Académico bem-sucedido, político brilhante, socialista empenhado, Fernando Rocha Andrade ("FRA", entre alguns amigos) foi um dos espíritos mais fogosos, criativos e conviviais que conheci. O seu falecimento tão prematuro priva a FDUC, o PS e o País de um grande valor. As minhas condolências a familiares e amigos pela enorme perda.
Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (2): Imprevidência russa
Há manifestamente vários fatores com que Putin não terá contado na sua decisão de invadir a Ucrânia, que podem complicar a sua guerra: (i) a determinação de Kiev em resistir ao ataque; (ii) a condenação geral por esse mundo fora e, em especial, na UE; (iii) a escala sem precedente das sanções (financeiras, económicas, desportivas, etc.) aplicadas à Rússia pelos Estados Unidos e pela UE.
Suponho não ser exagero afirmar que, para além do grande e duradouro fosso que vai aprofundar entre o ocidente e a Rússia - porventura o aspeto mais negativo -, uma das consequências desta guerra vai ser o reforço da coesão interna e da política de defesa da União Europeia e o enfraquecimento dos partidos antieuropeístas, alguns dos quais não escondiam a sua simpatia com o nacionalismo russo.
Um leitor diz que não vê base nos Tratados da União para o financiamento de armas à Ucrânia e para o anúncio pela presidente da Comissão Europeia da admissão antecipada do país como membro da União, cujo processo de adesão ainda nem sequer foi iniciado. Dúvidas pertinentes...
Não com os meus impostos (6): O RBUI
Não consigo compreender como é que uma ideia tão insensata, tanto política como financeiramente, como o "rendimento básico universal incondicional" pode ser levada a sério.
De facto, que sentido faz subsidiar por igual, e sem condições, toda a gente, multimilionários e beneficiários de RSI, esperando que daí não resulte redução da propensão para o trabalho, a poupança e o investimento? E que ganhariam os mais pobres, se tal nova prestação implicasse a cessação das prestações não contributivas de que já são beneficiários (como o RSI, o abono de família, o subsídio social de desemprego, etc.), como propõem os adeptos da peregrina doutrina? E - questão crucial - como é que um país altamente endividado, como Portugal, poderia acrescentar mais uns milhares de milhões de euros por ano à despesa pública, sem uma enorme subida da já elevada carga fiscal, com a consequente fuga de capitais, de investimentos e de profissionais mais bem remunerados, que seriam os principais financiadores do novo "maná social"?!
Sempre houve utopias políticas, mas esta não se conta seguramente entre as chamadas "utopias realizáveis"!
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022
Contra a invasão da Ucrânia
1. Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.
Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar).
Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.
2. Para além dos imprevisíveis custos humanos, materiais e financeiros da guerra para os biligerantes e dos seus reflexos económicos negativos sobre terceiros países, especialmente na Europa (aumento dos custos da energia, inflação, travagem da retoma económica) - agravados pelas sanções e contrassanções -, esta lamentável guerra na Europa vem reestabelecer a inimizade estratégica entre o ocidente (EUA e UE) e a Rússia, que se julgava superada desde o desmoronar da União Soviética há três décadas, desvalorizando a oposição sistémica com a China, entretanto tornada uma potência económica e militar de primeiro plano e apostada em ocupar um lugar hegemónico num futuro próximo.
Se há uma capital que pode tirar proveito desta guerra europeia, é Pequim.
Sobre o risco sério de estagflação (estagnação económica acompanhada de inflação) ver este texto de Nouriel Roubini (reservado a assinantes).
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
Não dá para entender (32): Imprevidência à portuguesa
1. Como aqui bem se argumenta, a propósito de iminente ataque terrorista em Lisboa, a falta de acesso das autoridades competentes a metadados das comunicações privadas de pessoas suspeitas de atos terroristas e outros crimes graves constitui uma importante vulnerabilidade da segurança em Portugal.
Sucede que depois de várias tentativas frustradas para contornar a Constituição, devidamente rejeitadas pelo Tribunal Constitucional, os dois partidos de Governo em Portugal não avançaram para a necessária revisão constitucional, que só eles podem aprovar, mantendo a equívoca situação existente. Não dá para entender.
2. Independentemente de uma revisão constitucional mais vasta, destinada a "aprimorar" a Lei Fundamental e prepará-la para mais meio século de vigência, há alguma alterações pontuais que há muito se impõem, porque têm a ver com a capacidade do Estado para responder a ameaças à segurança, lato sensu, do País.
À cabeça surgem as seguintes, destinadas a validar medidas atualmente sem cobertura constitucional:
- permitir o internamento ou o confinamento pessoal em caso de doenças infeto-contagiosas que ameacem a saúde pública, sem necessidade de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência;
- permitir o acesso das serviços de segurança aos metadados de comunicações privadas, em certas situações de risco grave para a segurança interna ou externa;
- permitir a participação das forças armadas em missões de segurança interna, em coordenação com as forças de segurança.
O poder político não é responsável somente pelas políticas malsucedidas, mas também pelas omissões indevidas.
Este País não tem emenda (26): Desperdício
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
Sim, mas (8): Ranking democrático
Embora baixando dois lugares em relação ao ano anterior, Portugal mantém-se relativamente bem posicionado no habitual ranking da democracia no mundo, da revista britânica The Economist, relativo a 2021, ocupando a 28ª posição na lista geral (entre 165 países e territórios) e um dos primeiros lugares do vasto grupo das "democracias imperfeitas" (flawed democracies), junto com países como a França, a Espanha, os Estados Unidos e a Itália.
Como se retira da tabela junta, a classificação resulta de consideração de cinco critérios, sem ponderação preferencial. Entre eles, os pontos mais fortes de Portugal são as "processo eleitoral e pluralismo" político" (9,58/10) e as "liberdades civis" (8,58/10), fatores decisivos de qualquer regime democrático; e os indicadores mais fracos são a "participação" e a "cultura política", onde o score fica abaixo de 7/10.
Obviamente, os aspetos menos positivos não são fáceis de corrigir num breve lapso de tempo, porque não dependem de reformas legislativas nem de voluntarismo político dos governos. Mas não devemos desistir de os melhorar...
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
Praça da República (62): Feliz escolha
Saúdo a nomeação de Jorge Miranda para presidir às comemorações de 10 de junho deste ano, que desta vez decorrem em Braga.
Como assinalou o Presidente da República, trata-se de um bracarense que, além de insigne constitucionalista, foi uma dos mais influentes deputados à Assembleia Constituinte (1975-76), deixando a sua marca pessoal no texto da CRP de 1976, cujo cinquentenário se aproxima, e que, como poucos, a tem ensinado e valorizado, como Lei fundamental do País.
Como coconstituinte, amigo e admirador de Jorge Miranda, aqui deixo as minhas felicitações e os meus votos de êxito nesta nova tarefa cívica.
Ai, a dívida (20): Continuamos em terceiro lugar
No entanto, no nosso "campeonato", que é o dos países da UE, só a Grécia e a Itália nos batem.
No entanto, a retoma económica pós-pandemia e o "pote" de dinheiro do PRR da UE proporcionam condições excecionais de redução substancial do défice orçamental e do rácio da dívida, o que bem preciso é, para contrariar a provável subida dos juros no mercado da dívida, provocada pelo previsível aperto da política monetária do Banco Central Europeu (cessação do programa de compra de obrigações de dívida pública e subida da taxa de juro de referência), em resposta à subida da inflação na zona euro, muito acima do valor de referência de 2%.
O maná do endividamento barato (cortesia BCE) está em vias de acabar e as normas de disciplina orçamental da UE, suspensas desde 2020, devem regressar no próximo ano. Prudência orçamental e redução acelerada da dívida, aproveitando as condições favoráveis, impõem-se.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
Assim vai a política (10): Não vale tudo contra o Chega
O pior modo de combater politicamente o Chega é pelo recurso à ofensa pessoal. Tais métodos só lhe dão força. Não se combate o Chega com as armas do Chega.
+ Europa (58): Parlamento Europeu em alta
É bom de ver que em Portugal não há terreno para medrarem partidos antieuropeus.
A evolução da opinião favorável sobre o PE é especialmente importante não somente para a consolidação da União e da integração europeia, mas também para a sua perceção como construção democrática, a caminho de uma genuína democracia parlamentar supranacional.
3. Considerado que inicialmente o Parlamento Europeu não tinha o nome de parlamento, não era eleito diretamente, não representava os cidadãos europeus (mas sim os "povos" nacionais) e não tinha poderes decisórios, esta evolução da opinião pública sobre a assembleia parlamentar da União traduz os ganhos de legitimidade democrática e de poder que o Parlamento foi obtendo em sucessivos tratados de revisão, nomeadamente os Tratados de Maastricht (1992) e de Lisboa (2007) e consolidando pelo seu próprio mérito.
Como escrevi noutro lado, o PE é cada vez mais percebido como encarnando realmente «a vontade dos cidadãos da União».
[revisto]
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022
Praça da República (62): Elogio de governos de maioria
[Fonte: Aqui]
1. Como mostra o quadro junto, relativo a 2017 (mas que se mantém atual em geral), a regra nos países da OCDE é a de governos maioritários, de coligação ou monopartidários (mais de 3/4 dos países). A solução existente entre nós desde 2019 - governo minoritário sem acordo com outros partidos - é superminoritária (3,3%); e a solução de 2015 - governo minoritário com acordo com outros partidos - corresponde somente a 13,3% do total.
Sucede, que sendo os governos maioritários a regra, em Portugal a única possibilidade de um governo maioritário à esquerda é um Governo do PS, dada a impossibilidade de um governo de coligação à esquerda, não sendo viável um programa comum de governo entre o PS e a esquerda radical, por causa das profundas diferenças doutrinárias e políticas entre eles.
É por isso que, apesar de o PS ter vencido a maior parte das eleições parlamentares desde 1976, só tenha havido até agora um governo maioritário de esquerda (o de Sócrates, 2005-2009). As eleições de 30 de janeiro passado proporcionam ao PS uma segunda oportunidade.
2. Contrariando a rejeição ou as reticências contra governos de maioria monopartidária, penso que eles apresentam um conjunto impressionante de vantagens, nomeadamente as seguintes:
- estabilidade política: os governos de maioria cumprem a legislatura, podendo lançar a executar as suas políticas e proporcionando previsibilidade política aos cidadãos, aos empresários e aos agentes políticos e sociais; dos vários governos de coligação e minoritários que tivemos, muitos não chegaram ao fim da legislatura, e nenhum tinha esse objetivo como garantido antecipadamente;
- alargamento da área de recrutamento político: com um horizonte de quatro anos, é possível recrutar para o Governo personalidades que não estariam disponíveis para largar as suas atividades profissionais e integrar governos sem perspetivas de estabilidade;
- controlo das finanças públicas: tendo maioria parlamentar, os governos não correm o risco de ver as suas propostas de orçamento estropeadas na AR pelos partidos de oposição, pelo aumento de despesa global ou pelo aumento da despesa corrente à custa do investimento público, pondo em causa a consolidação orçamental e a redução da dívida pública;
- reformas políticas: só os governos de maioria podem decidir as reformas que, apesar de necessárias, suscitam a oposição de outros partidos ou de poderosos grupos de interesse, e que normalmente são vetadas em governos de coligação ou em governos minoritários; foram as reformas económicas e fiscais de Cavaco Silva e as reformas de Sócrates em várias áreas (segurança social, saúde, Administração pública), que permitiram a modernização do País e a superação de barreiras institucionais atávicas ao progresso económico e social;
- responsabilidade política: podendo executar o programa eleitoral com que se apresentaram aos eleitores e com que ganharam as eleições, os governos de maioria não têm as desculpas que os governos minoritários e de coligação invocam, quando apresentam contas ao julgamento dos eleitores no final do mandato; nesse sentido, os governos de maioria preenchem melhor os requisitos clássicos do "governo representativo e responsável" (representative and responsible government).
3. Confiando em que as garantias existentes contra as tentações de abuso do poder funcionam, a solução de governos maioritários pode ser a mais apropriada, especialmente em períodos, como o atual, em que assumem prioridade a necessidade de estabilidade política para superar a crise resultante da pandemia e a necessidade de reformas para responder aos desafios colocados ao País e à UE, como a transição digital e a transição energética.
E não sendo possível um governo de coligação de esquerda, nem sendo recomendável um governo de coligação ao centro ("bloco central"), a única solução de governo de esquerda maioritário é mesmo aquela que afortunadamente as eleições de domingo passado proporcionaram inesperadamente ao PS.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022
Praça da República (61): Desfragmentar o Governo
1. Mesmo antes das eleições, António Costa comprometeu-se a tornar o Governo "mais compacto", o que passa necessariamente pela redução do número de ministérios e secretarias de Estado, que atingiram um número record no Governo cessante.
Independentemente da qualidade dos seus atuais titulares (que aqui não está em causa), há ministérios sem consistência política bastante, de âmbito demasiado estreito, ou que responderam a necessidades conjunturais. E quanto ao excesso de secretarias de Estado, não se compreende que haja ministérios com nada menos de quatro e que alguns "miniministérios", que bem podiam ser secretarias de Estado, tenham várias secretarias Estado!
A redução da fragmentação governamental pode agilizar o funcionamento do Conselho de Ministros e das equipas ministeriais, contribuir para uma melhor coordenação e unidade de ação do Governo e reduzir a sua exposição a pressões setoriais.
2. Em contrapartida, penso, porém, que é altura de encarar, como há muito defendo e ocorre em vários Estados-membros da UE, a separação e autonomização da pelouro governamental para a coordenação e execução da política europeia, que não há nenhuma razão para se manter no MNE e que deve ser confiada a um responsável governamental (ministro ou secretário de Estado) sob tutela direta do PM.
A política europeia em geral não faz parte da política externa, tendo a ver com quase todas as políticas internas. Em matéria de UE, o MNE deve limitar-se a participar no Conselho de Negócios Estrangeiros da União sobre a ação externa.
Importa que a importância política da UE na política interna encontre expressão na organização governamental.
3. A composição dos últimos Governos tem sido justamente sensível a uma preocupação com o equilíbrio de género, incluindo um número crescente de mulheres. É de esperar que o próximo Governo represente um novo avanço nesse sentido.
Menos significativo, se algum, tem sido o esforço para atenuar o monopólio governativo de Lisboa (com uma quota para o Porto), o que, num País ainda muito centralizado, faz correr o risco de enviesar em favor das duas áreas metropolitanas as decisões sobre investimentos públicos, localização de serviços e recrutamento de quadros públicos.
4. Criou-se entre nós o hábito de mudar o nome dos ministérios, mesmo quando eles se mantêm com o mesmo núcleo do de competências, muitas vezes para introduzir qualificações ou aditamentos fúteis.
Essa prática não acarreta somente despesa desnecessária com novas placas nos serviços e novos endereços postais e eletrónicos, mas também quebra a continuidade institucional. Só deve haver mudança em caso de fusão ou agregação de ministérios. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não precisou de mudar de nome, só porque a evolução semântica fez perder à palavra "negócios" o antigo significado de "assuntos"...
É tempo de acabar a mudança dos nomes dos ministérios por puro caprichismo ministerial ou modismo político.
5. Uma última declaração de princípio, que reitero há muito: espero que o Governo cessante tenha sido o último em que o ministério da Justiça é ocupado por um juiz ou um magistrado do Ministério Público, o que não só põe em causa o princípio da separação de poderes e a independência política do poder judiciário, mas também corre o risco de tornar o ministério vulnerável ao poderoso lobby dos respetivas corporações. As pressões políticas mais nocivas sobre o Governo são as endógenas, in house.
São riscos que importa não correr.
Este País não tem emenda (25): Impunidade
1. Estes números sobre não cobrança de coimas por viagens sem título nos transportes públicos de Lisboa e do Porto, no valor de milhões de euros, são o verdadeiro retrato da irresponsabilidade cívica nacional e da incúria das autoridades na cobrança dos dinheiros públicos.
É evidente que esta impunidade geral só atrai mais incumprimento: "se tantos não pagam, porque é que eu hei de pagar?». Em vez de gratuitidade seletiva, gratuitidade geral!
2. O que reforça a gravidade desta situação é que no caso dos metropolitanos se trata de dinheiro do Estado e não dos municípios, visto tratar-se de empresa estatal (Lisboa) ou com participação estatal (Porto). E se já é uma injustiça que os contribuintes em geral sejam copagadores dos transportes públicos de Lisboa e do Porto, é escandaloso que tenham de pagar também pelos "calotes" dos beneficiários.
Como defendo há muito tempo: municipalização dos metropolitanos de Lisboa e do Porto, já!
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
Praça da República (60): Os limites da maioria absoluta
1. Na noite eleitoral, António Costa procurou tranquilizar os cidadãos eventualmente receosos da maioria absoluta conquistada pelo PS, assegurando que ele próprio gostaria de "reconciliar" os cidadãos com os governos de maioria, resgatando-os do mau conceito prevalecente entre nós, interesseiramente alimentado pela esquerda, a pretexto dos governos maioritários de Cavaco Silva (1987-1995), e pela direita, a propósito do governo de Sócrates (2005-2009), como se fossem a vera expressão do mítico Leviatão, sem limites ao seu poder.
O que o líder do PS poderia ter acrescentado é que porventura nenhum sistema constitucional institui tantos limites e tantos "poderes de veto" ao poder da maioria parlamentar e governamental como o nosso, tal como decorre da Constituição e das instituições criadas para conter o poder da maioria.
2. Vale a pena enunciar os principais:
- a âmbito e a densidade dos direitos fundamentais garantidos na Constituição, sem paralelo em nenhuma outra, que não podem ser arbitrariamente restringidos pela maioria parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade;
- os limites da competência política do Governo, que resultam das transferência de atribuições, no sentido ascendente, para a UE e, no sentido descendente, para as regiões autónomas e autarquias locais, retirando ao Estado importantes fatias do poder político;
- a exigência de maioria de 2/3 na AR para aprovação de certas leis mais sensíveis, como a lei eleitoral, o sistema de governo das autarquias locais, os poderes legislativos das regiões autónomas, que portanto, não estão à mercê da maioria governamental;
- a eleição pela AR, por maioria de 2/3, de um conjunto de órgãos públicos importantes, incluindo, entre outros, a maior parte do juízes do TC, o Provedor de Justiça, a entidade de controlo da comunicação social;
- a existência de numerosas autoridades publicas independentes (desde o Banco de Portugal à entidade reguladora dos média, passando pelas entidades reguladoras das atividades económicas), que o Governo não pode destituir e a quem não pode dar instruções nem orientações;
- a existência de um grande número de ordens profissionais, autónomas e independentes, representativas de poderosos grupos de interesse profissional e dotadas de poderes públicos que o Governo tem de respeitar;
- a existência de instituições independentes de controlo da gestão orçamental e das contas públicas, como o Tribunal de Contas, o Conselho de Finanças Públicas e a UTAO (junto da AR), e de controlo da contratação de altos funcionários (CRESAP);
- o poder de controlo da União Europeia sobre a utilização dos dinheiros provenientes do orçamento europeu, assim como das políticas públicas nacionais que possam traduzir-se no incumprimento de obrigações perante a União;
- o direito de oposição assegurado pela Constituição aos demais partidos com representação parlamentar, como poderes "potestativos", como o poder de interpelação parlamentear, o poder de inquérito parlamentar, etc.;
- especial relevo assume naturalmente o chamado "poder moderador" do PR, nomeadamente o veto legislativo - que, em vários casos só pode ser superado por maioria de 2/3 da AR -, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, a nomeação de certos cargos públicos (como o PGR, as chefias militares e os embaixadores), sem esquecer o poder extraordinário de dissolução parlamentar, que pode ser utlizado contra uma maioria que esteja manifestamente a abusar do seu poder.
É um impressionante conjunto de matérias que escapam ao poder da maioria ou que estão sujeitas ao veto de vários contrapoderes.
3. Por último, convém não esquecer que numa democracia liberal, além da decisiva liberdade de imprensa, há também o poder de oposição social, de sindicatos, instituições particulares e grupos de interesses, que podem fazer vergar o poder político maioritário, como o Governo de Passos Coelho aprendeu à sua custa, sendo obrigado a retirar a proposta de alteração das contribuições para a segurança social, aumentando a dos trabalhadores e reduzindo a das empresas.
De resto, o essencial de uma democracia liberal é que nenhum Governo maioritário deixa de prestar diretamente contas aos eleitores no final do mandato e que, em caso de derrota, as suas políticas podem ser revertidas pelo Governo seguinte. Há um privilégio que nenhum Governo tem, por mais maioritário que seja, que é o poder de se perpetuar ou de tornar irreversíveis as suas políticas.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (25): Leitura errada
Não concordo com a leitura da derrota eleitoral do PSD que a atribui à "deriva centrista de Rio". Pelo contrário, penso que a derrota se deve sobretudo ao facto de Rio, apesar de tal proclamação centrista, ter apostado desde o início numa coligação governativa de direita, não somente com o defunto CDS, mas também com a radical Iniciativa Liberal (que fez gáudio da sua inimizade ao Estado social), sem nunca ter querido excluir convictamente o Chega, tendo mesmo acabado por admitir uma "geringonça" de toda a direita, mesmo que o PS vencesse as eleições, o que foi um "tiro no pé" de enormes proporções.
Essa posição incoerente do líder do PSD - apelando, por um lado, ao voto ao centro, mas apostando, por outro lado, ostensivamente, numa aliança de todas as direitas - teve duas consequências fatais para ele. Primeiramente, legitimou o voto na direita liberal e, mesmo, no Chega, como voto numa solução de governo, anulando qualquer efeito de "voto útil" no PSD; segundo, assustou sobremaneira o eleitorado de esquerda e centro-esquerda, que foi a correr votar no PS, para impedir aquela solução, afundando o Bloco e o PCP, e dando-lhe uma maioria absoluta.
Eleições parlamentares 2022 (24): Um terramoto político
1. Resumindo a jornada eleitoral de ontem:
- ao apontar para um "empate técnico", as sondagens falharam rotundamente em antecipar os resultados eleitorais;
- surpreendentemente, o PS, merecido vencedor, conseguiu uma folgada maioria absoluta (a segunda vez que a obtém na história da democracia em Portugal), embora com menos de 42% dos votos (mercê da grande distância para o PSD e da dispersão de votos noutros partidos), quando tinha sido "forçado" a deixar de a pedir, confirmando o velho ditado de que "as maiorias absolutas não se pedem, obtêm-se", se merecidas;
- o PSD falhou de novo, e fragorosamente, a aposta em ser alternativa de governo, continuando abaixo do limiar dos 30% (embora com ligeira melhoria em relação a 2019, levando Rio à demissão, como era inevitável, perante a sua inconvincente liderança;
- o PCP e o Bloco foram severamente punidos, como deviam, pela irresponsável rejeição do orçamento e abertura da crise política, perdendo respetivamente quase três quartos e metade dos seus deputados, embora, como é tradicional nestes partidos, nenhum dos seus líderes tenha decidido tirar consequências da sua rotunda leviandade política (a culpa é sempre dos eleitores...);
- o CDS desapareceu do Parlamento, como se antecipava, e o presidente demitiu-se, como tinha de ser;
- o PAN ficou reduzido a um deputado, fragilizando a agenda animalista;
- só a direita populista (Chega) e liberal (IL) obtiveram o êxito que as sondagens lhes atribuíam;
- as direitas somadas aumentam a votação, as esquerdas juntas descem apesar da substancial subida do PS.
2. Em suma, estas eleições constituíram um verdadeiro terramoto político no arco parlamentar, reconfigurando tanto a esquerda partidária (humilhação da esquerda radical em proveito do PS), como a direita (enfraquecimento relativo do PSD, desaparecimento de um partido histórico e emergência de dois novos partidos à direita mais radicais e mais doutrinários).
Claramente, estas eleições vão ficar na história política nacional, pois, a partir de hoje, há um novo sistema partidário em Portugal e isso vai ter impacto no funcionamento do sistema de governo e no sistema político em geral.
[revisto]
sábado, 29 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (23): Discordo
Não acompanho o PR, mais uma vez, quando ele sugere a abolição do chamado "dia de reflexão", na véspera do dia das eleições.
Ao contrário do lobby dos média, da indústria das sondagens e do comentariado político, penso que um dia de descanso antes da votação não é somente é uma benção contra o massacre dos eleitores até ao último momento, mas também um antídoto contra golpadas dos partidos ou dos média, com fake news ou outras provocações de última hora, sobre as quais os eleitores já não teriam tempo de refletir.
É lamentável que o PR tenha decidido tomar posição contra uma solução tão arraigada como esta, numa intervenção oficial em véspera de eleições, que, aliás, poucos teriam ouvido, se o dia de reflexão não nos libertasse do frenesim do último dia da campanha eleitoral.
Um leitor comenta: «Independentemente da posição de qualquer um de nós sobre o "dia de reflexão", parece-me muito deslocado e inapropriado o Presidente da República tomar posição pública sobre ele, e sobre outros aspetos da lei eleitoral, da forma que fez. O Presidente não é um deputado e dever-se-ia abster, em minha opinião, de passar julgamento sobre aquilo que a Assembleia da República andou, ou deixou de andar, a fazer. É inapropriado ele declarar publicamente que a lei eleitoral deveria ter sido alterada». Concordo.
Eleições parlamentares 2022 (22): Nunca pareceu tão complicado
Nunca terá havido umas eleições tão problemáticas como estas: para além da incógnita que as sondagens alimentam sobre o vencedor e sobre a solidez da sua vitória, há também os numerosos arranjos governativos que delas podem decorrer.
Se a primeira incógnita estará resolvida amanhã à noite, outro tanto não se pode dizer das soluções de governo, que podem demorar dias ou semanas a encontrar, conforme os resultados, e nada garante que sejam minimamente estáveis.
2. Há uma assimetria óbvia quando às soluções de governo, conforme seja o PS ou o PSD a vencer, a qual resulta, quer da maior incompatibilidade programática e política entre o PS e os partidos à sua esquerda, quer do anúncio de demissão de António Costa, se o PS perder as eleições. Essa assimetria é especialmente vincada no caso de um partido vencer, mas o campo político adverso obtiver a maioria na AR.
Na verdade, depois da surpreendente declaração de Rio ontem à noite, mesmo que o PSD perca as eleições, pode bem haver uma "geringonça" ou, mesmo, uma coligação de direita, se as direitas juntas (incluindo o Chega) tiverem maioria parlamentar, ao passo que à esquerda a hipótese inversa está praticamente excluída, quer pela saída de Costa da liderança do PS, que deixa o partido sem condições, e mesmo sem legitimidade, para protagonizar a solução de 2015, quer pelo travo amarguíssimo deixado pelo rompimento político que consistiu na rejeição do orçamento e na abertura da crise política.
3. Importa sublinhar que na nossa história eleitoral desde 1976, as eleições foram em geral ganhas por maioria relativa (todas, exceto as de 1979, 1980, 1987, 1991 e 2005) e o partido vencedor só ficou confrontado com uma maioria do campo político oposto nas eleições de 2011, em que uma coligação eleitoral de direita (PSD+CDS) venceu as eleições, porém com uma maioria parlamentar de esquerda, o que gerou a "Geringonça".
Esperemos que essa situação excecional de discrepância política entre o partido vencedor das eleições, qualquer que seja, e a maioria parlamentar não se volte a verificar nas eleições de amanhã, para não complicar ainda mais o puzzle eleitoral.
4. Hipótese a não descartar em caso de disputa renhida, como a presente, é a de um partido ter mais votos mas menos deputados, por efeito de uma distribuição assimétrica da votação nos círculos eleitorais mais pequenos, onde as distorções da proporcionalidade podem ser maiores, tornando os deputados do partido mais votado mais "caros", em termos de número de votos, do que o partido concorrente à vitória.
Essa hipótese nunca ocorreu até agora, mas, a verificar-se, poderá ser contra o PS, por causa da tendencial vantagem do PSD nos círculos de menor dimensão do Centro e do Norte do País.
É evidente que numa democracia parlamentar o que conta é o número de deputados e não o número de votos, mas também é incontornável que uma tal situação abalaria a credibilidade do sistema proporcional e a autoridade política do partido vencedor, além de complicar ainda mais o encontro de uma solução governativa.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (21): Golpe de última hora de Rui Rio?
Desdizendo tudo o que até agora tinha dito sobre "deve-governar-quem-vencer-as-eleições" e sobre a repetida negação de qualquer acordo de governo com o Chega e rejeição de uma "geringonça de direita" em Lisboa, Rui Rio veio admitir explicitamente nesta entrevista de encerramento da campanha eleitoral, que no caso de o PS vencer as eleições mas houver uma maioria de direita, a direção do PSD pode decidir a favor de uma alternativa de Governo com a "direita toda junta", ou seja, incluindo o Chega!
Com esta surpreendente reviravolta do líder do PSD, revelando um estratégia escondida até ao último momento, que envenena o clima partidário na véspera das eleições, a decisão eleitoral de domingo ganha novos contornos e a equação governativa resultante das eleições torna-se ainda mais complexa. Preparemo-nos para o pior...
Eleições parlamentares 2022 (20): Jornalismo politicamente enviesado
Eleições parlamentares 2022 (19): Os partidos de Lisboa
1. O Diário de Notícias de hoje volta a agitar espantalho dos "eleitores-fantasma", que, além de aumentarem artificialmente a taxa de abstenção, poderiam «distorcer» também os resultados eleitorais.
Todavia, os tais eleitores a mais no território nacional são essencialmente os emigrantes que continuam com morada registada em Portugal, apesar de ausentes do País. Não são, portanto, eleitores inexistentes, sendo hoje em dia negligenciável o número de pessoas falecidas não decarregadas. Ora, ainda que possa haver alguma assimetria na distribuição dos eleitores ausentes pelos vários círculos eleitorais, não se vê como isso poderia alterar sensivelmente a repartição dos deputados pelos círculos, pelo que a alegada "distorção" quanto aos resultados eleitorais nunca deixará de ser marginal.
Quanto à abstenção artificialmente empolada, basta proceder ao devido desconto, de cerca de 10pp, e não a dramatizar, como se tende a fazer a cada eleição.
2. O que os catadores de distorções imaginárias no sistema eleitoral ignoram habitualmente é a distorção real que decorre do facto de o círculo de Lisboa eleger nada menos de 48 deputados (mais de 1/5 do total), permitindo a eleição de um deputado com cerca de 2% (ou menos), favorecendo os pequenos partidos com votação concentrada em Lisboa e com votação média no País muito menor.
Foi o que sucedeu em 2019, em que três partidos (Chega, IL e Livre) conseguiram representação no parlamento, via Lisboa, com pouco mais de 2%, mas cuja votação a nível nacional foi muito inferior (em alguns casos, metade), em prejuízo de outros partidos com distribuição territorial mais homogénea do seu apoio eleitoral.
É para acabar com esta distorção eleitoral e retirar o privilégio dos "nichos partidários" de Lisboa, que há muito tempo defendo a divisão dos grandes círculos eleitorais (Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro) e a fusão dos mais pequenos, diminuindo a assimetria entre eles, assim como a criação de um círculo nacional de dimensão razoável. Então os votos dos cidadãos nacionais passam a valer o mesmo, onde quer que votem, e deixará de haver a artificial fragmentação da representação parlamentar induzida a partir de Lisboa.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (18): Não podia ser mais claro
1. Nesta entrevista, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros e candidato a deputado, vem corroborar o que António Costa sempre fez questão de clarificar desde o início: estas eleições são para escolher, entre ele e Rui Rio, entre o PS e o PSD, quem deve governar o País.
Pela primeira vez, porém, ASS vem admitir explicitamente que, em caso de vitória por maioria relativa (hipótese mais do que provável), a solução de estabilidade governativa pode estar num "acordo de cavalheiros" negociado entre PS e PSD, assegurando ao governo minoritário do outro condições para governar.
2. Isto só pode dizer uma coisa, que já resultava obviamente das palavras de Costa e do seu compromisso de se demitir da liderança do PS caso perdesse as eleições: o PS só equaciona ser governo se sair vencedor das eleições, mesmo na hipótese de uma maioria conjunta das esquerdas. Por conseguinte, as coisas não poderiam ser mais claras para os eleitores à esquerda: só haverá governo de esquerda com a vitória eleitoral do PS.
Ao contrário das pretensões do Bloco e do espantalho político agitado por Rui Rio, o cenário da "Geringonça" de 2015 não está, nem nunca esteve, em cima da mesa nestas eleições - felizmente, direi eu.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Pandemia (62): Vale a pena continuar (bis)?
Eis os números de hoje da pandemia: 65.578 novos casos (sempre a subir), o que eleva o número atual de infetados ativos detetados para cima de meio milhão, exatamente 515 962; entre eles há apenas 2 313 internados (número a diminuir), dos quais somente 154 em UCI (idem); o número de mortos nas últimas 24 horas foi 42.
Em percentagem sobre o número de infetados (provavelmente subestimado por causa das infeções não detetadas, por assintomáticas), os números de casualties dão 0,45% de internados (grande parte dos quais foram hospitalizados por outros motivos, só lhes sendo detetado o Covid, sem sintomas, no hospital); 0,03% em UCI; 0,008% de mortes.Ora, considerando este quadro de baixa agressividade da atual vaga do Covid, será que - insisto em perguntar - vale mesmo a pena manter mais de um milhão de pessoas isoladas (os infetados mais os contactos de risco), com o correspondente impacto negativo na liberdade individual e na economia ("baixas por doença"), quando esse isolamento maciço nem sequer afeta a transmissão desenfreada do vírus?
Inteiramene de acordo com este especialista: "Relativamente aos confinamentos", Pedro Simas adiantou que, atualmente, "não são muito eficientes", até porque o país continua com uma taxa alta de infeções de SARS-CoV-2."Temos de assumir a nossa condição, e não estando o Serviço Nacional de Saúde em `stress´ (cuidados intensivos), não faz sentido isolar as crianças e famílias inteiras em casa, quando nem sequer é um confinamento absoluto", avançou.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (17): O guru do Bloco
O guru doutrinário e político do Bloco, que o PS elevou a membro do Conselho de Estado e a consultor do Banco de Portugal no âmbito da "Geringonça", acha que é o próprio PS «que está a montar a recuperação da direita», pelo que, depois de ter cavilosamente "desejado" a crise política e a dissolução da AR (que o Bloco e o PCP efetivamente provocaram deliberadamente ao rejeitar liminarmente o orçamento), Costa seria também o culpado de sua eventual derrota eleitoral, que as sondagens agora não excluem, no meio de uma campanha eleitoral em que Bloco e PCP têm feito questão de priviligiar o ataque ao PS...
O que admira é que ainda haja no PS quem esteja disponível para aturar este cinismo e desconchavo político do Bloco e admita repetir com ele a malfadada parceria que a "esquerda da esquerda" apunhalou a frio em plena AR (Et tu, Brutus!?). Com "aliados" destes à sua esquerda, o PS não precisa de inimigos políticos...
segunda-feira, 24 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (16): Comprometedora leviandade
1. Chega a ser chocante é a extrema ligeireza com que, nesta entrevista à Antena 1, o líder do PSD e candidato a primeiro-ministro explica a inesperada proposta de abandonar a gratuitidade constitucional do SNS e tenta desvalorizar o seu alcance, como se fosse pequena coisa passar a exigir a quem tenha meios um pagamento maior ou menor pelos cuidados de saúde de que necessite, de valor deixado à discricionariedade da maioria de cada momento.
É evidente que o pagamento dos cuidados afastaria muita gente do SNS, pondo em causa a sua universalidade, e afrontaria a valor primacial da igualdade dos portugueses perante a saúde, independentemente dos meios. Tal como no caso da escola pública, também no caso do SNS a gratuitidade é penhor da universalidade e da igualdade no acesso a um bem essencial numa sociedade decente.
2. É verdade que o PSD nunca se deu muito bem com o SNS tal como previsto na Constituição, ou seja, universal e (tendencialmente) gratuito para todos, quanto aos cuidados recebidos. Votou contra na Assembleia Constituinte; revogou-o mal chegou ao poder, num Governo da AD, e só Tribunal Constitucional o resgatou desse "assasssinato" político a frio; muito mais tarde, Passos Coelho propôs numa revisão constitucional abolir a gratuitidade, salvo para quem não tivesse meios, sujeitando as pessoas a "teste de recursos".
O que não deixa de supreender é que tal proposta - que vai bem com a lógica da direita liberal, de que "quem quer saúde paga-a", da "liberdade de escolha" e da redução de impostos - tenha sido levianamente recuperada por alguém que protesta "não ser de direita". Pelos vistos, entre a proclamação e a convicção vai uma longa distância.
A questão crucial suscitada por esta comprometedora proposta, que subverte um dos pilares do "Estado social" configurado na Constituição, é a de saber que confiança é que PSD pode inspirar quanto à manutenção dos outros pilares, como o ensino público e a segurança social pública.
Pandemia (61): Vale a pena continuar?
1. Segundo o Público de hoje, há quase um milhão de pessoas confinadas por causa da Covid (cerca de 9% da população), entre infetados e pessoas com contactos de risco, número obviamente a subir todos os dias, dada a elevada transmissibilidade da variante Ómicron.
Considerando que esse confinamento maciço não está a conseguir travar a transmissão e que na esmagadora maioria dos casos a infeção com esta variante é assaz inofensiva (sem sintomas ou com sintomas ligeiros de um vulgar resfriado) em pessoas vacinadas sem outros problemas de saúde, a pergunta que se tem de começar a colocar é saber se vale a pena insistir nesta vasta limitação da liberdade de movimento pessoal e no pesado impacto negativo sobre a atividade económica, à luz de um princípio constitucional elementar, que é o princípio da proporcionalidade entre os encargos e sacrifícios públicos e os motivos e objetivos que as justificam.
2. Justifica-se seguramente continuar a apostar na vacinação (terceira dose e crianças), recuperando o indevido atraso nessa tarefa; proteger especialmente as pessoas mais vulneráveis (lares, centros de dia e hospitais); obrigar ao uso de máscara e reservar a vacinados e/ou testados o acesso a lugares mais atreitos à contaminação (restaurantes, bares, eventos); e, obviamente, apelar à responsabilidade individual e coletiva na prevenção da contaminação.
Mas há que questionar se se justifica manter uma estratégia de contenção, que foi traçada antes da vacinação maciça e para uma variante muito menos contagiosa e muito mais perigosa, na atual situação, em que aquela deixou de ser eficaz.
Além do mais, é óbvio que o Estado não tem meios de controlar o respeito pelo confinamento - que depende, portanto, da autorresponsablidade dos próprios - e que ele próprio achou que não havia especial perigo na ida dos confinados às urnas no próximo domingo sem nenhma restrição especial. Ora, obrigações que que se não podem fazer cumprir, nem sequer censurar, não devem ser impostas.
Eleições parlamentares 2022 (15): As propostas eleitorais que não encontrei
1. Sem surpresa pessoal, na minha resposta ao inquérito "cego" do Público sobre um conjunto de propostas eleitorais dos partidos com representação parlamentar (mas não explicitamente identificadas com os respetivos partidos), confirmei que estou mais perto do PS e do PAN, por esta ordem, e mais afastado do Chega e do CDS (idem).
Infelizmente, para além de não fazer o pleno do programa de nenhum dos partidos de quem estou mais próximo, também não encontrei na lista várias propostas que há muito defendo, designadamente neste blogue, o que também me afasta de qualquer tentação de filiação partidária.
2. Assim, por exemplo, quanto a propostas políticas substantivas, recordo as seguintes, sem ordem de precedência:
- representação dos trabalhadores no conselho representativo (conselho de supervisão, conselho de administração) das grandes empresas, em termos a negociar na concertação social, e participação nos lucros das empresas, em função do aumento da respetiva produtividade;
- restabelecimento do imposto de sucessões e doações sobre os beneficiários de elevados montantes e sua afetação ao financimento da segurança social;
- avaliação de desempenho das carreiras especiais, incluindo assiduidade e produtividade, para efeitos de progressão (professores, polícias, Ministério Público, etc.);
- fim do privilégio pensionístico de magistrados, embaixadores, etc., cujas pensões são sempre iguais à correspondente remuneração no ativo, aliás sustentadas pelas contribuições de todos os trabalhadores, sob o regime geral de pensões, sujeitas a uma "taxa de substituição" cada vez menor;
- sujeição das prestações sociais não contributivas a "condição de recursos", de modo a beneficiarem somente quem delas efetivamente precisa;
- pôr fim ao estacionamento automóvel gratuito, ressalvando a preferência dos moradores, a começar pelo proporcionado pelos serviços públicos aos seus funcionários e utentes, para pôr fim a privilégios indevidos e à ocupação privada do espaço público, assim incentivando o uso do transporte coletivo, em vez do automóvel individual;
- cessar o financiamento do orçamento do Estado, alimentado pelos contribuintes de todo o País, ao metropolitano de Lisboa e do Porto, considerando a responsabilidade municipal ou intermunicipal pelos transportes públicos urbanos.
3. No que respeita a propostas de reforma política, seleciono as seguintes, também sem ordem de prioridade:
- criar um círculo eleitoral nacional (elegendo cerca de 25 deputados) e redimensionar os atuais círculos territoriais, com um mínimo de 3-5 deputados e um máximo de 9 deputados e valorizar todos os votos, em qualquer parte do território nacional, e reduzir a assimetria entre círculos eleitorais;
- pôr as Regiões Autónomas a contribuir congruamente para o financiamento das "despesas gerais da República" (órgãos de soberania, desde o PR aos tribunais, forças armadas e forças de segurança, contribuição financeira para a UE e para organizações internacionais, etc.), não havendo nenhuma justificação para que elas sejam exclusivamente custeados pelso contribuintes do Continente;
- constitucionalizar o limite ao défice orçamental e à dívida pública (embora deixando o critério preciso para a LEO), assim como limitar o crescimento da despesa corrente abaixo do crescimento da despesa orçamental total, para favorecer a despesa de investimento;
- aumentar a remuneração dos membros do Governo, de modo a não afastar pessoas capazes que não estejam disponíveis para perder muito dinnheiro ao serviço do Estado, assim como o prémio de exlusividade dos deputados, para reduzir o número de deputados em acumulação;
- estender o limite de mandatos políticos sucessivos a todos os titulares de cargos políticos, e não somente ao PR e aos presidentes de câmara municipal, como hoje.
4. Importa sublinhar que poucas destas reformas carecem de revisão constitucional, embora algumas delas necessitem de aprovação por maioria de 2/3, como, por exemplo, a dos círculos eleitorais, pelo que, num caso e noutro, só uma convergência entre o PS e o PSD pode permitir a sua aprovação.
domingo, 23 de janeiro de 2022
Eleições parlamentares 2022 (14): E agora?
1. A confirmarem-se nas urnas daqui a uma semana os resultados eleitorais previstos em sondagens dos últimos dias, tratar-se-ia da mais inesperada derrota eleitoral de um Governo em funções e na mais surpreendente vitória eleitoral da oposição, desde a instauração do regime democrático em 1976.
Com efeito, nunca um Governo perdeu eleições com a economia numa fase de crescimento robusta, sem paralelo há décadas, e com a taxa de desemprego a descer consistentemente, com o rendimento pessoal a crescer e uma inflação baixa, apesar da sua subida no resto da União, e com o "balanço social" favorável (pensões, prestações sociais, etc.) de que se pode ufanar. Se a isto somarmos o controlo da pandemia e a extraordinária margem de crescimento aberta pelo PRR, com os generosos fundos da UE, pode dizer-se, sem exagero, que Portugal não tem perspetivas tão favoráveis desde os anos imediatamente posteriores à entrada na então CEE, nos anos 80 do século passado.
Como explicar então o improvável desenlace que agora se apresenta como possível e que aparentemente tem a ver sobretudo com a opção dos muitos eleitores inicialmente indecisos em desfavor do PS, desde o início dos debates eleitorais?
2. Estas situações não têm uma explicação única, mas penso que a principal tem a ver com uma inconvincente estratégia eleitoral do PS. Decidido a afastar a repetição de uma aliança à esquerda - por causa da "traição" na rejeição do orçamento, que desencadeou a crise política, e da crescente rejeição dessa solução no eleitorado centrista -, mas incapaz de assumir a opção de um entendimento político pós-eleitoral com o PSD em caso de vitória com maioria relativa - por oposição da ala esquerda do partido -, a liderança do PS optou pela "fuga para a frente" da aposta de cabeça numa improvável maioria absoluta.
Em contraste com a abertura de Rui Rio a um apoio negociado do PSD a um governo minoritário do PS, em troca de um compromisso recíproco dos socialistas, o PS optou incompreensivelmente por não encarar qualquer outra solução - salvo a de governo minoritário à vista, "à Guterres", solução claramente imprestável nas atuais circunstâncias -, preferindo refugiar-se num isolacionismo que contradiz o investimento inicial na estabilidade política e que afugenta muitos eleitores favoráveis a soluções negociadas ao centro, mesmo quando opostos a um governo de "bloco central".
3. Agora que a inconsequência da estratégia adotada parece estar à vista e que a miragem da maioria absoluta deve dar-se por devidamente enterrada, António Costa ainda está a tempo de infletir caminho, de resistir às "viúvas da Geringonça" internas e à chantagem da esquerda radical contra uma suposta "deriva à direita" do PS, tornando conhecido o seu "plano B", no caso de vencer as eleiçoes com maioria relativa, como aqui aventei há um mês.
Coragem política, clareza na mensagem e respeito pelos eleitores precisam-se!
sábado, 22 de janeiro de 2022
Não concordo (28): Contra a "democracia paralela"
1. Não vejo como é que se pode apoiar esta abstrusa ideia de instituição uma "assembleia de cidadãos" de Lisboa, composta por sorteio dos cidadãos eleitores, por iniciativa do Presidente da Câmara Municipal, paralela e à margem da Assembleia Municipal recém-eleita, com caráter permanente e destinada a debater e a fazer recomendações sobre assuntos da gestão municipal não identificados.
É certo que nos últimos anos, em alguns países, como, por e exemplo, na Irlanda (na imagem) e na França, têm sido instituídas, a nível nacional, assembleias de cidadãos escolhidos aleatoriamente, de acordo com certos critérios de representação sociológica, para debater e fazer recomendações (ao parlamento e /ou ao governo) sobre certos temas específicos (por exemplo, revisão constitucional e igualdade de género na Irlanda, questão climática na França). Mas trata-se de iniciativas ad hoc, sem caráter permanente e destinadas a abordar temas pré-selecionados, e não de assembleias permanentes paralelas aos parlamentos nacionais, para se ocuparem de qualquer assunto. São diferenças essenciais em relação ao referido projeto de Lisboa.
2. As "assembleias de cidadãos" são instrumentos que visam alargar a participação cívica na vida política aos cidadãos comuns de todo o país, que normalmente não são mobilizados pelo ativismo das minorias urbanas que, em geral, protagonizam a chamada "democracia participativa".
Mas continuam a ser mecanismos sem poderes decisórios, destinados a ajudar a formação da opinião pública acerca dos temas que lhes são confiados para estudar, organizar consultas e debates com especialistas e, no final, apresentar recomendações, sobre as quais os órgaos do poder político mantêm plena liberdade de decisão, como titulares exclusivos da representação política eletiva, única reconhecida como legítima pela Constituição.
Há quem defenda a representação política por sorteio contra a representação eleitoral e a democracia das assembleias de cidadãos contra a democracia de partidos. Mas as "assembleias de cidadãos" só podem ser admitidas como um instrumento adicional da democracia participativa, e não como arma de combate contra a democracia-representativa-de-partidos.
3. Como tem sucedido noutros países, nada impede que estas experiências de participação política alargada sejam estendidas ao poder local entre nós, enquanto forma de "aprofundamento da democracia participativa" (nos termos do art. 2º da CRP).
Contudo, num Estado de direito constitucional, como o nosso, as entidades administrativas só dispõem dos poderes conferidos por lei, não havendo, porém, nenhuma lei a prever a instituição de tais assembleias por iniciativa oficial das câmaras municipais. Além disso, parece óbvio que o regulamento de instituição e funcionamento dessas assembleias só pode ser aprovado pela Assembleia Municipal, até porque precisa de orçamento.
Em segundo lugar, uma eventual "assembleia de cidadãos" de Lisboa não pode ser instituída como «[entidade] permanente e representativa da população lisboeta», nem com funções em aberto, como representação alternativa dos cidadãos da capital, o que é verdadeiramente descabido e um contrassenso democrático.
Num município como Lisboa, onde o executivo não goza de maioria na Assembleia Municipal, pode ser tentador intrumentalizar a "assembleia de cidadãos" como instituição permanente de contraposição entre uma pseudomaioria sociológica e a maioria política da Assembleia Municipal. Mas é uma tentação que afronta o modelo de democracia representativa constitucionalmente instituído e subverte a noção de partipação democrática e que, por isso, deve ser atalhada à partida, se necessário, em última instância, no Tribunal Constitucional.
[revisto]