sábado, 25 de fevereiro de 2023

Lisbon first (28): O Governo da capital

 

Benificiando de cerca de 2300 milhões de euros de fundos, o PRR é um maná para Lisboa.

Como se não bastasse ter as vantagens de alojar as instituições centrais do Estado - ministérios, tribunais centrais, institutos públicos, empresas públicas, museus, teatro nacional, ópera, etc. -, a capital beneficia também da generosidade do Estado no que respeita a despesas que, segundo normais regras de descentralização territorial, não lhe deviam caber, como o metropolitano, as ajudas aos transportes públicos urbanos, a habitação, etc. etc. Por isso, já não surpreende mais este privilégio na repartição do PRR.

Visto de longe, o Governo da República parece ser, antes de mais, o Governo da capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não dá para entender (30): Deriva corporativista

1. Depois de, ao longo destas décadas, ter sido campeão na proliferação e banalização das ordens profissionais (até há uma Ordem dos Economistas!), o PS vai mais longe, propondo de novo ressuscitar a Casa do Douro como "associação pública", ou seja, como entidade de representação profissional oficial, unicitária e obrigatória da viticultura da região demarcada do Douro, regressando a 1932, nos primórdios do corporativismo do Estado Novo, e ao arrepio do modelo de autorregulação interprofissioal vigente, com base em associações profissionais livres, aliás comum a todas as regiões demarcadas.

É evidente que, para ser congruente e respeitar o princípio da igualdade, o PS deveria propor também a recriação do antigo Grémio dos Exportadores e restaurar o modelo corporativo nas demais regiões vinícolas. Como o não faz, torna-se evidente que a recriação da Casa do Douro como organismo oficial obedece a uma motivação puramente regionalista e oportunista.

2. Aprofundando a minha posição anticorporativista, venho defendendo nos últimos anos (por exempo, AQUI e AQUI) que a representação oficial de certas profissões não é compatível com a democracia liberal, baseada na liberdade e no pluralismo de associação, na separação entre interesse público e interesses privados e na exclusiva dedicação da Administração pública à defesa do interesse público.

Mesmo não indo tão longe, creio ser consensual a ideia de que o monopólio de representação profissonal oficial só se pode justificar, caso ela seja imprescindível ou pelo menos necessária para o desempenho das tarefas públicas confiadas pelo Estado às entidades profissionais, no quadro da autorregulação e autodisciplina profissional, como se tem entendido, até agora, ser o caso das ordens profissionais.

É certo que, para tentar contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a uma anterior tentativa de  recriação da Casa do Douro como entidade pública associativa, a projeto do PS entrega-lhe agora o desempenho de algumas tarefas públicas, como o registo oficial dos viticultores e o respetivo cadastro predial, expropriadas ao Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro (IVDP), mas não se vê em que é a execução de tais tarefas puramente burocráticas exige a representação oficial, unicitária e obrigatória dos viticultores do Douro. Não existe nenhuma correlação orgânica entre as duas coisas.

A suposta causa não justifica a consequência.

3. Independentemente da questão constitucional, não vejo como é que politicamente esta deriva corporativista do PS pode ser compatível com as suas próprias fontes doutrinárias como partido social-democrata, designadamente o liberalismo, o republicanismo, a democracia e os direitos sociais. 

Nenhuma dessas fontes legitima a opção corporativista e várias delas a contrariam. Numa democracia liberal e republicana, a representação profissional releva da liberdade de associação e o Estado cuida exclusivamente do interesse público e não de interesses de grupo, por mais politicamente relevantes que estes sejam.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Não concordo (42): O Estado senhorio

1. Um aspeto negativo no pacote governamental de medidas para a habitação, que não tem merecido a devida atenção, consiste em fazer impender sobre o Estado central - e não sobre os municípios, como deveria ser -, as dimensões "prestacionais" do direito à habitação, incluindo a disponibilização de terrenos para construção, a oferta pública de casas para arrendamento, ou a tomada de arrendamento de casas privadas para subarrendamento. 

Com tais medidas, além de regulador do setor e da utilização de instrumentos fiscais e financeiros, o Estado torna-se também um grande senhorio nacional, arrendando, reparando casas, exigindo a cobrança de rendas, entrando em litígios judiciais, etc., etc.

Trata-se de uma visão hipercentralista e governamentalista, que contraria a solução municipalista que é adotada em geral noutros países.

2. Sucede, porém, que a Constituição não se limita a consagrar o princípio da descentralização territorial do poder público, mas também o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado só deve assumir as tarefas públicas que não possam ser bem desempenhadas pelas coletividades infraestaduais, designadamnte os municípios.

Ora, não existe nenhuma razão para pensar - aliás, tendo em conta os exemplos alheios - que os municípios, se dotados dos meios financeiros apropriados, não estariam em melhores condições, desde logo, a proximidade, para inventariar e responder às carências habitacionais nos seus munícipes.

Aparentemente, o Governo quis tirar rápido partido da "cornucópia" do PRR para fazer um "brilharete político", cooptando essa tarefa em susbtituição dos municípios. Além do princípio constitucional da subsidiariedade, escandalosamente ignorado, a outra vítima é a consistência do discurso do Governo e do PS em prol da descentralização

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (53): A guerra também é nossa

Nesta entrevista de hoje ao Público sobre a Guerra da Ucrânia, em que se mostrou inteiramente alinhado com o discurso bélico ocidental, o Primeiro-Ministro subscreveu também a posição de que só Kiev «tem legitimidade para definir qual é o momento e quais são os termos e as condições para negociar a paz», pelo que os aliados devem abster-se de interferir nesse processo.

Permito-me discordar desssa posição. Um ano depois de iniciado, o conflito é, cada vez mais, uma guerra também dos Estados Unidos e, especialmente, da UE: no fornecimento de armas e no treino da sua utilização, no acolhimento dos refugiados, no financiamento maciço do orçamento e da economia da Ucrânia, sem falar no custo astronómico da sua reconstrução pós-bélica. Quanto mais a guerra se prolonga, mais esses custos se elevam, à custa dos orçamentos e dos contribuintes europeus.

Ora, se a guerra também é nossa, porque a pagamos, não podemos deixar de ter uma palavra sobre o momento e as condições para lhe tentar pôr termo.

Adenda
Um leitor entende que a Europa está "tramada", porque o Presidente dos EUA «vai querer prolongar a guerra até às eleições presidenciais do próximo ano», utilizando-a como trunfo eleitoral; desta vez na guerra de Washington contra o velho inimigo do século passado, «não há soldados americanos a morrer» e os Estados Unidos até estão a ganhar economicamente com ela. Penso que tem razão.

Não concordo (41): O caso do arrendamento compulsivo

1. Independentemente da questão da sua desconformidade constitucional (sobre que me pronuncio abaixo), considero um erro político a proposta de arrendamento compulsivo das habitações "devolutas" ao Estado no novo "pacote" de políticas de habitação.

Por um lado, os custos da sua implementação - dificuldades práticas de aplicação e, previsivelmente, um elevado contencioso entre proprietários e Estado - podem vir a superar as suas discutíveis vantagens. Por outro lado, sendo a falta de confiança no Estado por parte de investidores e proprietários um dos principais fatores do défice de construção e de oferta no mercado de arrendamento, uma medida tão intrusiva e tão "ideológica" como esta só pode agravar essa desconfiança. Desde há muito se sabe que a insegurança e a imprevisibilidade quanto aos direitos de propriedade são fatais para o investimento.

Um provável tiro pela culatra, portanto.

2. Quanto à questão constitucional, não concordo nem com quem entende que se trata de uma «medida equiparada à expropriação» (e, logo, inconstitucional à partida, por falta de previsão na CRP), nem com quem defende, inversamente, que não há nenhum problema, em virtude da «função social da propriedade».

Não tenha dúvidas de que, embora o direito à habitação (tal como os demais direitos sociais) seja exigível apenas ao Estado (em sentido amplo) e não aos proprietários privados, a sua realização por aquele pode, porém, justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias de terceiros, como é o direito de propriedade e a liberdade contratual. Ponto é que se preencham os requisitos cosntitucionais da necessidade e da proporcionalidade das restrições em causa.

Ora, o que pode justamente questionar-se é saber se o mesmo objetivo - ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento - não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento.

Tendo a pensar que sim.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Economia social de mercado (5): Cogestão, porque não?

1. Estive hoje no lançamento deste livro em Coimbra por duas boas razões: porque prezo muito o autor e porque o tema me interessa, académica e politicamente.

Trata-se de uma abordagem acessível de um tema pouco debatido entre nós, a saber, a representação dos vários stakeholders, e não somente dos stockholders (acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades. A questão tem a ver sobretudo com a participação de representantes dos trabalhadores da empresa, como sucede há muitas décadas na Alemanha ("cogestão"), solução que entretanto se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos.

Em Portugal, porém, apesar de a própria Constituição impor a participação dos trabalhadores no governo das empresas públicas - o que, aliás, não é, em geral, cumprido -, o tema não tem entrado na agenda política nem sindical.

2. Desde há muito que defendo a participação dos trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão (por exemplo, AQUI, AQUI, AQUI e AQUI), considerando que essa solução faz todo o sentido no âmbito de uma "economia social de mercado", onde as empresas não podem limitar-se a "criar valor" para os acionistas. 
Tenho de constatar, porém, que o partido político que deveria lutar por essa reforma, que é o PS, não tem pegado nessa bandeira da social-democracia europeia - sendo essa uma das falhas que apontei no programa eleitoral do PS de 2022 -, e nem sequer a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos pelo partido ou a submeter à consideração do Conselho Económico e Social.
O facto é que não vejo explicação para tal opção política!

Adenda
Verifico que no seu projeto de revisão constitucional o PS propõe o alargamento do direito à representação dos trabalhadores aos órgãos sociais das empresas privadas, nos termos a definir por lei, embora sem adiantar nenhuma explicação para esta pequena revolução político-doutrinária. Resta saber se esta importante inovação vai merecer o investimento político necessário para recolher o apoio do PSD.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Este país não tem emenda (34): Puro egoismo proprietário

Não deixa de ser estranha a convocação de um referendo sobre o alargamento do estacionamento pago - apesar de a Constituiação, por razões óbvias, proibir os referendos sobre matéria tributária (em que se incluem as taxas) -, quando era evidente que a rejeição venceria por larga margem, como se verificou.

Em Portugal, a generalidade das pessoas continua a entender que não tem de incluir os custos de estacionamento no custo do automóvel, por achar que tem direito a estacionamento gratuito. Ora, (i) não existe nenhum direito privado a ocupar livremente o espaço público e (ii) e enquanto houver estacimento gratuito, as cidades vão continuar a ser invadidas por automóveis, tornando a vida urbana num inferno.

O referendo de Benfica é uma manifestação de puro egoismo proprietário e de completa insensibilidade perante a degradação da qualidade de vida urbana.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Não concordo (40): Confessionalismo escondido com o gato de fora

1. É fácil vencer um argumento contra um adversário inventado, como neste texto sobre a polémica do "palco-altar" da JMJ projetado pela CML.

Com efeito, que eu saiba, nenhum constitucionalista acusou de inconstitucionalidade «emprego de dinheiros públicos na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa», porque isso seria tonto. Mas uma coisa é Estado "cooperar" na realização da JMJ - como, aliás, apoia outras iniciativas sociais e culturais da Igreja Católica -, outra coisa é, como assinalei aqui, substituir-se à Igreja Católica (ou a qualquer outra) na planificação e construção de equipamentos especificamente religiosos (neste caso um altar, com cruz e tudo, e uma capela), o que só pode ser exclusivo delas.

2. Se, em nome de um oximoro conceptual, como "laicismo cooperativo" (e já agora, seletivo), se considerasse admissível tal transferência de responsabilidades religiosas para Estado, então teríamos de admitir, aliás ao abrigo do princípio da igualdade e não discriminação, que ele assumisse iguais incumbências em relação a outras religiões, dedicando-se, por exemplo, à planificação, financiamento e execução de sinagogas, mesquitas, templos evangélicos, etc.

Por mais flexibilidade que possa ser dado ao princípio da separação entre Estado e as igrejas (sem exceção), dela deve estar, porém, excluída a possibilidade de ele comportar o desempenho pelo primeiro de tarefas especificamente religiosas das segundas. Separação quer dizer, pelo menos, a cada lado a sua própria jurisdição, sem invadir a do outro (mesmo que este agradeça...).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Praça Schuman (14): Democracia e governo da UE

No sábado que vem, dia 11 de fevereiro, vou participar neste programa de pós-graduação sobre direito da UE, com uma palestra sobre a democracia e o sistema de governo da União.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (52): Uma receita para o desastre

1. A notícia de que o Chega exige que o Governo declare a Rússia como Estado terrorista permite sublinhar que há um óbvio plano em marcha para envolver diretamente a UE na Guerra da Ucrânia

Na verdade, impulsionado por Kiev e pelos "falcões da guerra" dentro da UE (Polónia, países bálticos e escandinavos), está em curso avançado um processo tendente a: (i) fazer entrar a Ucrânia rapidamente na UE, mesmo estando em guerra (o que é insano), e deixando para trás os países balcânicos, que há muito esperam a adesão, e a (ii) levar as instituições da União e todos os Estados-membros a qualificar a Rússia, não apenas como agressor, mas também como "Estado terrorista".

2. Que importância é que tem essa qualificação? Decisiva. 

Se conseguirem os seus objetivos, a primeira coisa que a Ucrânia faria como membro da União seria ativar a "cláusula de solidariedade", estabelecida no art. 222º do TFUE, segundo o qual, «em caso de ataque terrorista» contra um Estado-membro, «a União mobiliza todos os meios ao seu dispor, incluindo meios militares disponibilizados pelos Estados-membros».

Ou seja, um guerra direta entre a UE e a Rússia, preto no branco, que rapidamente poderia degenerar em III Guerra Mundial, com o possível arrastamento dos EUA e da China.

3. Que o "partido da guerra", com a conivência dos partidos da direita europeia, não recua perante essa ominosa perspetiva, assusta. Mas que a esquerda europeia em geral e os socialistas em especial possam ser cúmplices, isso ultrapassa o entendimento.

Felizmente, não parece que em Portugal nem o Governo nem o PS tenham ensandecido.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (18): O legado do jornal Público

Ao censurar severamente, com toda a razão, um lamentável artigo do Público sobre a questão da construção da altar da Jornada Mundial da Juventude pelo município de Lisboa - que eu tinha já assinalado AQUI, apontado a violação da separação constitucional entre o Estado e as igrejas -, o Provedor do Leitor veio resgatar o legado de jornalismo crítico e respeitador do pluralismo de opinião do diário fundado por Vicente Jorge Silva. 

Ainda bem: aquela peça de jornalismo acrítico e subserviente não podia ficar impune.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

+ Europa (71): UE atrasa-se

1. Como mostra o quadro acima, sobre as previsões económicas do FMI para 2023, mais uma vez a União Europeia, embora contrariando as piores previsões anteriores, vai crescer bem menos do que os seus competidores na frente do grupo das maiores economias, atrasando-se de novo em relação aos Estados Unidos e à China.

Obviamente, a guerra da Ucrânia tem um papel nisto, dado o seu forte impacto negativo na economia europeia (energia mais cara, perda do mercado russo) e o seu impacto positivo tanto nos Estados Unidos (indústria de armamento, exportações de energia) e na China (energia russa mais barata e aumento das exportações para o mercado russo).

O problema é que essa assimetria não se afigura ser passageira...

2. Curiosamente, a economia russa também vai voltar a crescer, contornando as pesadas sanções ocidentais e desmentindo os apressados prognósticos iniciais da Comissão Europeia, de rápida derrota de Moscovo na guerra, por efeito do desmoronamento da sua economia.

A UE não somente não conseguiu os seu objetivos, mas também está a pagar um preço elevado no campeonato global do crescimento económico.

Adenda
Um leitor nota que destas grande economias, só o Reino Unido tem uma previsão de queda, e pergunta porquê. Muito provavelmente, por causa do Brexit.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Bloquices (23): A "falsa" democracia política

1. Um dos primitivos argumentos do pensamento antidemocrático era o de que a democracia política, baseada nas eleições, dá o mesmo peso a todos, a elite e a plebe, os letrados e os analfabetos, os ricos e os pobres que nada têm perder, os cidadãos empenhados e os desinteressados, e assim por diante. O governo da maioria prevalecia sobre o "governo dos melhores".

Desde há muito tempo, também a extrema-esquerda - em geral eleitoralmente pouco expressiva, mas boa a explorar os descontentamentos sociais - argumenta que uma coisa são as maiorias eleitorais, que governam, e outra, as alegadas "maiorias sociais", ou seja, a coligação de organizações e movimentos que comandam as reivindicações sociais, e que são tudo menos maioritárias, política ou sociologicamente. 

2. Sem surpresa, tal é a lógica visceralmente antidemocrática deste discurso da líder do BE, tentando fazer esquecer a enorme derrota que sofreu nas últimas eleições.  

O antigo argumento antidemocrático - a elite contra a maioria da plebe - só mudou de sinal. Agora são as minorias nas ruas que devem prevalecer sobre a maioria das urnas.

Era o que faltava (7): Oportunismo político

Embora sem defender a recuperação integral do tempo de serviço dos professores durante o período de intervenção financeira externa para efeitos progressão na carreira (como tontamente defendeu Rui Rio), o atual líder do PSD diz que tem dúvidas sobre as "quotas de avaliação" em vigor

Mas trata-se de um "namoro" puramente oportunista aos sindicatos em greve, pois Montenegro sabe bem que nenhum Governo responsável as pode dispensar numa carreira plana e com uma ficção de avaliação, como é a dos professores, como pequeno travão à promoção por simples antiguidade até ao último escalão, com encargos orçamentais incomportáveis em remunerações e pensões.

O apoio oportunista de um candidato a primeiro-ministro a lutas sindicais que põem em causa a sustentabilidade das finanças públicas é puramente lamentável. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Não concordo (39): Sofisma constitucional

1. Tal como já tinha discordado do primeira decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão da despenalização da eutanásia, volto a não concordar com a decisão de hoje, que também considera inconstitucional o novo diploma da AR.

Lamento o severo rigorismo com o TC aborda esta questão, apesar de se tratar de proteger uma liberdade pessoal merecedora de proteção jurídica em vez de repressão penal, ou seja, a liberdade de não ser forçado a viver em condições humanamente insuportáveis, indignas ou degradantes

2. Julgo, aliás, que esta decisão se funda num sofisma, sobre uma alegada indefinição da expressão «sofrimento físico, psicológico e espiritual», quanto a saber se as três referidas vertentes são cumulativas ou se basta uma delas. Julgava ter aprendido na escola primária que "e" quer dizer cumulativo e "ou" quer significar alternativo.

De resto, se há tantas normas incriminadoras cheias de conceitos indeterminados (basta folhear a parte especial do Código Penal), deixando a sua "densificação" aos tribunais, não se percebe porque as normas despenalizadoras os não podem utilizar. Devia ser o contrário...  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Praça da República (72): Facada na Constituição

1. Por mais justificada que seja a perplexidade pública com o custo "pornográfico" do altar erigido pelo município de Lisboa para as jornadas internacionais da juventude católica, muito mais grave é, porém, a profunda "facada" na Constituição que consiste na própria edificação de um altar religioso, com cruz e tudo, por uma coletividade pública, em frontal violação do princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas

Tal como não não compete ao Estado ou outras coletividades públicas promover ou organizar cerimónias religiosas, muito menos participar nelas, também não lhes compete construir equipamentos de culto, seja com a cruz ou com o crescente.

2. Ora, este atentado a um princípio constitucional básico não tem suscitado a mínima objeção política nem institucional. 

O Presidente da República, que fala sobre tudo e mais alguma coisa, silencia; os partidos laicos representados no governo do município de Lisboa, incluindo os da oposição de esquerda, assobiam para o ar; o Ministério Público, entretido que está na sua guerrilha diária contra o Governo e os políticos, por via do seu órgão oficioso, o Correio da Manhã, nem pensa em impugnar este ato público atentatório da legalidade constitucional vigente.

Além de uma inqualificável cumplicidade política, esta conspiração de silêncio perante um flagrante delito de grave violação da Constituição constitui uma imperdoável cobardia institucional.

Adenda
Um leitor não vê «mal nenhum» no apoio do Estado e da CML à jornada da juventude e considera que o poder público deve «respeitar a religião». Inteiramente de acordo! Porém: (i) num Estado laico não cabe a um município usar o dinheiro dos contribuintes para construir equipamentos religiosos, substituindo-se às respetivas igrejas e (ii) o melhor meio de o Estado respeitar TODAS as religiões e os seus crentes é não privilegiar NENHUMA.

Adenda 2
Mensagen de um leitor: «para sacramentar o ato de submissão da República à ICAR [Igreja Católica Apostólica Romana], reabilitanto o Estado Novo, Marcelo e Moedas deveriam oficiar como de acólitos do Papa na missa campal da tal Jornada». Tendo em consideração a desfaçatez do caso do altar, receio bem que já não seja de excluir nada...

Adenda 3
É indecente a maneira expedita como um periódico com a responsabilidade jornalística do Público "arruma" a questão da afronta à laicidade do Estado, negando-a sumariamente, com base na opinião de um único constitucionalista, por sinal católico. Um pouco mais de jornalismo, sff.

Adenda 4
Tenho uma solução para o problema, que parece um "ovo de Colombo", mas não precisa de partir nada. Consiste no seguinte: (i) o projeto municipal deixaria de incluir a cruz e a designação de altar; (ii) a cruz ficaria a cargo da Igreja, que a colocaria no palco para a cerimónia religiosa com o Papa, transformando-o em altar; (iii) terminada a cerimónia religiosa, a cruz seria retirada, voltando o palco a ser um equipamento municipal multiusos (incluindo à disposição de outras igrejas), como deve ser. Penso que esta solução satisfaz todos os interesses e valores em questão, quer o interesse do munícípio e da Igreja em proporcionar as melhores condições logísticas à JMJ, quer a proibição constitucional de adoção de símbolos religiosos em novos edifícios públicos

Adenda 5
Em relação à Adenda precedente, um leitor objeta que «o palco tem o estrado a nove metros de altura, e umas longas rampas a afastá-lo do público, pelo que nenhum espetáculo se poderá fazer lá». A ser assim, e a não haver correção do projeto, temos um pseudopalco de uso único por 5 milhões?? Mesmo para um município que parece nadar em dinheiro, como o de Lisboa, é uma escandalosa megalomania. Os munícipes de Lisboa aceitam isto, sem se revoltarem?!

Era o que faltava (6): ABC constitucional

O Chega quer o presidente da CM Lisboa no parlamento (ou seja, na AR), para explicar gastos com um evento com o Papa, de que Lisboa é anfitriã. 

Que os tais gastos exorbitantes carecem de explicação, designadamente um palco de cerca de 5-cinco-5 milhões de euros (!?), é evidente. Só que o parlamento não tem legimidade para pedir explicações a um líder autárquico, que só responde politicamente parante o respetivo parlamento municipal. A autonomia municipal não é somente perante o Governo, mas sim perante o Estado em geral. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Revisão constitucional (4): Propostas para rejeitar

1. Neste artigo sobre a revisão constitucional na área da justiça, da autoria do advogado João Correia, só não discordo liminarmente de uma das quatro sugestões, sobre a criação de tribunais de âmbito local para pequenas causas, em substituição dos atuais julgados de paz, que pode merecer uma consideração mais atenta.

Duas outras ("recurso de amparo" e proliferação de tribunais de 2ª intância também em matéria de facto) podem mobilizar o interesse profissional dos advogados, aumentando a litigância judicial, mas não ajudam em nada o sistema judicial. A sugestão restante, de uma espécie de "câmara corporativa" para a área da justiça, só pode comprender-se por ataviso corporativo.

2. Quanto ao "recurso de amparo", sempre fui contra, quer por ele me parecer redundante num sistema como o nosso, onde existe fiscalização concreta de constitucionalidade, a cargo de todos os juízes (ao contrário do que sucede na Espanha e na Alemanha, onde aquele recurso existe), quer porque ele se iria transformar numa instância de recurso normal, congestionando irremediavelmente o Tribunal Constitucional. Sei bem que o projeto de revisão do PSD também prevê tal recurso, a meu ver impensadamente, mas confio em que no final tal proposta não venha a vingar.

Também não vejo nenhuma viabilidade na proposta de substituição das atuais Relações por tribunais de 2º instância de âmbito distrital com competência genérica, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto, o que hoje só está constuticionalmente garantido no âmbito criminal.

3. Por último, parece-me totalmente descabida a ideia de um órgão oficial de representação conjunta de juízes, Ministério público e advogados, o que, além da intrometer a advocacia onde não é chamada, se traduziria numa clara violação da separação de poderes, afetando a autonomia e indepedência dos juízes. 

Gostaria de ter escrito isto (31): Facilitismo de esquerda

«Ou seja, [com o fim dos exames nacionais no secundário] a segregação do nosso sistema educativo tornar-se-á mais acentuada, diminuindo a sua equidade, prejudicando-se essencialmente os mais desfavorecidos, que verão as suas hipóteses de receberem uma preparação para o ingresso no ensino superior — que a literatura científica aponta como o mais realista mecanismo de mobilidade social — ainda mais comprometidas. 
De tudo o que foi dito resulta ser difícil compreender como é que um Governo que afirma a importância da equidade na educação toma esta opção». (Deste artigo no Público de ontem).

Já me tinha manifestado contra essa medida na adenda a este post

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Campos Elísios (11): Esquerda irresponsável

Ao juntar-se à extrema-esquerda (e à extrema-direita) na rejeição da proposta do governo francês para o aumento ultramodesto da idade da aposentação dos 62 para os 64 anos (em Portugal está acima dos 66 anos...), o Partido Socialista francês mostra mais uma vez o erro fatal das alianças políticas com a extrema-esquerda.

Sendo o aumento da idade de aposentação essencial para minorar o perigoso desequilíbrio financeiro do sistema de pensões em França e travar o preocupante agravamento da dívida pública nacional e dos seus custos orçamentais, a irresponsável oposição do PS confirma que ele deixou de ser um partido de esquerda moderada e de vocação governativa, que durante décadas foi, tornando-se um apêndice da frente de esquerda, liderada pela França Insubmissa.

+ Europa (70): Amigos, amigos...

1. Não vejo como é que a UE pode deixar de combater a deriva protecionista antieuropeia dos Estados Unidos, com o programa de apoio maciço à transição energética reservado às empresas americanas, o que pressiona as empresas europeias a migrar para o outro lado do Atântico, com a inerente perda de investimento, de emprego e de exportações na Europa.

Na verdade, esta nova vantagem competitiva desleal vem acrescentar-se às que já existiam, nomeadamente energia mais barata, que a guerra da Ucrânia veio agravar, não sendo esta, aliás, a única desvantagem europeia resultante da invasão russa e das sanções e contrassanções dela resultantes (como mostrei AQUI e AQUI). 

2. É evidente que, nestas circunstâncias, não existe um level playing field na competição económica entre a Europa e os Estados Unidos, levando ao aumento da disparidade de crescimento dos dois lados do Atlântico, ficando a UE cada vez mais para trás.

Se não houver mudança de políticas em Washington, a União tem de responder na mesma moeda. Amigos, amigos, negócios à parte...

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Às avessas (6): Os coveiros da escola pública

Com milhares de alunos das escolas públicas sem aulas, por causa das greves dos professores, e sem perspetivas de solução à vista, não admira que as escolas privadas esgotem as vagas, como aliás AQUI se tinha advertido.

Apesar de encherem a boca hipocritamente com a "defesa da escola pública", a verdade é que, com as suas greves por objetivos maximalistas e orçamentalmente incomportáveis - que, aliás, não seguem no setor privado - os sindicatos dos professores só contribuem para a afundarem... 

Adenda
Além de abusiva, a forma de greve self-service declarada pelos sindicatos, deixando a cada grevista a escolha do seu tempo de greve em cada dia, é prositadamente o mais disruptiva possível das escolas e da vida dos alunos.  Pretender que esta greve tem por objetivo defender a escola pública, só pode ser uma "piada" política de mau gosto.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Bloquices (22): Contra a UE

É manifesto que a proposta do Bloco, de proibir a aquisição de habitação em Portugal por "não-residentes", incluindo outros cidadãos da União Europeia, não tem a mínima viabilidade política, por afrontar direitos fundamentais dos cidadãos europeus, a começar pelos próprios portugueses, como o de residir e adquirir casa e terras onde quiserem e o de fazer investimentos onde desejarem no território da União, direitos sobre os quais Portugal não fez nenhuma reserva no momento da adesão. 

Com esta ideia politicamente oportunista, o Bloco não deixa de revelar, mais uma vez, a sua velha hostilidade política e ideológica à integração europeia, incluindo aos princípios constitucionais essenciais em que assenta a União.

Adenda
Um leitor objeta que nalguns países da União Europeia é mesmo proibido os não-residentes adquirirem casa. É verdade, mas trata-se de países, como a Dinamarca e Malta, que fizeram a competente reserva no momento da adesão à UE, o que não foi o caso de Portugal e todos os demais.

Adenda 2
Um leitor que se apresenta como «simpatizante» do Bloco diz que a hostilidade do partido à UE devia ser mais efetiva, porque, sendo um partido anticapitalista, não pode deixar de combater a «integração imperialista europeia». Estava habituado a identificar essa linguagem com o PCP, não com o BE, mas afinal ambos integram a mesma bancada parlamentar no Parlamento Europeu...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Não concordo (38): Exageros constitucionais

Apesar das minhas reservas sobre o mecanismo de verificação prévia da idoneidade política dos novos governantes, não concordo nada com as dúvidas, aqui expostas, acerca da sua legitimidade constitucional, quanto ao inquérito que foi tornado público, por alegada violação de direitos, liberdades e garantias pessoais (acesso indevido a dados pessoais) e políticos (limitação do direito de acesso a cargos políticos).

Discordo por várias razões:

    - não se trata de criação de impedimentos ou sequer de incompatilidades no acesso a um cargo público, mas somente de colher elementos para formação da decisão do Primeiro-Ministo ou do ministro competente, conforme os casos, que é um ato politicamente discricionário (ninguém tem direito a ser nomeado membro do Governo);

    - na sua maior parte, as perguntas sobre situação económica, fiscal e fnaceira e sobre possíveis conflitos de interesses replicam idêntico questionário noutras instâncias políticas, por exemplo na nomeação dos membros da Comissão Europeia, e versam sobre temas a que o futuro governante teria de responder nas declarações de rendimentos e de interesses que já são legalmente obrigatórias;   

 - só responde ao inquérito quem quer, podendo os convidados recusar-se liminarmente a responder, desinteressando-se da nomeação, não se tratando, portanto, de nenhuma obrigação; 

    - por último, as respostas ao inquérito não são, nem podem ser, tornadas públicas, apenas se podendo deduzir, em caso de nomeação, que elas foram globalmente satisfatórias sob o ponto de vista do critério político de nomeação. 

Não invoquemos a Constituição em vão, para condicionar indevidamente a necessária salvaguarda da ética e da responsabilidade política e da confiança nas instituições.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Amanhã vou estar aqui (14): 25 anos depois!

Amanhã vou estar na inauguração de mais uma edição do curso de pós-graduação em Direitos Humanos, que deixou de ter modo presencial desde a pandemia, mantendo-se em modo online, por a maior parte dos inscritos serem de fora.

Este ano tem um significado especial, pois se trata da 25º edição anual deste curso pioneiro entre nós, cuja criação promovi no final do século passado, e de que ainda sou codiretor e docente, apesar da minha jubilação na FDUC há vários anos. 

Old loves die hard!

Não dá para entender (29): Duplicidade ocidental

O mesmo Ocidente político que, em nome do Direito internacional, justamente condena a anexação russa dos territórios ocupados no leste da Ucrânia (mesmo tratando-se de territórios maioritariamente russófonos a que a Ucrânia recusava a devida autonomia e que desde 2011 flagelava militarmente), não levanta, porém, o mais ténue protesto contra a crescente anexação por Israel da cidade de Jerusalém e da Cisjordânia, incluindo a expulsão dos seus legítimos residentes palestinianos e o levantamento de muros de separação em território alheio. 

E enquanto a Ucrânia beneficia de apoio militar, financeiro e político sem limites dos membros da NATO, e a Rússia é alvo de sanções económicas e políticas sem precedentes, no Médio Oriente é o Estado ocupante que beneficia de todos os apoios ocidentais, enquanto as vítimas da anexação são abandonadas ao arbítrio do poderoso invasor.

Afinal, hipocritamente, há anexações e anexações - depende de serem feitas pelos nossos amigos ou pelos nossos inimigos estratégicos. E há, de um lado, as vítimas que merecem toda a proteção e, do outro, os "réprobos da Terra", que nenhuma merecem - azar dos palestinianos....

Adenda
Comentário de um leitor: «E com o actual governo de Israel lá se vai também o último argumento possível a seu favor, que era ser democrático, diferentemente dos regimes árabes». Tem razão: neste momento, em Israel, é o próprio Estado de direito que está em causa. Mas Israel mostra que a democracia não impede o expansionismo e a anexação territorial...

No bicentenário da Revolução Liberal (46): Celebrando a era constitucional

No âmbito do programa oficial das comemorações do bicentenário do constitucionalismo em Portugal, inaugurado pela Revolução Liberal, a Assembleia da República organiza, no próximo dia 25, o lançamento público de quatro obras sobre o tema ultimamente publicadas pela sua divisão editorial, entre as quais três de que sou coautor, junto como meu colega, Professor José Domingues. A mais recente delas, sobre as primeiras eleições parlamentares da nossa história, em 1822, foi lançada somente em dezembro passado.

Enquanto o deputado (e constitucionalista), Pedro Delgado Alves, apresenta a primeira das referidas obras, os dois coautores encarregam-se da apresentação das outras duas. 

Todos são bem-vindos!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (34): Tirar o tapete ao Governo

Por maior que seja a amplitude do poder de "externalização" de opiniões e comentários políticos pelo Presidente da República, um dos limites elementares deveria ser o de não tomar posição ao vivo em casos de conflito laboral entre os funcionários públicos e o Governo, como sucedeu agora, ao apoiar as reivindicações dos professores, tanto mais que estes negoceiam alavancados por greves rotativas que encerram muitas escolas e deixam milhares de alunos sem aulas. 

Com tais declarações, o PR fortalece obviamente a posição negocial dos sindicatos e debilita a do Governo na defesa do interesse público, tal como ele o vê. E ao sugerir o envolvimento do ministério das Finanças nas negociações, MRS mete mais uma vez a "foice em seara alheia", desrespeitando abusivamente a autonomia do Governo na sua própria organização e na condução dos negócios públicos, pela qual ele responde, em exclusivo.

Privilégios (11): Como é que situações destas persistem?!

1. No domingo passado, o diário Público fazia manchete com a notícia de que há juízes do STJ que passam tão fugazmente pelo lugar, requerendo logo a jubilação, que não chegam a ocupar-se de um único processo

A razão disso está obviamente no facto extraordinário de eles terem direito a uma pensão de valor superior à sua já elevada remuneração (acima da do primeiro-ministro!), pois, além de a pensão ter o mesmo valor daquela, eles deixam de descontar os 11% para a segurança social! 

Assim sendo, ao contrário do que sucede noutras carreiars públicas, por exemplo no ensino superior, em que os profissionais tendem a manter-se no ativo, por vezes até aos 70 anos (idade da aposentação obrigatória), para adiarem a importante redução de rendimento que a aposentação traz, os magistrados judiciais têm, ao invés, um incentivo para saírem logo que possível. Ganhar mais sem trabalhar, é irresistível.

Daí a elevada rotação na composição do STJ e nos demais tribunais superiores, com a inerente perda de produtividade, mercê de juízes que não chegam a "aquecer o lugar".

2. O que é extraordinário é não haver nenhum debate, nem no campo político nem na sociedade civil, sobre este injustificado privilégio, apesar de ele se tornar cada vez mais insustentavel, à medida que o valor das pensões do regime geral se vai distanciando das correspondentes remunerações à saída, quer pela degradação da "taxa de substituição", quer porque a atualização das pensões não acompanha a das remunerações.

Mas é de perguntar se, daqui a uns anos, é social e politicamente tolerável uma situação em que as pensões da generalidade dos portugueses são da ordem dos 50% do valor dos correspondentes vencimentos no ativo, enquanto uma pequena "elite da toga" continua a obter uma pensão mesmo superior à sua elevada remuneração, e beneficiando automoticamente de qualquer valorização superveniente desta.

É evidente que, ao contrário das demais, aquelas pensões nenhuma relação têm com os descontos  dos seus beneficiários para a segurança social. Nisto tudo, onde fica um mínimo de respeito pelo princípio constitucional da igualdade!?

Adenda
Um leitor argumenta que o caso mais escandaloso foi o da minha "correligionária política", a ex-ministra Francisca van Dunen, que nem chegou a ocupar o cargo, tendo acedido ao STJ e sido depois jubilada enquanto exercia funções ministeriais. Isso é verdade, mas, como assinalei na altura, o mal esteve na tomada de posse de um cargo jurisdicional sendo membro do Governo, em óbvia incompatibilidade com o princípio da separação de poderes e da independência política dos tribunais...

Adenda 2
Outro leitor observa que esse privilégio da pensão majorada e automaticamente atualizável vale para todos os juízes, e não somente para os dos tribunais superiores, e também para os agentes do Ministério Público, o que é ainda menos justificável, por estes não compartilharem nem do estatuto nem das responsabilidades dos juízes. Tem razão!