quinta-feira, 16 de março de 2023

Corporativismo (42): Alhos e bugalhos

1. Não tem nenhuma razão o advogado João Correia, quando acusa de inconstitucional a nova lei das ordens profissionais, no que respeita à Ordem dos Advogados, por alegadamente ofender o preceito constitucional sobre a proteção do patrocínio forense.

A verdade, porém, é que a nova lei não afeta em nada as imunidades do mandato forense, que existem independentemente de os adogados estarem, ou não, organizados em corporação pública, o que, aliás, sucede em muitos países. O tal preceito constitucional é totalmente irrelevante para a reforma da OA, em consequência da nova lei, pelo que decidiu bem o Tribunal Constitucional ao ignorar essa questão.

Trata-se, pura e simplesmente, de misturar alhos com bugalhos.

2. Enquanto ordem profissional, com funções de representação oficial da profissão e de regulação e disciplina profissional (por delegação do Estado), a OA em nada se distingue das demais, incluindo compartilhar, e de forma agravada, dos três grandes vícios de todas elas, designadamente: 

   - privilegiar descaramente a sua função sindical de defesa de interesses profissionais, em prejuízo da sua missão pública de supervisão e disciplina profissional, claramente negligenciada; 

   - cultivar aplicadamente a tradicional pulsão "malthusiana", restringindo abusivamente a liberdade de entrada na profissão (como se mostrou recentemente com a notícia de reprovação de mais de 80% dos candidatos no exame de acesso à profissão!); 

   -  defender ciosamente o amplo monopólio profissional para a prática de "atos próprios dos advogados", que nada justifica sejam exclusivos deles e vedados a outros profissionais (salvo o patrocínio judiciário), sendo uma forma privilegiada de restrição da concorrência na prestação de serviços profissionais.

Por conseguinte, não existe o mínimo fundamento para excecionar a AO da reforma da lei-quadro das ordens profissionais (aliás, modesta). Pelo contrário!

Adenda
Seguindo uma regra comum na profissão, também João Correia tenta desligar a Ordem dos Advogados do corporativismo do chamado Estado Novo, invocando que ela foi criada antes da instituição do regime corporativo. Mas é tarefa votada ao fracasso: ela foi criada logo em 1926 pela Ditadura militar que deu origem ao Estado Novo e foi inequivocamente integrada na organização corporativa desde o seu início, em setembro de 1933, através do diploma sobre os "sindicatos nacionais" (que abrangia os trabalhadores por conta de outrem e as "profissões livres"), o qual estabelecia explicitamente que «os sindicatos nacionais dos advogados, dos médicos e dos engenheiros podem adotar a denominação de "Ordens"». A função de representação e defesa profissional das ordens é de origem incontornavelmente corporativista. É feio tentar rever oportunisticamente a história.

Adenda 2
Acresce que os advogados (junto com os solicitadores) constituem o único caso de manutenção de um sistema privativo de segurança social de base profissional (a CPAS), aliás sem base constitucional, que é outro traço inequívoco do corporativismo "estado-novista".

Adenda 3
Nem de propósito para confirmar a persistência da memória corporativista na OA, vem a notícia de hoje, segundo a qual a respetiva Bastonária vai propor ao Governo a alteração do regime de segurança social dos advogados. Quando é que a OA se convence de que, como entidade pública administrativa que é, só pode atuar no âmbito das suas específicas atribuições legais e que entre elas não se conta, nem pode contar, a segurança social dos seus membros?

quarta-feira, 15 de março de 2023

Barbárie tauromáquica (14): Menos uma!

Eis que há mais uma praça de touros desativada e destinada a outro fim bem mais civilizado, ou seja, a hotel. Bela ideia!

Só é pena ser tão lento o ritmo de reforma dessas arenas de tortura animal para gáudio público...

terça-feira, 14 de março de 2023

Bloquices (25): Nem as pensam

O Bloco de Esqueda vai propor à AR que os advogados passem a ter opção entre manterem-se no seu regime privativo de segurança social (CPAS), ou migrarem para o sistema geral de segurança social - o que é um disparate.

Para além de os critérios de atribuição e de cálculo das pensões não ser idêntica nos dois regimes, essa opção não faz nenhum sentido em "sistemas de repartição", em que as pensões dos aposentados são pagas pelas contribuições de quem está no ativo. De facto: por um lado, as pensões de quem migrasse para o regime geral seriam pagas por este (ou seja, pelos trabalhadores em geral), apesar de as suas contribuições terem sido feitos para a CPAS? E como seriam financiadas as atuais e futuras pensões a cargo da CPAS, se uma percentagem importante dos advogados migrasse para o regime geral, deixando de contribuir para o fundo de pensões daquela?

falsas soluções fáceis...

sábado, 11 de março de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): Desvio de poder

1. Acentuando a sua compulsiva vertente de comentador político nesta entrevista dada à RTP e ao Público - em que, mais uma vez, falou sobre tudo e mais alguma coisa -, o Presidente da República permitiu-se fazer publicamente um balanço assaz crítico do primeiro ano do atual mandato governativo, assumindo o papel da oposição, o que manifestamente não cabe na sua função constitucional de "poder moderador", ou seja, de garante do regular funcionamento das instituições, de prevenção de abusos da maioria governamental e de proteção dos direitos da oposição. 

No nosso sistema político-constitucional, o julgamento político do Governo não cabe ao PR, mas sim ao parlamento, perante o qual aquele é politicamente responsável. Por maior que seja a liberdade de expressão política do PR, ela deve ser instrumental em relação às suas funções constitucionais, não devendo servir para usurpar ilegitimamente o papel da oposição e da Assembleia da República, afrontando a separação de poderes.

2. Mais grave ainda, sob o ponto de vista institucional, é a insistência de MRS no apoio à greve dos professores, cuja luta se permitiu qualificar explicitamente como «justa», alimentando a continuação da greve e indo ao ponto de "convidar" o Governo a passar a sua "linha vermelha" nas negociações em curso com os sindicatos, no que respeita à recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período de intervenção financeira externa.

Tudo é negativo nesta abusiva intervenção presidencial neste litígio sobre uma política sectorial: é incompreensível que ele intervenha publicamente num conflito entre o Governo e os sindicatos e tome partido pelos segundos contra aquele e é péssimo que, em vez de chamar a atenção para o privilégio profissional dos professores - uma carreira plana, sem verdadeira avaliação de desempenho, em que virtualmente todos podem chegar ao topo da carreira -, opte por intimar o Governo a abrir os cordões à bolsa, agravando a despesa corrente permanente e pondo em causa o equilíbrio das contas públicas.

Acontece, que, segundo a Constituição, é ao Governo, em exclusivo, que cabe a condução das políticas públicas, pelas quais é politicamente responsável perante a AR e os eleitores, bem como, no que respeita à responsabilidade orçamental, perante a União Europeia. É este quadro institucional de competência e de responsabilidade política que a indevida ingerência do PR lamentavelmente subverte.

Adenda
Compreende-se bem que o PS não queira abrir um litígio político com o PR, apesar da provocação deste. Mas bastava uma protocolar declaração de que "por princípio, o PS não comenta os comentários do PR". Ir ao ponto de considerar a entrevista presidencial como uma «análise equilibrada» é puro cinismo político (para dizer o menos...). 

Adenda 2
Os dirigentes do PSD que rejubilaram com a ingerência presidencial na área governativa considerá-la-iam aceitável, se fossem eles Governo?!

 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Não concordo (39): Contra a irresponsabilidade da ICAR

Discordo deste texto de Luís Aguiar-Conraria no Expresso de hoje, a propósito dos abusos de menores por padres

Apesar de, tal como ele, não ser crente, penso ter direito, não somente exigir ao Estado que não confira à Igreja e seus sacerdotes uma imunidade penal e civil, de que não podem gozar no Estado de direito constitucional que somos, mas também exigir algo à própria ICAR, como organização beneficiária de inúmeras "ajudas de Estado", também financiadas com os meus impostos - que ela assuma a responsabilidade institucional pelos danos físicos e morais causados às vítimas pelos seus clérigos, prevalecendo-se dessa qualidade, e que colabore lealmente na investigação e julgamento dos casos reportados pela comissão independente, em vez de tentar "lavar as mãos" do processo, como tem ensaiado fazer até agora.

Seria intolerável juntar a irresponsabilidade ao continuado encobrimento.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Aplauso (28): Levar a sério a independência dos juízes

Defendo desde sempre que os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência dos juízes não consentem que os juízes desempenham cargos políticos ou equiparados. 

Por isso, embora menos drástica, considero ser de apoiar esta proposta do CSM, no sentido de só admitir essa "migração política" dos juízes mediante uma licença sem vencimento e um período de "nojo" de três anos antes de retomar funções judiciais.

Quando a Constituição se aproxima do meio século de vida, é tempo de levar a sério a independência política dos juízes, pondo fim a esse reiterado desvio constitucional, em que irresponsavelmente governos e juízes têm incorrido.

Adenda
Só me parece que a proposta deveria igualmente proibir a nomeação de titulares de cargos políticos para funções judiciais, como sucedeu há anos quando a ministra da justiça de então, que era magistrada do MP, foi nomeada e tomou posse como juíza do STJ!


domingo, 5 de março de 2023

Não com os meus impostos (11): A habitação para todos a cargo do Estado?

1. A ministra da Habitação - que já como secretária de Estado se fizera notar, ao afirmar que o Estado devia garantir a todos o direito a habitar nas zonas mais ricas -, veio agora dizer que a habitação é um «direito de todos, cuja responsabilidade deve ser assumida pelo Estado» e que a política da habitação em curso «deve ficar no País (...) como o SNS ou a escola pública».

Trata-se, porém, de uma comparação despropositada, pois, enquanto o SNS e a escola pública (ambos previstos na Constituição com meios de assegurar os correspondentes direitos sociais) são serviços públicos prestacionais universais e gratuitos, a Constituição não prevê obviamente nenhum "serviço nacional de habitação", e a obrigação pública de garantir o direito à habitação é necessariamente supletiva, em relação a quem não consiga arranjar habitação decente pelos próprios meios. 
Trata-se, portanto, de misturar alhos com bugalhos, comparando arbitrariamente coisas não comparáveis.

2. A comparação é tanto mais infeliz, quanto é certo que tanto o SNS como a escola pública, além do seu crescente custo orçamental, encontram-se em processo de acentuada perda de cobertura social, mercê da fuga para o setor privado, o que já se não limita às camadas sociais de mais elevado rendimento, correndo ambos o risco de se virem a tornar, a prazo, reserva de quem não dispõe de meios de acesso à saúde e à escola privadas.

A pergunta que precisa de resposta é a de saber como é que vai ser financiada a pesada fatura orçamental permanente de uma política de habitação não estritamente supletiva. Aumentar a despesa pública estrutural não é seguramente uma boa ideia, quando se acabar o maná do PRR e quando a entrada dos países do leste (incluindo a Ucrânia) na UE fizer "secar" os próprios fundos de coesão para Portugal.

quinta-feira, 2 de março de 2023

SNS em questão (24): Os erros custam caro

1. O estudo em que se baseia esta notícia do Jornal de Notícias de ontem mostra como a redução do horário de trabalho na função pública das 40 para as 35 horas custou vários milhões de horas de trabalho por ano ao SNS e como as numerosas contratações posteriores mal deram para tapar esse enorme rombo. 

Nada que não tivesse podido ser antecipado na altura, bastando fazer contas elementares. Mas o facilitismo político e o peso da "constituency" eleitoral da função pública levaram a melhor.

2. Sabemos agora o impacto negativo dessa desafortunada decisão sobre o SNS. Não é dificil estimar também o seu elevado custo orçamental continuado em mais despesa pública.

Parece evidente que, em vez de gastar muitos milhões de euros a mais para compensar a perda de horário de trabalho, pagando mais pelo mesmo serviço, mais valera tê-los investido na subida da remuneração dos profissionais e na melhoria dos serviços, atenuando a baixa atratividade do SNS.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Corporativismo (41): A Intersindical das Ordens

1. Como AQUI se defendeu, o Tribunal Constitucional rejeitou as acusações de inconstitucionalidade contra a nova lei-quadro das ordens profissionais. É de saudar esta decisão, que vai permitir pôr alguma ordem na deriva corporativista e no crescente abuso e desvio de poder das ordens profissionais.

Mas a reação das ordens, que - em vez de acatarem e respeitarem o veredicto judicial, como autoridades públicas que são - ameaçam com uma rebelião e tranformam o CNOP numa espécie de Intersindical corporativa, mostra que o Governo vai precisar de um módico de coragem política para fazer cumprir a lei, desde já quanto à revisão dos estatutos das ordens.

2. Infelizmente, nem a nova lei nem o Presidente da República questionaram a raiz de todos os problemas, que é a impossível coabitação da defesa do interesse público na regulação e disciplina das profissões com a representação e defesa de interesses de grupo. A autorregulação e a autodisciplina profissional não impõem essa fatal promiscuidade, que acaba sempre por subjugar o primeiro aos segundos. 

Vai sendo tempo de pensar em separar as duas coisas. As autoridades públicas, entre as quais as ordens se contam, só devem servir para defender o interesse público, tal como definido pelo Estado, e não para representar e defender interesses profissionais, tarefa que, numa democracia liberal, só pode relevar da liberdade de associação e de ação coletiva privada.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Lisbon first (28): O Governo da capital

 

Benificiando de cerca de 2300 milhões de euros de fundos, o PRR é um maná para Lisboa.

Como se não bastasse ter as vantagens de alojar as instituições centrais do Estado - ministérios, tribunais centrais, institutos públicos, empresas públicas, museus, teatro nacional, ópera, etc. -, a capital beneficia também da generosidade do Estado no que respeita a despesas que, segundo normais regras de descentralização territorial, não lhe deviam caber, como o metropolitano, as ajudas aos transportes públicos urbanos, a habitação, etc. etc. Por isso, já não surpreende mais este privilégio na repartição do PRR.

Visto de longe, o Governo da República parece ser, antes de mais, o Governo da capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não dá para entender (30): Deriva corporativista

1. Depois de, ao longo destas décadas, ter sido campeão na proliferação e banalização das ordens profissionais (até há uma Ordem dos Economistas!), o PS vai mais longe, propondo de novo ressuscitar a Casa do Douro como "associação pública", ou seja, como entidade de representação profissional oficial, unicitária e obrigatória da viticultura da região demarcada do Douro, regressando a 1932, nos primórdios do corporativismo do Estado Novo, e ao arrepio do modelo de autorregulação interprofissioal vigente, com base em associações profissionais livres, aliás comum a todas as regiões demarcadas.

É evidente que, para ser congruente e respeitar o princípio da igualdade, o PS deveria propor também a recriação do antigo Grémio dos Exportadores e restaurar o modelo corporativo nas demais regiões vinícolas. Como o não faz, torna-se evidente que a recriação da Casa do Douro como organismo oficial obedece a uma motivação puramente regionalista e oportunista.

2. Aprofundando a minha posição anticorporativista, venho defendendo nos últimos anos (por exempo, AQUI e AQUI) que a representação oficial de certas profissões não é compatível com a democracia liberal, baseada na liberdade e no pluralismo de associação, na separação entre interesse público e interesses privados e na exclusiva dedicação da Administração pública à defesa do interesse público.

Mesmo não indo tão longe, creio ser consensual a ideia de que o monopólio de representação profissonal oficial só se pode justificar, caso ela seja imprescindível ou pelo menos necessária para o desempenho das tarefas públicas confiadas pelo Estado às entidades profissionais, no quadro da autorregulação e autodisciplina profissional, como se tem entendido, até agora, ser o caso das ordens profissionais.

É certo que, para tentar contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a uma anterior tentativa de  recriação da Casa do Douro como entidade pública associativa, a projeto do PS entrega-lhe agora o desempenho de algumas tarefas públicas, como o registo oficial dos viticultores e o respetivo cadastro predial, expropriadas ao Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro (IVDP), mas não se vê em que é a execução de tais tarefas puramente burocráticas exige a representação oficial, unicitária e obrigatória dos viticultores do Douro. Não existe nenhuma correlação orgânica entre as duas coisas.

A suposta causa não justifica a consequência.

3. Independentemente da questão constitucional, não vejo como é que politicamente esta deriva corporativista do PS pode ser compatível com as suas próprias fontes doutrinárias como partido social-democrata, designadamente o liberalismo, o republicanismo, a democracia e os direitos sociais. 

Nenhuma dessas fontes legitima a opção corporativista e várias delas a contrariam. Numa democracia liberal e republicana, a representação profissional releva da liberdade de associação e o Estado cuida exclusivamente do interesse público e não de interesses de grupo, por mais politicamente relevantes que estes sejam.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Não concordo (42): O Estado senhorio

1. Um aspeto negativo no pacote governamental de medidas para a habitação, que não tem merecido a devida atenção, consiste em fazer impender sobre o Estado central - e não sobre os municípios, como deveria ser -, as dimensões "prestacionais" do direito à habitação, incluindo a disponibilização de terrenos para construção, a oferta pública de casas para arrendamento, ou a tomada de arrendamento de casas privadas para subarrendamento. 

Com tais medidas, além de regulador do setor e da utilização de instrumentos fiscais e financeiros, o Estado torna-se também um grande senhorio nacional, arrendando, reparando casas, exigindo a cobrança de rendas, entrando em litígios judiciais, etc., etc.

Trata-se de uma visão hipercentralista e governamentalista, que contraria a solução municipalista que é adotada em geral noutros países.

2. Sucede, porém, que a Constituição não se limita a consagrar o princípio da descentralização territorial do poder público, mas também o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado só deve assumir as tarefas públicas que não possam ser bem desempenhadas pelas coletividades infraestaduais, designadamnte os municípios.

Ora, não existe nenhuma razão para pensar - aliás, tendo em conta os exemplos alheios - que os municípios, se dotados dos meios financeiros apropriados, não estariam em melhores condições, desde logo, a proximidade, para inventariar e responder às carências habitacionais nos seus munícipes.

Aparentemente, o Governo quis tirar rápido partido da "cornucópia" do PRR para fazer um "brilharete político", cooptando essa tarefa em susbtituição dos municípios. Além do princípio constitucional da subsidiariedade, escandalosamente ignorado, a outra vítima é a consistência do discurso do Governo e do PS em prol da descentralização

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (53): A guerra também é nossa

Nesta entrevista de hoje ao Público sobre a Guerra da Ucrânia, em que se mostrou inteiramente alinhado com o discurso bélico ocidental, o Primeiro-Ministro subscreveu também a posição de que só Kiev «tem legitimidade para definir qual é o momento e quais são os termos e as condições para negociar a paz», pelo que os aliados devem abster-se de interferir nesse processo.

Permito-me discordar desssa posição. Um ano depois de iniciado, o conflito é, cada vez mais, uma guerra também dos Estados Unidos e, especialmente, da UE: no fornecimento de armas e no treino da sua utilização, no acolhimento dos refugiados, no financiamento maciço do orçamento e da economia da Ucrânia, sem falar no custo astronómico da sua reconstrução pós-bélica. Quanto mais a guerra se prolonga, mais esses custos se elevam, à custa dos orçamentos e dos contribuintes europeus.

Ora, se a guerra também é nossa, porque a pagamos, não podemos deixar de ter uma palavra sobre o momento e as condições para lhe tentar pôr termo.

Adenda
Um leitor entende que a Europa está "tramada", porque o Presidente dos EUA «vai querer prolongar a guerra até às eleições presidenciais do próximo ano», utilizando-a como trunfo eleitoral; desta vez na guerra de Washington contra o velho inimigo do século passado, «não há soldados americanos a morrer» e os Estados Unidos até estão a ganhar economicamente com ela. Penso que tem razão.

Não concordo (41): O caso do arrendamento compulsivo

1. Independentemente da questão da sua desconformidade constitucional (sobre que me pronuncio abaixo), considero um erro político a proposta de arrendamento compulsivo das habitações "devolutas" ao Estado no novo "pacote" de políticas de habitação.

Por um lado, os custos da sua implementação - dificuldades práticas de aplicação e, previsivelmente, um elevado contencioso entre proprietários e Estado - podem vir a superar as suas discutíveis vantagens. Por outro lado, sendo a falta de confiança no Estado por parte de investidores e proprietários um dos principais fatores do défice de construção e de oferta no mercado de arrendamento, uma medida tão intrusiva e tão "ideológica" como esta só pode agravar essa desconfiança. Desde há muito se sabe que a insegurança e a imprevisibilidade quanto aos direitos de propriedade são fatais para o investimento.

Um provável tiro pela culatra, portanto.

2. Quanto à questão constitucional, não concordo nem com quem entende que se trata de uma «medida equiparada à expropriação» (e, logo, inconstitucional à partida, por falta de previsão na CRP), nem com quem defende, inversamente, que não há nenhum problema, em virtude da «função social da propriedade».

Não tenha dúvidas de que, embora o direito à habitação (tal como os demais direitos sociais) seja exigível apenas ao Estado (em sentido amplo) e não aos proprietários privados, a sua realização por aquele pode, porém, justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias de terceiros, como é o direito de propriedade e a liberdade contratual. Ponto é que se preencham os requisitos cosntitucionais da necessidade e da proporcionalidade das restrições em causa.

Ora, o que pode justamente questionar-se é saber se o mesmo objetivo - ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento - não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento.

Tendo a pensar que sim.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Economia social de mercado (5): Cogestão, porque não?

1. Estive hoje no lançamento deste livro em Coimbra por duas boas razões: porque prezo muito o autor e porque o tema me interessa, académica e politicamente.

Trata-se de uma abordagem acessível de um tema pouco debatido entre nós, a saber, a representação dos vários stakeholders, e não somente dos stockholders (acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades. A questão tem a ver sobretudo com a participação de representantes dos trabalhadores da empresa, como sucede há muitas décadas na Alemanha ("cogestão"), solução que entretanto se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos.

Em Portugal, porém, apesar de a própria Constituição impor a participação dos trabalhadores no governo das empresas públicas - o que, aliás, não é, em geral, cumprido -, o tema não tem entrado na agenda política nem sindical.

2. Desde há muito que defendo a participação dos trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão (por exemplo, AQUI, AQUI, AQUI e AQUI), considerando que essa solução faz todo o sentido no âmbito de uma "economia social de mercado", onde as empresas não podem limitar-se a "criar valor" para os acionistas. 
Tenho de constatar, porém, que o partido político que deveria lutar por essa reforma, que é o PS, não tem pegado nessa bandeira da social-democracia europeia - sendo essa uma das falhas que apontei no programa eleitoral do PS de 2022 -, e nem sequer a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos pelo partido ou a submeter à consideração do Conselho Económico e Social.
O facto é que não vejo explicação para tal opção política!

Adenda
Verifico que no seu projeto de revisão constitucional o PS propõe o alargamento do direito à representação dos trabalhadores aos órgãos sociais das empresas privadas, nos termos a definir por lei, embora sem adiantar nenhuma explicação para esta pequena revolução político-doutrinária. Resta saber se esta importante inovação vai merecer o investimento político necessário para recolher o apoio do PSD.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Este país não tem emenda (34): Puro egoismo proprietário

Não deixa de ser estranha a convocação de um referendo sobre o alargamento do estacionamento pago - apesar de a Constituiação, por razões óbvias, proibir os referendos sobre matéria tributária (em que se incluem as taxas) -, quando era evidente que a rejeição venceria por larga margem, como se verificou.

Em Portugal, a generalidade das pessoas continua a entender que não tem de incluir os custos de estacionamento no custo do automóvel, por achar que tem direito a estacionamento gratuito. Ora, (i) não existe nenhum direito privado a ocupar livremente o espaço público e (ii) e enquanto houver estacimento gratuito, as cidades vão continuar a ser invadidas por automóveis, tornando a vida urbana num inferno.

O referendo de Benfica é uma manifestação de puro egoismo proprietário e de completa insensibilidade perante a degradação da qualidade de vida urbana.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Não concordo (40): Confessionalismo escondido com o gato de fora

1. É fácil vencer um argumento contra um adversário inventado, como neste texto sobre a polémica do "palco-altar" da JMJ projetado pela CML.

Com efeito, que eu saiba, nenhum constitucionalista acusou de inconstitucionalidade «emprego de dinheiros públicos na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa», porque isso seria tonto. Mas uma coisa é Estado "cooperar" na realização da JMJ - como, aliás, apoia outras iniciativas sociais e culturais da Igreja Católica -, outra coisa é, como assinalei aqui, substituir-se à Igreja Católica (ou a qualquer outra) na planificação e construção de equipamentos especificamente religiosos (neste caso um altar, com cruz e tudo, e uma capela), o que só pode ser exclusivo delas.

2. Se, em nome de um oximoro conceptual, como "laicismo cooperativo" (e já agora, seletivo), se considerasse admissível tal transferência de responsabilidades religiosas para Estado, então teríamos de admitir, aliás ao abrigo do princípio da igualdade e não discriminação, que ele assumisse iguais incumbências em relação a outras religiões, dedicando-se, por exemplo, à planificação, financiamento e execução de sinagogas, mesquitas, templos evangélicos, etc.

Por mais flexibilidade que possa ser dado ao princípio da separação entre Estado e as igrejas (sem exceção), dela deve estar, porém, excluída a possibilidade de ele comportar o desempenho pelo primeiro de tarefas especificamente religiosas das segundas. Separação quer dizer, pelo menos, a cada lado a sua própria jurisdição, sem invadir a do outro (mesmo que este agradeça...).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Praça Schuman (14): Democracia e governo da UE

No sábado que vem, dia 11 de fevereiro, vou participar neste programa de pós-graduação sobre direito da UE, com uma palestra sobre a democracia e o sistema de governo da União.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (52): Uma receita para o desastre

1. A notícia de que o Chega exige que o Governo declare a Rússia como Estado terrorista permite sublinhar que há um óbvio plano em marcha para envolver diretamente a UE na Guerra da Ucrânia

Na verdade, impulsionado por Kiev e pelos "falcões da guerra" dentro da UE (Polónia, países bálticos e escandinavos), está em curso avançado um processo tendente a: (i) fazer entrar a Ucrânia rapidamente na UE, mesmo estando em guerra (o que é insano), e deixando para trás os países balcânicos, que há muito esperam a adesão, e a (ii) levar as instituições da União e todos os Estados-membros a qualificar a Rússia, não apenas como agressor, mas também como "Estado terrorista".

2. Que importância é que tem essa qualificação? Decisiva. 

Se conseguirem os seus objetivos, a primeira coisa que a Ucrânia faria como membro da União seria ativar a "cláusula de solidariedade", estabelecida no art. 222º do TFUE, segundo o qual, «em caso de ataque terrorista» contra um Estado-membro, «a União mobiliza todos os meios ao seu dispor, incluindo meios militares disponibilizados pelos Estados-membros».

Ou seja, um guerra direta entre a UE e a Rússia, preto no branco, que rapidamente poderia degenerar em III Guerra Mundial, com o possível arrastamento dos EUA e da China.

3. Que o "partido da guerra", com a conivência dos partidos da direita europeia, não recua perante essa ominosa perspetiva, assusta. Mas que a esquerda europeia em geral e os socialistas em especial possam ser cúmplices, isso ultrapassa o entendimento.

Felizmente, não parece que em Portugal nem o Governo nem o PS tenham ensandecido.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (18): O legado do jornal Público

Ao censurar severamente, com toda a razão, um lamentável artigo do Público sobre a questão da construção da altar da Jornada Mundial da Juventude pelo município de Lisboa - que eu tinha já assinalado AQUI, apontado a violação da separação constitucional entre o Estado e as igrejas -, o Provedor do Leitor veio resgatar o legado de jornalismo crítico e respeitador do pluralismo de opinião do diário fundado por Vicente Jorge Silva. 

Ainda bem: aquela peça de jornalismo acrítico e subserviente não podia ficar impune.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

+ Europa (71): UE atrasa-se

1. Como mostra o quadro acima, sobre as previsões económicas do FMI para 2023, mais uma vez a União Europeia, embora contrariando as piores previsões anteriores, vai crescer bem menos do que os seus competidores na frente do grupo das maiores economias, atrasando-se de novo em relação aos Estados Unidos e à China.

Obviamente, a guerra da Ucrânia tem um papel nisto, dado o seu forte impacto negativo na economia europeia (energia mais cara, perda do mercado russo) e o seu impacto positivo tanto nos Estados Unidos (indústria de armamento, exportações de energia) e na China (energia russa mais barata e aumento das exportações para o mercado russo).

O problema é que essa assimetria não se afigura ser passageira...

2. Curiosamente, a economia russa também vai voltar a crescer, contornando as pesadas sanções ocidentais e desmentindo os apressados prognósticos iniciais da Comissão Europeia, de rápida derrota de Moscovo na guerra, por efeito do desmoronamento da sua economia.

A UE não somente não conseguiu os seu objetivos, mas também está a pagar um preço elevado no campeonato global do crescimento económico.

Adenda
Um leitor nota que destas grande economias, só o Reino Unido tem uma previsão de queda, e pergunta porquê. Muito provavelmente, por causa do Brexit.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Bloquices (23): A "falsa" democracia política

1. Um dos primitivos argumentos do pensamento antidemocrático era o de que a democracia política, baseada nas eleições, dá o mesmo peso a todos, a elite e a plebe, os letrados e os analfabetos, os ricos e os pobres que nada têm perder, os cidadãos empenhados e os desinteressados, e assim por diante. O governo da maioria prevalecia sobre o "governo dos melhores".

Desde há muito tempo, também a extrema-esquerda - em geral eleitoralmente pouco expressiva, mas boa a explorar os descontentamentos sociais - argumenta que uma coisa são as maiorias eleitorais, que governam, e outra, as alegadas "maiorias sociais", ou seja, a coligação de organizações e movimentos que comandam as reivindicações sociais, e que são tudo menos maioritárias, política ou sociologicamente. 

2. Sem surpresa, tal é a lógica visceralmente antidemocrática deste discurso da líder do BE, tentando fazer esquecer a enorme derrota que sofreu nas últimas eleições.  

O antigo argumento antidemocrático - a elite contra a maioria da plebe - só mudou de sinal. Agora são as minorias nas ruas que devem prevalecer sobre a maioria das urnas.

Era o que faltava (7): Oportunismo político

Embora sem defender a recuperação integral do tempo de serviço dos professores durante o período de intervenção financeira externa para efeitos progressão na carreira (como tontamente defendeu Rui Rio), o atual líder do PSD diz que tem dúvidas sobre as "quotas de avaliação" em vigor

Mas trata-se de um "namoro" puramente oportunista aos sindicatos em greve, pois Montenegro sabe bem que nenhum Governo responsável as pode dispensar numa carreira plana e com uma ficção de avaliação, como é a dos professores, como pequeno travão à promoção por simples antiguidade até ao último escalão, com encargos orçamentais incomportáveis em remunerações e pensões.

O apoio oportunista de um candidato a primeiro-ministro a lutas sindicais que põem em causa a sustentabilidade das finanças públicas é puramente lamentável. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Não concordo (39): Sofisma constitucional

1. Tal como já tinha discordado do primeira decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão da despenalização da eutanásia, volto a não concordar com a decisão de hoje, que também considera inconstitucional o novo diploma da AR.

Lamento o severo rigorismo com o TC aborda esta questão, apesar de se tratar de proteger uma liberdade pessoal merecedora de proteção jurídica em vez de repressão penal, ou seja, a liberdade de não ser forçado a viver em condições humanamente insuportáveis, indignas ou degradantes

2. Julgo, aliás, que esta decisão se funda num sofisma, sobre uma alegada indefinição da expressão «sofrimento físico, psicológico e espiritual», quanto a saber se as três referidas vertentes são cumulativas ou se basta uma delas. Julgava ter aprendido na escola primária que "e" quer dizer cumulativo e "ou" quer significar alternativo.

De resto, se há tantas normas incriminadoras cheias de conceitos indeterminados (basta folhear a parte especial do Código Penal), deixando a sua "densificação" aos tribunais, não se percebe porque as normas despenalizadoras os não podem utilizar. Devia ser o contrário...  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Praça da República (72): Facada na Constituição

1. Por mais justificada que seja a perplexidade pública com o custo "pornográfico" do altar erigido pelo município de Lisboa para as jornadas internacionais da juventude católica, muito mais grave é, porém, a profunda "facada" na Constituição que consiste na própria edificação de um altar religioso, com cruz e tudo, por uma coletividade pública, em frontal violação do princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas

Tal como não não compete ao Estado ou outras coletividades públicas promover ou organizar cerimónias religiosas, muito menos participar nelas, também não lhes compete construir equipamentos de culto, seja com a cruz ou com o crescente.

2. Ora, este atentado a um princípio constitucional básico não tem suscitado a mínima objeção política nem institucional. 

O Presidente da República, que fala sobre tudo e mais alguma coisa, silencia; os partidos laicos representados no governo do município de Lisboa, incluindo os da oposição de esquerda, assobiam para o ar; o Ministério Público, entretido que está na sua guerrilha diária contra o Governo e os políticos, por via do seu órgão oficioso, o Correio da Manhã, nem pensa em impugnar este ato público atentatório da legalidade constitucional vigente.

Além de uma inqualificável cumplicidade política, esta conspiração de silêncio perante um flagrante delito de grave violação da Constituição constitui uma imperdoável cobardia institucional.

Adenda
Um leitor não vê «mal nenhum» no apoio do Estado e da CML à jornada da juventude e considera que o poder público deve «respeitar a religião». Inteiramente de acordo! Porém: (i) num Estado laico não cabe a um município usar o dinheiro dos contribuintes para construir equipamentos religiosos, substituindo-se às respetivas igrejas e (ii) o melhor meio de o Estado respeitar TODAS as religiões e os seus crentes é não privilegiar NENHUMA.

Adenda 2
Mensagen de um leitor: «para sacramentar o ato de submissão da República à ICAR [Igreja Católica Apostólica Romana], reabilitanto o Estado Novo, Marcelo e Moedas deveriam oficiar como de acólitos do Papa na missa campal da tal Jornada». Tendo em consideração a desfaçatez do caso do altar, receio bem que já não seja de excluir nada...

Adenda 3
É indecente a maneira expedita como um periódico com a responsabilidade jornalística do Público "arruma" a questão da afronta à laicidade do Estado, negando-a sumariamente, com base na opinião de um único constitucionalista, por sinal católico. Um pouco mais de jornalismo, sff.

Adenda 4
Tenho uma solução para o problema, que parece um "ovo de Colombo", mas não precisa de partir nada. Consiste no seguinte: (i) o projeto municipal deixaria de incluir a cruz e a designação de altar; (ii) a cruz ficaria a cargo da Igreja, que a colocaria no palco para a cerimónia religiosa com o Papa, transformando-o em altar; (iii) terminada a cerimónia religiosa, a cruz seria retirada, voltando o palco a ser um equipamento municipal multiusos (incluindo à disposição de outras igrejas), como deve ser. Penso que esta solução satisfaz todos os interesses e valores em questão, quer o interesse do munícípio e da Igreja em proporcionar as melhores condições logísticas à JMJ, quer a proibição constitucional de adoção de símbolos religiosos em novos edifícios públicos

Adenda 5
Em relação à Adenda precedente, um leitor objeta que «o palco tem o estrado a nove metros de altura, e umas longas rampas a afastá-lo do público, pelo que nenhum espetáculo se poderá fazer lá». A ser assim, e a não haver correção do projeto, temos um pseudopalco de uso único por 5 milhões?? Mesmo para um município que parece nadar em dinheiro, como o de Lisboa, é uma escandalosa megalomania. Os munícipes de Lisboa aceitam isto, sem se revoltarem?!

Era o que faltava (6): ABC constitucional

O Chega quer o presidente da CM Lisboa no parlamento (ou seja, na AR), para explicar gastos com um evento com o Papa, de que Lisboa é anfitriã. 

Que os tais gastos exorbitantes carecem de explicação, designadamente um palco de cerca de 5-cinco-5 milhões de euros (!?), é evidente. Só que o parlamento não tem legimidade para pedir explicações a um líder autárquico, que só responde politicamente parante o respetivo parlamento municipal. A autonomia municipal não é somente perante o Governo, mas sim perante o Estado em geral. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Revisão constitucional (4): Propostas para rejeitar

1. Neste artigo sobre a revisão constitucional na área da justiça, da autoria do advogado João Correia, só não discordo liminarmente de uma das quatro sugestões, sobre a criação de tribunais de âmbito local para pequenas causas, em substituição dos atuais julgados de paz, que pode merecer uma consideração mais atenta.

Duas outras ("recurso de amparo" e proliferação de tribunais de 2ª intância também em matéria de facto) podem mobilizar o interesse profissional dos advogados, aumentando a litigância judicial, mas não ajudam em nada o sistema judicial. A sugestão restante, de uma espécie de "câmara corporativa" para a área da justiça, só pode comprender-se por ataviso corporativo.

2. Quanto ao "recurso de amparo", sempre fui contra, quer por ele me parecer redundante num sistema como o nosso, onde existe fiscalização concreta de constitucionalidade, a cargo de todos os juízes (ao contrário do que sucede na Espanha e na Alemanha, onde aquele recurso existe), quer porque ele se iria transformar numa instância de recurso normal, congestionando irremediavelmente o Tribunal Constitucional. Sei bem que o projeto de revisão do PSD também prevê tal recurso, a meu ver impensadamente, mas confio em que no final tal proposta não venha a vingar.

Também não vejo nenhuma viabilidade na proposta de substituição das atuais Relações por tribunais de 2º instância de âmbito distrital com competência genérica, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto, o que hoje só está constuticionalmente garantido no âmbito criminal.

3. Por último, parece-me totalmente descabida a ideia de um órgão oficial de representação conjunta de juízes, Ministério público e advogados, o que, além da intrometer a advocacia onde não é chamada, se traduziria numa clara violação da separação de poderes, afetando a autonomia e indepedência dos juízes. 

Gostaria de ter escrito isto (31): Facilitismo de esquerda

«Ou seja, [com o fim dos exames nacionais no secundário] a segregação do nosso sistema educativo tornar-se-á mais acentuada, diminuindo a sua equidade, prejudicando-se essencialmente os mais desfavorecidos, que verão as suas hipóteses de receberem uma preparação para o ingresso no ensino superior — que a literatura científica aponta como o mais realista mecanismo de mobilidade social — ainda mais comprometidas. 
De tudo o que foi dito resulta ser difícil compreender como é que um Governo que afirma a importância da equidade na educação toma esta opção». (Deste artigo no Público de ontem).

Já me tinha manifestado contra essa medida na adenda a este post

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Campos Elísios (11): Esquerda irresponsável

Ao juntar-se à extrema-esquerda (e à extrema-direita) na rejeição da proposta do governo francês para o aumento ultramodesto da idade da aposentação dos 62 para os 64 anos (em Portugal está acima dos 66 anos...), o Partido Socialista francês mostra mais uma vez o erro fatal das alianças políticas com a extrema-esquerda.

Sendo o aumento da idade de aposentação essencial para minorar o perigoso desequilíbrio financeiro do sistema de pensões em França e travar o preocupante agravamento da dívida pública nacional e dos seus custos orçamentais, a irresponsável oposição do PS confirma que ele deixou de ser um partido de esquerda moderada e de vocação governativa, que durante décadas foi, tornando-se um apêndice da frente de esquerda, liderada pela França Insubmissa.