sexta-feira, 1 de março de 2024

Perguntas oportunas (1): Aos israelitas

«Como podem os descendentes dos judeus de Auschwitz transformar Gaza num campo de extermínio?»

Adenda
Comentário de um leitor: «Como podem os israelitas ter eleito – repetidamente – Nethanyahu? Como podem os israelitas(...) concordar com o que as suas tropas estão a fazer em Gaza, e os colonos na Margem Ocidental? Sem reduzir no que quer que seja as responsabilidades pessoais dos políticos como Nethanyahu e comparsas (...), penso fundamental reservar uma quota-parte substancial da responsabilidade à maioria dos cidadãos-comuns. (...) Acho que são demasiadas as vezes em que é insuficientemente valorada (por difícil que fazê-lo possa ser) a responsabilidade colectiva dos povos». Estou de acordo. Alguns dos maiores crimes da história, incluindo os pogroms antijudaicos, tiveram amplo apoio das respetivas coletividades. O que surpreende neste caso é ver um povo que foi vítima das piores perseguições massacrar impiedosamente outro povo, além do confisco do seu território

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

História constitucional (7): Metamorfoses do voto



Em vésperas de novas eleições parlamentares, eis um estudo (mais um da minha parceria com o Professor José Domingues) sobre os diferentes modos de votação nas eleições em Portugal ao longo dos tempos, desde as Cortes medievais até à atual Assembleia da República, assinalando devidamente a revolução que nesse ponto representou, na sequência da Revolução do 25 de Abril, a lei eleitoral de 1974 para a Assembleia Constituinte, eleita no ano seguinte. 

Como se pode ver, desde o inicial voto oral até ao voto secreto em câmara de hoje, o modo de expressão eleitoral da coletividade mudou muito ao longo da história.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (37): A CM de Oeiras tem razão

1. Veio a público um projeto de deliberação do município de Oeiras, visando disciplinar a afixação de propaganda eleitoral no espaço público municipal, proibindo-a em determinadas zonas, como em rotundas e praças.

Penso que que a iniciativa oeirense de disciplinar a selva da propaganda eleitoral no espaço público - que invade passeios, praças e jardins, sem nenhum respeito pelo ambiente urbano - só peca por defeito. Legalmente, a afixação de propaganda política no espaço público deve limitar-se aos locais definidos pelos municípios para esse efeito, sendo proibida fora deles. 

Em vez de rechaçada, corajosa iniciativa municipal de Oeiras deveria, portanto, ser saudada e seguida por todos os demais municípios.

2. E, ao contrário da conceção maximalista da CNE, funcionando como verdadeiro "cartel" interesseiro dos partidos com representação parlamentar, não há nada de inconstitucional naquele regime. Nada na Constituição exige que a liberdade de propaganda política - que, aliás, é um princípio constitucional, sujeito a concretização normativa infraconstitucional, e não um direito fundamental dos partidos, diretamente aplicável, sem limites quanto aos meios, como equivocadamente entende a CNE - dê aos partidos um direito ilimitado de ocupção do espaço público e do domínio público municipal, à custa do direito à livre fruição coletiva desse património público, que ao município cabe assegurar.

O que é lamentável é ver os dois partidos de governo do regime democrático, PS e PSD, a alinhar nessa insustentável e abusiva conceção depredadora do espaço público - sem nenhum paralelo em qualquer país civilizado -, que nestes dias tomou conta das cidades e vilas de Portugal.

Adenda
Um leitora enviou-me o texto de uma petição que está a correr para um disciplina legal mais estrita dos paineis de propaganda política no espaço público, incluindo a sua proibição fora dos períodos eleitorais. Apoio!

Guerra da Ucrânia (59): Macron virou falcão da Nato?

1. A afirmação do Presidente Macron de que não está excluído o envio de tropas da Nato para a Ucrânia é de uma gritante insensatez política. ´

É certo que desde o início esta é uma guerra entre a Nato e a Rússia por interposta Ucrânia. Foi a provocatória proposta de adesão da Ucrânia à Nato, abandonando o estatuto de neutralidade daquela e colocando a segunda a dois passos de Moscovo, que deu o principal pretexto à invasão russa, em nome da segurança nacional. Foi a Nato que fez abortar as negociações entre Kiev e Moscovo mediadas pela Turquia para uma solução política do conflito logo no início da guerra. Tem sido o apoio da Nato em armamento, em logística e em incentivo político, a alimentar a continuação indefinida da guerra. Mas enviar tropas ocindentais para o terreno equivaleria a envolver diretamente a Nato e os seus Estados-membros, incluindo Portugal, na própria guerra com a Rússia, enquanto beligerantes.

2. Estaria manifestamente aberta a porta para a extensão e o agravamento do conflito, com que sonham os círculos mais belicistas de Bruxelas e Washington (e, quiçá, também em Moscovo...). O que surpreende é a iniciativa partir de Paris, porventura para desviar as atenções das dificuldades políticas internas do Presidente francês. 

Em qualquer caso, é um péssimo sinal de que há quem continue a julgar, temerariamente, que esta guerra, chegada onde chegou, pode ter outro desfecho que não uma solução política negociada.

Adenda

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Causa palestina (8): Cinismo ocidental

Blinken diz que os Estados Unidos são contra a ocupação de Gaza por Israel, mas continuam a fornecer todo o apoio logístico e militar à sanguinária ofensiva israelita e a vetar sistematicamente no Conselho de Segurança das Nações Unidas todas as moções a favor de um cessar-fogo

O cúmulo do cinismo político!

Adenda
Sobre a catastrófica situação sanitária em Gaza ver esta denúncia dos Médicos sem Fronteiras.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (36): O "tabu" de Montenegro

O líder do PSD continua a furtar-se a responder ao desafio do PS sobre se viabiliza um governo minoritário socialista, reciprocando o compromisso inverso do líder do PS assumido no debate televisivo entre ambos.

Mas é evidente que não há resposta ao desafio socialista, porque ela seria negativa. Parece óbvio que, se perder as eleições, mas houver uma maioria das direitas (incluindo o Chega), o PSD não resistirá a rejeitar um governo minoritário do PS, somando os seus votos aos do Chega, e a propor-se formar uma "geringonça" de direita, tal como fez nos Açores em 2020.

Porém, este "gritante silêncio" só pode funcionar contra o PSD, dada a incerteza política criada e "fome de poder" a qualquer custo que revela.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (35): Cabeça na areia

1. Esta sondagem eleitoral de ontem não é ainda seguramente decisiva quanto ao desfecho das eleições, dada a diferença relativamente pequena entre as duas principais forças políticas (AD e PS), mas ela reforça a manifesta inviabilidade de uma maioria de esquerda (ficando a soma dos respetivos partidos pelos 33%!).

Neste quadro, não se compreende que o PS continue publicamente a equacionar a hipótese de formar Governo, mesmo não ganhando as eleições, na base de uma tal mirífica maioria de esquerda. Na verdade, como aqui já defendi anteriormente,  estando de todo afastada a repetição de uma "Geringonça", parece evidente que a única hipótese de o PS governar é ganhando as eleições.

2. Por isso, não se compreende que, sendo isto tão óbvio, o PS ainda não tenha alterado o discurso eleitoral, passando a mostrar aos eleitores de esquerda que (i) só pode haver governo de esquerda com a vitória eleitoral socialista e que (ii) a dispersão de votos por outros partidos de esquerda só ajuda à vitória da AD. 

Enquanto a bem concebida e bem executada campanha de voto útil de Montenegro ("só governo se ganhar as eleições") parece produzir frutos à direita, travando o crescimento do Chega e da IL, o PS tarda em  tornar manifesto que "o único voto útil à esquerda é no PS"...


Livro de reclamações (27): A Ana/Porto despreza os utentes

Reclamação que enviei cerca das 19:00 de ontem à ANA (Porto):

Esta tarde tentei várias vezes efetuar na plataforma dos parques de estacionamento da ANA no Porto uma reserva de estacionamento automóvel entre amanhã e domingo, mas nunca consegui concluir a reserva, por impossibilidade de efetuar o pagamento, pois a plataforma nem aceita nem rejeita. 
Tentei telefonar duas vezes, mas sem êxito: da 1ª vez, fui atendido e remetido para o serviço de parques, mas depois ninguém atendeu; da 2ª vez, ninguém chegou a atender. 
Considero que isto não é maneira de tratar os utentes de um serviço público. Se não obtiver uma resposta satisfatória a esta reclamação ainda hoje [ontem], vou dar-lhe publicidade e transmiti-la à autoridade reguladora, para aplicação da devida sanção e indemnização.

A publicidade está dada. A denúncia ao regulador público (Anac) seguirá, ato contínuo.  Quando o concessionário de um serviço público mosta este desprezo pelos utentes, não pode ficar impune.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Economia social de mercado (8): Uma alteração doutrinária no PS

1. Inesperadamente e sem destaque público, o PS veio propor no seu programa eleitoral uma diretiva europeia para a representação dos trabalhadores no governo das grandes empresas.

Sendo uma das mais características instituições da chamada "economia social de mercado" - noção de marca originariamente alemã, mas hoje consagrada no Tratado da União Europeia -, trata-se de compatibilizar a economia de mercado, baseada na livre iniciativa privada e na concorrência, e o Estado social, nomeadamente os direitos dos trabalhadores no trabalho e na empresa, o acesso universal aos "serviços de interesse económico geral (SIEG)" e a participação dos trabalhadores na governação das grandes empresas, de que a Mitbestimmung alemã continua a ser o principal modelo.

2. Defensor desta instituiação há muitos anos (por exemplo, AQUI e AQUI), nunca encontrei no PS, até a proposta de revisão constitucional de 2022, independentemente da sua liderança, a mínima disponibilidade para a adotar, mantendo-se fiel à conceção confrontacional tradicional quanto às relações de poder no seio das empresas.

É certo que, depois de ter sido assumida no referido projeto de revisão constitucional, a proposta não surge agora nos capítulos do programa eleitoral relativos à economia ou ao Estado social, como reforma nacional, mas sim no capítulo sobre a UE, como proposta de diretiva da União, dispensando a sua constitucionalização interna. 

Todavia, a verdade é que o seu profundo significado político não fica desvalorizado. Trata-se efetivamente da confirmação de uma sensível alteração doutrinária do PS - que saúdo.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Direito à habitação (5): Não desta maneira

1. Tanto o PS como o PSD (a que se juntou oportunisticamente o Chega) convergem na proposta de pôr o Estado a garantir o crédito à habitação para as pessoas de menos de 40 anos, independentemente da respetiva condição ecónómica -, uma coincidência política que traduz evidentemente a vontade de ambos os partidos de cativar politicamente essa importante constituency da pequena-burguesia urbana, em que, aliás, ambos sociologicamente assentam. 

Trata-se, portanto, de uma benesse em causa própria.

2. Discordo da tal proposta. 

Primeiro, não vejo nenhuma razão para o Estado apoiar financeiramente o acesso à habitação de toda a gente, incluindo gente abastada. Segundo, penso que a ajuda pública ao acesso à habitação de pessoas carenciadas deve ser feita preferencialmente por via do arrrendamento (dedução de rendas no IRS, subsidiação às rendas), e não da aquisição de habitação própria, a qual implica sempre um constrangimento à mobilidade territorial. Por último, não me parece bem a ideia de multiplicar as situações de Estado-senhorio, ao assumir a posição dos bancos credores, em caso de incumprimento.

Na minha opinião, enquanto houver quem não tenha acesso a habitação condigna, por falta de meios, não faz sentido o Estado gastar recursos a apoiar a chamada "classse média".

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

SNS em questão (27): «Ideia polémica», diz o Expresso

 "Polémica" pode ser, à luz da lente política da direita liberal do Expresso, mas merece todo o meu apoio esta proposta do programa eleitoral do PS, retomando uma ideia imputada pelo semanário a Marta Temido, em 2019, de exigir aos médicos formados no SNS um período de dedicação ao serviço público, antes de mudarem para o setor privado (ou para o estrangeiro), como forma de retribuição da formação de especialidade e correspondente qualificação profissional recebida, "cortesia" dos contribuintes.

De resto, dois anos antes, em 2017, eu já tinha defendido essa ideia aqui no Causa Nossa, nos seguintes termos: 

«Julgo mesmo que os médicos formados pelo SNS deveriam ficar vinculados um certo número de anos ao setor público (salvo havendo redundância) para "retribuir" os custos da sua formação, sendo obrigados a candidatar-se às vagas abertas em qualquer ponto do país. É inadmissível que fiquem desertos concursos no SNS só porque os médicos recém-formados preferem logo locais mais confortáveis e mais rendosos».

Seis anos depois, regozija-me ver esta ideia perfilhada politicamente pelo PS.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (37): O mau precedente açoriano

Apanhado de surpresa pela derrota eleitoral nos Açores, a depois de uma cacofonia inicial sobre o que fazer, revelando não se ter preparado para tal situação, o PS acabou por decidir votar contra o Governo minoritário da AD regional.

Discordo desta decisão: primeiro, a abstençao do PS não implicava nenhum compromisso político de apoio ao Governo, mantendo-se como líder da oposição e conferindo-lhe, pelo contrário, um poder de controlo e, mesmo de veto, desde logo quanto ao orçamento; depois, a rejeição do PS força o PSD a um entendimento com o Chega para a viabilização do Governo, com as inevitáveis implicações na política do novo executivo; por último, e mais importante, o PS afasta-se da doutrina oficialmente defendida por A. Costa em 2015, segundo a qual, como recordei há pouco tempo AQUI, o PS só deveria rejeitar o Governo minoritário da AD, se conseguisse um alternativa de governo de esquerda com apoio parlamentar maioritário (que veio a ser a "Geringonça").

Julgo que entre as reversões do legado político costista (disciplina orçamental, tempo de serviço dos professores, portagens nas antigas autoestradas SCUT, privatização da TAP, etc.) não se devia contar mais esta...

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Não é bem assim (14): Desmentindo uma idea feita

Uma das mais correntes ideias negativas em Portugal é a da baixa confiança no Governo (e nas instituições, em geral). Mas um recente inquérito da OCDE relativo a 2023 sobre a confiança no Governo vem contrariar tal ideia, colocando Portugal em 11º lugar entre os 40 países incluídos, onde se contam as mais avançadas democracias do Mundo, e muito à frente de países como os EUA, a Espanha, o Reino Unido, a Itália e a França.

Não por acaso, entre nós, nem a imprensa nem o comentariado entenderam dever fazer referência a tão importante inquérito. Afinal, o próximo Governo não herda somente a economia e as contas públicas em bom estado, mas também a confiança nas instituições.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Antes que seja tarde (4): Polícia na ordem, já!

Se há lugar onde a indisciplina coletiva, a insubordinação e a greve selvagem são intoleráveis, ainda por cima sob o cobarde pretexto de "doença" coletiva, é nas forças de segurança. É uma contradição nos termos. 

Além da pronta abertura de "inquérito urgente" ao grave incidente, que deve ser acompanhado da suspensão imediata dos implicados, só é de esperar um expedito procedimento disciplinar a concluir com uma exemplar punição, que não pode ser menos do que a expulsão para os organizadores da provocatória rebelião policial.

Ai do País onde os polícias podem insubordinar-se impunemente.

Adenda

Montenegro veio dizer que "ninguém está acima da lei".  É pouco! Por definição, cabe às forcas de segurança fazer cumprir a lei, pelo que são as primeiras a ter de respeitá-la, "sem mas nem meio mas". Num matéria da gravidade destas, um partido de governo não pode ficar por frases de circunstância...

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (36): Em princípio, deve governar quem ganha

1. Através do habitual oráculo do Expresso sobre o pensamento de Belém (cortesia da "sacerdotiza" Ângela Rebelo de Sousa Silva...), ficamos a saber que o PR entende que, na sequência das eleições parlamentares de 10 de março, deve ser Governo o partido que ganhar as eleições (ou seja, o PS ou o PSD), mesmo sem apoio parlamentear maioritário, excluindo implicitamente uma alternativa de Governo encabeçada pelo segundo partido mais votado, em coligação com outros.

Concordo com esta perspetiva, que eu próprio expus AQUI há várias semanas, defendendo que um governo minoritário do partido vencedor das eleições só devia ser rejeitado liminarmente no parlamento, caso haja uma alternativa de governo maioritária -, o que, face às sondagens, não se afigura viável, nem à esquerda nem à direita (se o PSD excluir o Chega, como Montenegro prometeu). Penso que esta clarificação presidencial introduz alguma racionalidade no complexo enigma eleitoral que as sondagens indiciam.

2. Neste quadro, entendo que as coisas ficariam ainda mais simplificadas, se os líderes do PS e do PSD se comprometessem, desde já, a respeitar o referido critério e a não propor nem votar nenhuma moção de rejeição contra o que, de entre ambos, tendo vencido as eleições, se apresentar à frente de um governo minoritário perante o parlamento.

É claro que, nas condições de polarização política existentes, não vai ser fácil, nem porventura duradoura, a vida de um governo minoritário, seja do PS seja do PSD, desde logo quanto ao grande teste político de aprovação do orçamento, logo no final do ano. Mas, entretanto, terão passado os seis meses de defeso na dissolução parlamentar, e o partido de governo na oposição que irresponsavelmente rejeitar o orçamento corre o risco de ser penalizado nas urnas.

Adenda
Um leitor pergunta: «e se o PS ganhar, mas PSD, CDS e IL tiverem mais deputados, embora sem maioria absoluta?» Continua a valer a mesma solução. Não faz sentido substituir o governo minoritário do partido vencedor das eleições por um governo minoritário do partido que as perdeu. Na minha tese, caso perca as eleições, o PSD só poderia vir a ser Governo numa coligação maioritária com o Chega -, o que tem rejeitado terminantemente até agora ("não é não")

Adenda 2
Estando de acordo, em geral, com esta análise de Francisco Assis, julgo que o PS só pode esperar avançar com um governo minoritário se ganhar as eleições, sem rejeição do PSD, se estiver disponível para admitir a hipótese contrária, ou seja, não rejeitar à partida um governo minoritário do PSD, se este ganhar as eleições. Como defendo no texto, convinha um compromisso recíproco, expresso ou tácito nesse sentido.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Contra a corrente (5): Receita para a violência

A proibição da manifestação da extrema-direita contra a suposta "islamização da Europa" corre o sério  risco de descambar em violência, primeiro porque as forças de segurança têm a obrigação de fazer valer a proibição, e segundo porque os promotores vão provocatoriamente desafiar interdição, para efeitos  de divulgação nas redes da internacional neonazi.

Para além da questão da problemática da licitude da proibição de manifestação por ideias anticonstitucionais - a Constituição parece admitir a interdição de manifestações que sejam iniciativa e expressão de organizações fascistas ou racistas, como se afigura ser o caso, as quais são constitucionalmente proibidas e sujeitas a dissolução -, a questão é saber, quanto ao risco, se não teria sido preferível autorizar a manifestação noutro local menos provocatório e mais suscetível de ser controlado policialmente, do que proibi-la e suscitar o confronto pelas ruas estreitas da Mouraria, como será desejo dos manifestantes.

Numa democracia liberal, nem sempre as soluções policialmente mais duras são as mais aconselháveis para lidar com grupos violentos como estes

Eleições parlamentares 2024 (35): Hipótese fora de equação

1. Creio serem igual a zero as hipóteses de o PS dizer sim à proposta do BE de um acordo de governo entre ambos os partidos, a firmar já antes das eleições

Na verdade, um acordo entre ambos os partidos só poderia ter algum sentido, e apenas depois das eleições, para formar um governo de maioria parlamentar. Ora, uma tal "maioria de esquerda" parece uma hipótese fora de equação nestas eleições, pois nenhuma sondagem a dá como alcançável. Tudo indica, portanto, que a solução de 2015 - que, aliás, foi deixada fora de equação política pelo PS nas eleições posteriores - não constitui uma hipótese viável em que valha a pena investir eleitoralmente.

2. Por conseguinte, em termos realistas, a única hipótese de haver um governo de esquerda assenta na vitória eleitoral do próprio PS, que as sondagens indiciam, mas sem suficiente margem de segurança. 

Ora, para reforçar a margem de vitória do PS, a admissão de um acordo de governo à esquerda não só não ajuda, como pode mesmo desajudar, quer porque pode "confortar" a utilidade no voto no Bloco (e no PCP), quer porque pode afastar algum eleitorado do centro moderado, que não vê com bons olhos a aliança do PS com a esquerda radical. Por isso, a meu ver, o PS faria bem em descartar explicitamente o inoportuno flirt político do Bloco.

Adenda
Um leitor pergunta se estou a propor o «regresso do PS ao discurso do voto útil». A minha resposta é, claramente, sim. Sem qualquer dissimulação, o PS deve dizer aos eleitores de esquerda que a vitória socialista é o único resultado que assegura um governo de esquerda e deve dizer aos eleitores do centro que, quanto mais robusta for a vitória do PS, maior será a inibição política colocado ao PSD contra qualquer má tentação de aliança com a extrema-direita.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Aplauso (34): Abaixo dos 100%!

1. Para quem, como eu, há muito anos considera essencial a frugalidade orçamental e a contenção do endividamento público - desde logo, porque fica caro! -, só posso saudar vivamente a notícia de que, apesar da grave crise da pandemia, voltámos a uma dívida pública bem abaixo dos 100% do PIB e que baixámos mesmo o stock da dívida pública em termos líquidos, retirando o país do clube dos países mais endividados. Um notável triunfo político! 

Para além de confortável seguro contra qualquer crise orçamental superveniente, esta notável redução do peso da dívida pública traduz-se numa substancial poupança orçamental em juros, proporcionando maior flexibilidade na gestão da despesa pública aos governos que vêm.

2. Com este importante desempenho orçamental do governo do PS, um dos melhores da UE, ficamos menos longe e mais bem posicionados para atingir o objetivo do Pacto de Estabilidade da União, que é de 60% do PIB. Ponto é que os próximos governos não enveredem de novo pelo laxismo orçamental e pela "desbunda" na despesa pública ou num demagógico corte da receita, como deixam temer muitas das promessas eleitorais neste momento irresponsavelmente apresentadas por quase todos os partidos.

Neste quadro, é especialmente preocupante o programa do PSD, que, entre aumentos de despesa e um maciço e aventureiro "choque fiscal", propõe um rombo de mais de 5 000 milhões de euros nas contas públicas -, ou como um partido de governo outrora financeiramente responsável, passou a acreditar irresponsavelmente em operações de prestidigitação orçamental.

Eleições parlamentares 2024 (34): Azares do PSD

Como se não bastasse a pouco recomendável novela política sobre o governo regional da Madeira e a inquietante especulação sobre uma possível aliança de governo do PSD com o Chega nos Açores, no plano nacional acumulam-se as notícias pouco propícias para o PSD, como a dos números sobre o crescimento do PIB em 2023, o maior da UE, ridicularizando a acusação de Montenegro sobre o "ciclo de empobrecimento" do País (como já havia mostrado AQUI).

Em condições normais, o PS deveria obter uma vitória folgada nestas eleições. Mesmo que o próprio PS pareça não querer explorar excessivamente os resultados económicos da sua governação de oito anos, os portugueses não podem deixaram de notá-la, no emprego, nos rendimentos e no poder de compra. Não se vê como é que o PSD pode contrariar eficazmente este panorama daqui até às eleições.

Adenda
Mais notícias sobre o "empobrecimento" do País: em 2023 o salário médio subiu bem acima da inflação, implicando, portanto, um ganho de poder real de compra.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Era o que faltava (14): A "golpada " da Madeira

Propositadamente, o PSD madeirense, com a concordância de Montenegro, precipitou a demissão do Governo regional (que se tornou efetiva com a apresentação da demissão, sem necessidade de aceitação - como notei logo na Adenda 6 a este post), sem dar tempo à aprovação do orçamento no parlamento madeirense, exigindo agora a nomeação de novo Governo, sem eleições..., para aprovar o orçamento que deliberadamente fez caducar. 

Só que quem procede à formação de novo Governo é o Representante da República, na data por ele escolhida (não há prazo para o fazer), em articulação com o PR. Ora, a não ser que se queira dar efetivamente ao PSD na Madeira o que ele pretende, ou seja, o privilégio de mudar de governo sem ir a eleições - o que não foi dado ao PS a nível nacional -, só há uma solução politicamente decente e coerente: manter o Governo cessante em funções de gestão até haver novo executivo, na sequência de novas eleições parlamentares regionais, quando elas puderem ter lugar. 

A "golpada" do Funchal não pode vingar.

Adenda
Um leitor pergunta se a demissão do governo regional implica necessariamente «a queda da proposta de orçamento pendente de votação na ALRM». Sem dúvida, tal como sucede a todas as iniciativas legislativas governamentais, que deixam de ter "progenitor", não podendo sequer o governo demitido defendê-las no parlamento madeirense. Trata-se de um princípio geral de direito constitucional, expresso na CRP em relação à AR e que vale por analogia para os parlamentos regionais.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Este Pais não tem emenda (35): Uma conspiração de silêncio

1. É um escândalo esta elevadíssima falta de assiduidade dos professores do ensino público (11 000 por dia!), que deixa muitas dezenas milhares de alunos sem aulas e sem aproveitamento e que vai minando a confiança na escola pública. 

É evidente que nada de semelhante se passa nas escolas privadas. A uma cultura de irresponsabilidade profissional no sector público, soma-se uma gritante carência de ética de serviço público. Enquanto a falta de assiduidade não for devidamente penalizada na avaliação de desempenho profissional, a situação só pode piorar.

2. Infelizmente, não há nenhuma razão para alimentar qualquer esperança. Os sindicatos assobiam para o ar; os partidos de esquerda não ousam criticar os professores, por razões ideológicas; os partidos de direita, não o fazem por interesse, porque quanto pior se tornar a escola pública, melhor para os seus velhos planos de privatização do ensino -, agora, aliás, reforçados.

Enquanto esta conspiração de silêncio político continuar, não há margem para nenhum otimismo.

Adenda
Um leitor comenta que algo de semelhante se verifica no SNS, sendo «lamentável que se não conheçam os números». Não é
Está em causa somente uma questão de ineficiência dos serviços públicos; é também uma questão de abuso e de indignidade profissional.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

+ União (79): Reféns do protecionismo agrícola francês?

Acossado por mais um protesto agrícola, o novo PM do Governo Macron veio reiterar a oposição gaulesa ao acordo comercial entre a UE e o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), argumentando que ele prejudica os interesses dos agricultores franceses, por causa da liberalização, aliás quantitativamente limitada, de importação de carne de vaca e outros produtos agrícolas daqueles países, sobretudo do Brasil.

Não pode deixar de censurar-se esta posição francesa contra o acordo, o qual tem o apoio de uma maioria de Estados-membros, em particular de Portugal e da Espanha, e que, além das vantagens políticas nas relações com os países do Mercosul, proporciona substanciais vantagens tanto aos consumidores europeus (incluindo os franceses), como aos exportadores europeus de bens e serviços (incluindo os franceses).

O interesse geral dos consumidores e da economia da União não podem continuar reféns do restrito , mas poderoso, lobby agrícola francês, aliás altamente beneficiário de PAC da UE, ou seja, dos impostos dos cidadãos europeus. É tempo de a vontade da União Bruxelas prevalecer sobre a abusiva oposição protecionista de Paris.

domingo, 28 de janeiro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (44): Um pouco mais de coerência, sff

1. Têm razão os que apontam a incoerência do PR, entre a solução dada à crise política aberta com a demissão do PM, em novembro passado, e a que agora se aventa para crise política decorrente da demissão do presidente do governo regional da Madeira. 

Enquanto no 1º caso, MRS se recusou de pronto a nomear um novo Governo do PS, como proposto por este, no quadro da maioria parlamentar existente, preferindo anunciar imediatamente a dissolução parlamentar e a convocação de eleições antecipadas e obrigando o Governo cessante a manter-se em funções de gestão, no caso da Madeira, porém, parece admitir a nomeação de novo Governo liderado pelo PSD regional sem novas eleições

Parece manifesta a disparidade de soluções.

2. Nem se invoque o facto, verdadeiro, de o parlamento regional não poder ser dissolvido antes de passados seis meses desde a sua eleição, que somente se completam em 24 de março, pelo que o governo regional demitido se teria de manter em funções de gestão até a nomeação de novo governo, de acordo com a composição do novo parlamento madeirense. 

Mas, se o PR não pode dissolver, nada o impede de anunciar o propósito de o fazer logo que possa, daqui a menos de dois meses. De facto, também no caso nacional, a AR só veio a ser efetivamente dissolvida em janeiro, dois meses depois do anúncio político antecipado da dissolução, em novembro, mantendo-se o Governo de A. Costa em funções durante mais tempo ainda, entre a demissão e a provável substituição.

Não se vê porque é que o que é válido em Lisboa deixa de servir no Funchal.

3. As consequências políticas desta disparidade são óbvias

Enquanto a nível nacional o PS teve de preparar-se à pressa para enfrentar eleições com que não contava e com o handicap político de um PM cessante sujeito a um inquérito penal (não se sabe ainda por que suspeita de crime...), na Madeira, se for chamado a formar novo governo, mesmo que a título transitório, o PSD poderá libertar-se rapidamente do fardo político de um presidente cessante arguido criminalmente (incluindo por crimes de corrupção), retomando o governo regional em plenitude de funções, sem o incómodo de ter de prestar contas em eleições, em relação ao Governo cessante. 

O que importa saber é porque é que uns partidos, após demissão de um Governo seu, têm o privilégio político de formar novo Governo sem ir a eleições, e outros não.

Adenda
Aproveitando a aparente "luz verde" presidencial, o PSD madeirense apressa-se a descartar o "ativo tóxico" (Albuquerque) e prepara sem demora a sua substituição, como se já tivesse sido convidado a formar novo Governo. Recorde-se que, em outubro, em Lisboa, o PSD foi pressuroso a exigir eleições antecipadas (e o PAN também). Agora, não lhes convém...

Adenda 2
Um leitor objeta que nas regiões autónomas quem tem competência para nomear os governos regionais é o respetivo Representante da República, e não o PR. Trata-se, porém, de um puro sofisma político: não cabe na cabeça de ninguém, que depois da demissão de um governo, o RR avance com o procedimento de formação de novo executivo, sem saber se o PR não opta pela dissolução parlamentar. Portanto, a "chave" da crise política madeirense está em Belém, e não no Palácio de São Lourenço, no Funchal.

Adenda 3 (29/1)
Não faz nenhum sentido a posição defendida no editorial de hoje do Público. Primeiro, como mostrei, não há nenhuma inconstitucionalidade em anunciar politicamente a dissolução do parlamento madeirense, para ser acionada daqui a dois meses; segundo, se optar por nomear novo governo regional agora, na base da mesma maioria parlamentar, o PR deixa de ter qualquer motivo para uma dissolução parlamentar posterior, enquanto ela se mantiver. O poder de dissolução parlamentar não pode ser arbitrário.

Adenda 4 
A habitual "ventríloqua" de Belém no Expresso «sabe [que] a saída para a crise política na Madeira passará pela convocação de eleições antecipadas, ainda que tenha de haver uma solução transitória pelo meio». Ora, excluída a abstrusa nomeação de um novo governo para dois meses, que nada justifica, a única solução transitória cabível é manter o atual governo em funções até depois das eleições.

Adenda 5
Um leitor observa, com razão, que o PR foi apanhado, sem contar, com a sua própria «malfeitoria contra o PS», ao recusar-se a nomear novo Governo nacional em outubro. Com efeito se tivesse optado pela continuidade governativa nessa altura, como era devido, não teria agora o problema que tem entre mãos. É o custo que a imprudência tem de pagar à coerência...

Adenda 6
Albuquerque adiou a escolha do sucessor, que estava prevista para hoje, mas não adiou a apresentação da sua demissão ao RR, que efetivou. Ora, nos termos do Estatuto Político-Administrativo, isso parece implicar a demissão imediata do Governo, sem sequer necessidade de aceitação - ao contrário do que se diz nesta notícia. Um "berbicacho" político e constitucional, aparentemente inadvertido (?!), que arrasta a caducidade da proposta de orçamento regional, pendente de aprovação. Resta a eventual possibilidade de uma interpretação (corretiva) do Estatuto regional "em conformidade com a Constituição"...

sábado, 27 de janeiro de 2024

Causa palestina (7): O fim da impunidade israelita?

Além de ter aceitado investigar o possível genocídio em Gaza, indicando vário indícios nesse sentido, e de ter ordenado a Israel algumas importantes medidas cautelares - em particular destinadas à proteção dos civis -, a decisão preliminar do Tribunal Internacional de Justiça sobre a queixa da África do Sul inclui um grande triunfo para a causa palestina, quando reconhece que «os palestinianos parecem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso distinto e, portanto, um grupo protegido, ao abrigo do artigo 2.º da convenção sobre o genocídio», atribuindo-lhes identidade nacional própria, o que consubstancia manifestamente o direito ao seu próprio Estado, que Israel lhes quer negar.

Esta decisão não constitui uma advertência somente contra o Governo israelita, mas também contra os seus principais apoios políticos e militares, a começar pelos EUA, o Reino Unido e a UE, que têm sido politicamente coniventes com a sangueira que quotidianamente vitimiza centenas de palestinos inocentes. O silêncio de Washington e de Bruxelas sobre a decisão da Haia é em si mesmo comprometedor.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares (33): A "banha de cobra" do PSD

Propondo-se ultrapassar ao PS pela esquerda e competir com o BE em prometer dar tudo a todos, aliás sem indicar o aumento da despesa pública envolvida, o PSD mantém, porém, a promessa de baixar impostos e assegurar o equilíbrio orçamental.

Como é evidente, todavia, não é politicamente possível satisfazer este trilema político. A não ser que houvesse um substancial aumento do crescimento económico - o que não está nos augúrios dos astros -, o aumento da despesa pública só pode ser possível mediante a subida de impostos (e não a sua descida) e/ou o aumento do défice orçamental e da dívida pública.

Em desespero de causa e por puro oportunismo político, o PSD manda às urtigas os princípios políticos por que sempre se pautou: controlo da despesa pública, contenção da carga fiscal, frugalidade orçamental. Mas quem pode confiar num partido que renega, com este à-vontade, o seu credo político?

Contra a corrente (4): Pelo aumento das propinas

1. Estou inteiramente de acordo com esta opinião do Prof. Luís Aguiar-Conraria, que vem acrescentar um valioso argumento a favor do aumento das propinas no ensino superior.

Sempre fui a favor das propinas no ensino superior - que não é um serviço público universal como o ensino básico e secundário -, ao abrigo do princípio beneficiário-pagador, uma vez que o ensino superior é antes de mais um investimento dos estudantes no seu próprio futuro profissional, devendo portanto ser financiado pelos próprios, e não por transferências orçamentais, à custa dos impostos de todos (ressalvadas as "externalidades positivas" para a sociedade).

2. No entanto, contra esta boa doutrina, nos últimos governos do PS, por pressão do PCP e do BE, verificou-se uma substancial redução das propinas - a que naturalmente me opus -, aumentando a dependência das IES das transferências orçamentais, pondo em causa a sua autonomia, que é tanto menor quanto menor for a sua autossustentabilidade financeira.

Infelizmente, o mito do ensino superior gratuito não é privativo da esquerda radical, contaminando também a "ala bloquista" do PS, incluindo um anterior ministro do ensino superior. A constituency dos estudantes do ES, que obviamente querem "universidades SCUT" (ou seja, à custa dos contribuintes), é demasiado influente. Aguardemos, sem ilusões, o que o próximo programa eleitoral do PS vai dizer sobre o assunto.

Adenda
Um leitor relembra o óbvio: a democratização no acesso ao ES «deve ser feita pelo Estado por meio de bolsas de estudo para quem precisa e não pelo gratuitidade transversal, que beneficia quem não precisa». E parece evidente que quanto mais transferências orçamentais o Estado tiver de fazer para sustentar as universidades, por insuficiência de recursos próprios destas (incluindo as propinas), menos disponibilidade orçamental haverá para alargar a cobertura e elevar a importância das bolsas de estudo - sendo aí que o Estado deveria investir (como sempre defendi). Conclusão: a redução/abolição das propinas acaba por funcionar contra os mais pobres!

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (32): Benesses aos ricos

Depois de o PSD ter defendido os "contratos de associação" com escolas privadas como alternativa à escola pública - o que visa obviamente subsidiar os que já frequentam o ensino privado, ou seja, os filhos de famílias com rendimentos condizentes -, a AD vem agora defender que o Estado se torne garante do crédito à compra de habitação de jovens (suportando o respetivo risco), o que, mais uma vez, visa beneficiar quem tem rendimentos suficientes para tal investimento, o que é uma minoria das famílias.

Pelos vistos, para o PSD o "Estado social" não está ao serviço de todos, sobretudo de quem menos tem, mas antes ao serviço dos privilégios dos que mais têm. Mesmo que os meus netos pudessem ser beneficiários de tais benesses, recuso que os meus impostos sirvam para alimentar privilégios de classe, à custa de toda a coletividade.

Adenda
Um leitor objeta que «os contratos de associação com escolas privadas já existem na lei» e que «o financiamento público será compensado pela menor despesa com as escolas públicas». Trata-se, porém, de uma falácia: (i) a lei em vigor só prevê contratos de associação em caso de insuficiência de escolas públicas (o que é cada vez mais raro), e não como alternativa a estas, ao abrigo de um alegado "direito de opção"; (ii) é óbvio que o financiamento de escolas privadas fora dos casos de insuficiência do ensino público não isenta o Estado de sustentar as escolas públicas, mesmo com menos alunos, pelo que haverá necessariamente aumento da despesa pública ou corte no adequado investimento na escola pública. Mais importante do que isso, o financiamento público de escolas privadas em concorrência com as públicas viola manifestamente a prioridade e a universalidade constitucional do ensino público, política e religiosamente neutro. Gostaria de saber qual é a resposta do PS a esta provocação política e constitucional da direita.

Adenda 2
Outro leitor pergunta se também sou contra «as PPP para a construção e gestão de hospitais do SNS», que a AD quer recuperar. Esta solução nada tem a ver com a outra, tratando-se somente de concessão da construção e ou gestão de equipamentos públicos, que permanecem no setor público. Não há aqui nem financiamento público de hospitais privados, nem "direito de opção" dos utentes entre o público e o privado, nem aumento de despesa pública (pelo contrário). Por isso, considerando o valor acrescentado que a gestão privada pode trazer ao SNS e o bench marking que pode proporcionar à gestão pública, desde há muito que me manifestei a favor dessa solução, tendo lamentado a sua injustificada interrupção por pressão do PCP e do BE (que considerei um erro político). Parece-me evidente que o PS também de revisitar esta questão.

Adenda 3
Um leitor argumenta que o apoio do Estado à compra de habitação por jovens já existiu, através da bonificação de juros. Pois já, e também nessa altura me opus a tal benesse, que redundava num subsídio às famílias com capacidade financeira bastante para comprarem casa em nome dos filhos. Coerentemente, já na altura me opus.

Adenda 4
Um leitor afirma que também «há muitos socialistas, incluindo dirigentes, com os filhos em escolas privadas». Pois há, e têm esse direito. A diferença radical está em que, ao contrário da direita, eles não propõem que seja o Estado a pagar-lhes a escola. Em vez disso, apesar de não usufruírem da escola pública, contribuem de bom grado para o seu financiamento.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Não com os meus impostos (13): Vantagens privativas, custos alheios

Não faz sentido esta reivindicação da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) - que é um sistema profissional privativo de segurança social - de cofinanciamento do Estado, no valor de vários milhões

Se tenho defendido a autossustentação financeira do sistema previdencial geral de segurança social, por maioria de razão tal se impõe nos casos de autoadministração profissional, como é o caso, não devendo ser os contribuintes em geral a financiar as pensões de classes profissionais bem remuneradas, tanto mais que a maior parte daqueles não podem sequer aspirar a pensões equivalentes. 

Não se pode ter uma coisa sem a outra: os sistemas de previdência privativos requerem a sua autossustentação financeira.

Adenda
Um leitor comenta, apoiando: «Com este pedido de "intervenção estatal" da Direção da CPAS, onde ficam estes dois argumentos - da sustentabilidade e da independência? Ficam na esfera da conveniência, mas certamente não da coerência, respondo eu. Por isso, louvo (...) não deixar que (mais) este despautério da Direção da CPAS passe sem "réplica"». Efetivamente, um despautério...

domingo, 21 de janeiro de 2024

Eleições parlamentares 2024 (31): A "proposta negocial" do Bloco

Perante o radicalismo e a insensatez política e orçamental deste manifesto eleitoral do BE - que, entre outras propostas irresponsáveis, propõe a redução administrativa dos juros do crédito habitacional da CGD, como se o banco público não fosse um banco comercial em concorrência no mercado bancário -, cumpre perguntar que margem é que o PS teria para aceitar alguma daquelas propostas num hipotético acordo de governo à esquerda

sábado, 20 de janeiro de 2024

Sistema eleitoral (7): Um "sonho" impossível

1. Na Público de hoje, António Barreto dá conta do seu "sonho" de adoção de um sistema eleitoral radicalmente diferente do que vigora em Portugal desde a Revolução democrática de 1974-76, propondo a importação de um sistema próximo do francês, em que os deputados são eleitos em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger, ou seja, 230 no nosso caso), por maioria absoluta, havendo uma segunda votação se nenhum candidato obtiver tal maioria na primeira, à qual só podem concorrer os candidatos que na 1ª volta tenham obtido uma percentagem mínima de votos.

Sucede, porém, que se trata de um exercício inteletual impraticável, pois tal revolução eleitoral está fora de equação entre nós, tanto por ser constitucionalmente impossível, como por ser politicamente desaconselhável.

2. Desde a origem que a CRP de 1976 é clara: o sistema eleitoral da AR é de natureza proporcional, sendo os deputados eleitos em círculos plurinomiais infranacionais - que no Continente continuam a ser os antigos distritos administrativos -, sendo os mandatos em cada círculo atribuídos de forma proporcional à votação de cada lista concorrente. Isso faz com que a representação parlamentar reflita aproximadamente a repartição do apoio eleitoral de cada partido político no País. Por conseguinte, é constitucionamente inviável a adoção de um sistema eleitoral maioritário. 

Reforçando essa opção fundamental pela proporcionalidade da representação parlamentar, a CRP considera-a um "limite material de revisão", impedindo a sua remoção por via de alteração constitucional. Ora, num Estado de direito constitucional não são politicamente equacionáveis soluções contrárias aos princípios constitucionais básicos.

3.  Mesmo que não fosse constitucionalmente inviável, não é de sufragar politicamente essa proposta de revolução eleitoral. 

A razão fundamental está no estreitamento forçado da representação partidária no Parlamento - que é inerente a todos os sistemas eleitorais maioritários, mas que é agravada no modelo francês -, a qual, num país sem minorias étnicas ou linguísticas e com reduzidas clivagens políticas territoriais, ficaria reduzida aos dois ou três partidos maiores, afastando os demais e alienando da representação política uma parte substancial dos eleitores. Outros argumentos contra um sistema eleitoral maioritário a duas voltas, para além da dificuldade prática de dividir o país em mais de duzentos círculos de idêntico tamanho eleitoral, seriam a excessiva "personalização" das disputas eleitorais e a vantagem dado aos influentes e "caciques" locais, bem como o aumento da duração e dos custos das operações eleitorais.

Não é por acaso que, ao contrário do sistema de maioria relativa de tipo britânico, que existe num considerável número de países, o sistema eleitoral de tipo francês tem uma reduzida implantação no mundo - não mais de dez países, não havendo nenhum caso na Europa além do país de origem (salvo na Chéquia, mas apenas para a câmara alta do respetivo Parlamento). Ou seja, a política comparada não favorece tal opção.

4. Mas a minha principal objeção à proposta apresentada é a discordância com a substituição do "modelo representativo" clássico do mandato parlamentar, em que os deputados representam ideias e propostas políticas transversais ao território nacional, por um modelo de representação personalizada dos territórios eleitorais, como sucedia nas Cortes medievais, em que os chamados representantes do "3º estado" eram na verdade "procuradores" dos respetivos concelhos.

Nesta perspetiva, julgo que numa democracia pluripartidária, sobretudo em sistemas de governo de tipo parlamentar como o nosso (em que a legitimidade dos governos deriva das eleições parlamentares), não faz muito sentido conceber o parlamento como um agregado de representantes dos círculos eleitorais (que normalmente nem sequer coincidirão com nenhuma comunidade local pré-existente, carecendo, portanto, de identidade política própria) ou aceitar a ideia de que cada deputado local representa todos os habitantes do seu círculo ("o meu deputado"), incluindo os eleitores que votaram noutros candidatos e perfilham posições políticas radicalmente diferentes.

A meu ver, a ideia de que os deputados representam diferentes correntes políticas ao nível de todo o território nacional, e não os círculos por que são eleitos, deve continuar a considerar-se um pressuposto lógico das democracias parlamentares.

Adenda
Contrariando um dos argumentos de AB, um leitor defende que pode haver mais renovação de deputados nos sistemas proporcionais, quando há mudança de lideranças partidárias (como sucede agora nas listas do PSD e do PS) do que nos sistemas maioritários, onde «é grande o número de "safe seats" [círculos eleitorais de maioria estável], que tendem a reconduzir os seus deputados legislatura após legislatura». Na verdade, calcula-se que no Reino Unido os safe seats dos dois maiores partidos são mais de 40% e que nos Estados Unidos essa percentagem é ainda maior.

Adenda 2
Um leitor defende que a proposta de AB teria «pelo menos duas vantagens: 1º, favorecer a formação de maiorias absolutas do partido vencedor, garantindo a estabibilidade governativa e 2º, eliminar ou reduzir a representação de partidos extremistas como o Chega e o Bloco». O problema é saber se tais presumíveis vantagens justificam o sacrifício da justiça eleitoral e da legitimidade política de um parlamento "de via reduzida", de onde estaria excluída a representação de grande parte do atual espectro partidário.

Adenda 3
Um leitor informado recorda que há meios de «pessoalizar a escolha dos deputados em sistemas proporcionais», seja através do "voto preferencial" (em que os eleitores podem votar em um ou mais dos candidatos do partido em que votam), seja através do sistema alemão (em que cerca de metade dos deputados são eleitos, por maioria, em círculos uninominais, sendo os eleitos imputados à quota proporcional do respetivo partido no círculo plurinominal correspondente). Tem razão, e qualquer dessas modalidades de "sistema proporcional personalizado" pode ser adotada em Portugal, sem alteração da Constituição.