo de meter na ordem as ordens fora da lei.

Adenda
Um leitor objeta que «a OM foi criada para certas funções, e o Estado não a pode forçar, retroativamente, a também cumprir outros objetivos, pelo que o Estado não tem o direito de impor à OM novas obrigações, que não estejam previstas na lei da sua fundação; estar representada na [tal] comissão é um direito, e não um dever, da OM». Discordo em absoluto. Mesmo que se tratasse de novas funções - o que não é o caso, pois as ordens sempre foram chamadas a aconselhar o Estado na sua área de atuação -, as entidades públicas têm as atribuições definidas por lei, que as pode alterar livremente. Uma tarefa imposta por lei a uma entidade pública não é um direito - é uma obrigação! 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (42): União Europeia sofre e erra

1. Como era de temer, a UE transformou-se, por desígnio próprio, na principal "vítima colateral" da guerra por interposta Ucrânia entre a Rússia e a Nato. 

A última "baixa em combate" parece ser a política de transição energética da União. Perante a redução de fornecimento do gás, que a própria Rússia decidiu, em contra-ataque às sanções europeias, vários países europeus (Alemanha, Áustria e Países Baixos) decidiram retomar ou reforçar a produção de eletricidade a partir da queima de carvão. Como não há nenhuma perspetiva de a guerra e as sanções e contrassanções terminarem a curto prazo, o mais provável é que este regresso ao carvão venha afetar seriamente as metas e o calendário de descarbonização estabelecidas pela União.

Um sério contratempo.

2. Mais grave pode ser o caso da imprudente restrição aplicada pela Lituânia ao trânsito de mercadorias entre a Rússia e o seu território separado de Kalininegrado (no mar Báltico).

Alegadamente em cumprimento das sanções aplicadas pela União, essa restrição viola, porém, um sólido princípio de direito comercial internacional sobre a liberdade de trânsito de mercadorias entre territórios descontínuos de um país através de terceiros Estados interpostos. Ora, as sanções comerciais da União contra a Rússia visavam naturalmente a importação de produtos russos para dentro da União, o que não é o caso. 

Compreende-se mal, por isso, este impulso para suscitar mais uma escalada no confronto com a Rússia, que pode levar esta a declarar a situação como um casus belli, de imprevisíveis consequências, seguramente nefastas.

Adenda
Pelo que digo acima (2.), concordo obviamente com esta opinião, no DN de hoje, sexta-feira, de que a UE deve «rever, sem demoras, a sua posição em relação a este bloqueio parcial» do trânsito para Kalininegrado. Pior que errar é não retificar prontamente os erros. Dar à Rússia razões de queixa legítimas nesta guerra é um erro crasso.

Adenda (2)
A Alemanha denunciou como «ataque económico» a redução do fornecimento de gás pela Rússia, mas a acusação não faz nenhum sentido. Quem desencadeou a guerra económica contra a Rússia, reagindo à invasão russa da Ucrânia, com sanções económicas sem precedentes, incluindo a ameaça de corte total de importação de energia, foi a UE (junto com os EUA e outros países da Nato); por isso, a Alemanha não pode vir queixar-se, se a Rússia responde no mesmo plano. Tal como na invasão da Ucrânia, em relação à Rússia, também nas sanções económicas, "quem vai à guerra, dá e leva".


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Era o que faltava! (4): Direito à greve em forças de segurança?

O diretor nacional da PSP terá declarado que o pessoal do SEF que seja integrado na PSP mantém o direito à greve.

Lê-se e é difícil acreditar! Que os agentes do SEF gozassem de tal direito, era grave, tratando-se de uma polícia, e admitindo expressamente a Constituição que serviços e forças de segurança não gozem desse direito (mesmo quando tenham sindicatos). Mas, que depois de extinta aquela polícia e de integrados os seus membros na PSP, estes mantenham tal direito, quando os agentes originários desta polícia não dispõem (e bem!) dele (salvo o pessoal civil), criando uma dualidade de regimes dentro da mesma força, é um contrassenso.

O mais grave disto tudo é que, vários dias depois de emitidas, estas declarações não mereceram nenhum comentário ministerial. Há alguma coisa que nos escapa, ou queremos mesmo pôr em causa a segurança pública nas fronteiras?!

Era o que faltava! (3): A Ordem dos Advogados acima da lei?!

Não sendo advogado, não me tinha dado conta de que o Boletim da Ordem dos Advogados informa que «não adopta [sic] o novo Acordo Ortográfico», apesar de este estar em vigor desde 2015, sendo de presumir que a Ordem também o não faz na sua correspondência oficial e nos processos administrativos, disciplinares, judiciais, etc., em que intervém. O site da Ordem insere a mesma rejeição do AO (imagem acima)

Considero uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República por parte de uma entidade pública, criada pelo Estado e encarregada do desempenho de tarefas públicas de regulação e disciplina da profissão de advogado. Nem sequer pode ser invocado o facto de não haver sanção prevista para o incumprimento da ortografia oficial, sobretudo tratando-se de um organismo público empenhado na observância do Estado de direito, sabendo-se que a ordem jurídica, a começar pela Constituição, inclui outras normas "imperfeitas", desprovidas de sanção, sem que isso torne menos ilícita a sua violação.

Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?

Adenda
Um leitor bem-humorado comenta que, para ser coerente, a OA deveria passar a usar a ortografia vigente em 1926, aquando da sua criação. Observo, porém, que nessa altura, já a ortografia tinha sido objeto de uma "abusiva" norma oficial em 1911, pelo que a Ordem deveria, sim, regressar à ortografia livre anterior à República... 

Adenda 2
Pergunta provocatória de um leitor: «como é que os advogados podem exigir nos tribunais o cumprimento da lei, se eles próprios se recusam a cumpri-la?» Boa!

Adenda 3
Outro leitor objeta que o AO «não é uma lei», pelo que a crítica não se justificaria. Vê-se logo que não se trata de um jurista, pois, se o fosse, saberia bem que os acordos internacionais vigoram diretamente na ordem interna e criam direitos e obrigações, sem necessidade de transposição legislativa. Mais, de acordo com a interpretação dominante, os acordos internacionais prevalecem sobre lei interna incompatível com eles, assim respeitando o compromisso do Estado com terceiros países. Por isso, o AO nem sequer pode ser validamente afastado por uma lei, o que torna o seu incumprimento ainda mais grave do que se se tratasse de uma lei interna. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Corporativismo (23): Até a IL se retrai?

1. Penso que faz sentido esta proposta da IL, de suprimir, pura e simplesmente, uma parte das ordens profissionais, por nenhum interesse público de regulação e disciplina profissional as justificar, não passando de entidades de representação e de defesa oficial de interesses profissionais, que não devem ter lugar numa democracia liberal e numa economia de mercado baseada na liberdade profissional, na liberdade de associação e na concorrência na prestação de serviços profissionais.

Não deixa de ser estranho que o fim do corporativismo oficial do chamado Estado Novo em 1974 não só não tenha sido acompanhado da supressão das organizações de representação corporativa oficiais, mas antes tenha dado lugar à sua proliferação continuada, sem princípios nem coerência, às mãos das maiorias políticas do PS e do PSD, sem distinção. Um contrassenso político e doutrinário!

2. Atualmente, entendo, porém, que não basta suprimir umas quantas ordens profissionais injustificáveis. 

Ao fim destas décadas de descabelado malthusianismo, protecionismo e monopólio corporativista das ordens profissionais em geral, assim como de ingerência em reivindicações laborais, como se sindicatos fossem, perdi qualquer esperança - que me esforcei por alimentar durante muito tempo -, de conciliar a representação e a defesa oficial de interesses profissionais - que caracteriza as atuais ordens - com a liberdade profissional, a concorrência no mercado de serviços e os direitos dos clientes. 

Tal conciliação tem-se revelado impossível na prática, dado o manifesto conflito de base entre o interesse público na regulação e disciplina profissional e a representação e defesa corporativa / sindical de interesses profissionais, sempre empenhada no protecionismo e no alargamento do exclusivo profissional.

3. Por isso, entendo que, mesmo nos poucos setores onde, numa economia de mercado, se justifica a regulação e disciplina pública especial das profissões - aqueles onde há "falhas de mercado" qualificadas e / ou que operam na prestação de "serviços de interesse económico geral" (SIEG) -, as ordens devem deixar de ter funções de representação e defesa de interesses profissionais  - que numa democracia liberal devem caber a associações de iniciativa dos interessados (como nas demais profissões) -, devendo, por isso, ser reconvertidas em autoridades de regulação independente (em relação ao Governo e em relação às profissões), em que os profissionais não devem ter mais do que uma representação minoritária.

É essa metamorfose estrutural das ordens que penso que devia ser coerentemente defendida hoje em dia.

Adenda
A mais ridícula ordem profissional é, a meu ver, a Ordem dos Economistas, criada em 1998, visto ser evidente que não há nenhuma "falha de mercado" nesse setor de serviços profissionais, nem as empresas precisam de nenhuma proteção especial contra os seus economistas. É um escandaloso caso de "desvio do poder" legislativo e de instrumentalização do poder público para a proteção de interesses profissionais. O certo, porém, é que houve um Governo que a instituiu e um PR que a promulgou sem, ao menos, o protesto de um veto político.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Ai, Portugal! (8): O desastre anunciado do SNS


1.
Estes dois gráficos, reproduzidos do Público de hoje, deveriam provocar um sobressalto em todos os que continuam a acreditar que o SNS constitui uma peça essencial do Estado social e uma condição de vida decente entre nós.

Eles  mostram porque é que o SNS se afunda, apesar da continuada injeção de mais dinheiro e de mais recursos, desmentindo todos os que pensam, sobretudo à esquerda, que os seus problemas se resolvem com mais investimento e mais meios humanos. 

A questão é simples: apesar do expressivo acréscimo de recursos humanos nos últimos anos, com o inerente aumento de encargos orçamentais, a produtividade (serviços por profissional) diminuiu mais de 1/4  e, consequentemente, o custo médio dos serviços aumentou exponencialmente (para além da perda de capacidade de resposta à procura). 

Como é bom de ver, não é possível manter este rumo, nem em termos sanitários nem em termos orçamentais!

2. Entre as causas desta evolução negativa não se pode descontar o peso da mal-avisada redução do horário de trabalho semanal no setor público para as 35 horas em 2015, a qual, além da perda de milhões de horas de trabalho por ano, desarranjou os critérios de turnos e de escalas de serviço.

Mas, como tenho assinalado muitas vezes, o fator determinante da atávica ineficiência do SNS está obviamente na sua deficiente gestão central e na falta de avaliação regular de gestores, de serviços e de profissionais, com consequências sobre a manutenção nos cargos e sobre a  remuneração. Organizações cujo financiamento e remuneração dos seus profisonais não dependem do seu desempenho estão condenadas à ineficiência e ao desperdício de recursos.

Ou o SNS leva uma volta na sua organização e gestão, ou a sua crise não tem solução.

3.  Quem beneficia da degradação da eficência no SNS e da diminuição da sua capacidade de resposta é evidentemente o setor privado, que vê subir continuamente a sua quota de cuidados de saúde prestados. Aposto que no setor privado a produtividade não diminuiu, pelo contrário!

O problema maior é que, à medida de que o SNS aliena utentes e reduz a base social dos seus beneficiários, há cada vez mais pessoas que, continuando a financiar com os seus impostos o SNS, que não utilizam, suportam também os custos dos seus cuidados de saúde privados. Não é difícil imaginar que esta evolução não favoreve o apoio social e político ao SNS. 

Quanto esta situação ultrapassar uma determinada margem, o SNS estará perdido.