quarta-feira, 10 de abril de 2024

Assim vai a política (18): Um jogada política com riscos

 1. Compreende-se a carta do líder do PS ao chefe do Governo, reiterando um compromisso oral anterior, de apoiar a satisfação de reivindicações salariais de vários grupos profissionais da função pública, dos professores às polícias, algumas das quais o programa eleitoral do PS também contemplava. 

Por um lado, com essa iniciativa, PNS adianta-se na exigência de medidas politicamente populares, que de outro modo seriam exploradas exclusivamente pelo Governo; por outro lado, ao exigir a sua negociação em dois meses, PNS pretende evitar que o Governo as remeta para o orçamento para 2025, jogando com elas como chantagem contra o PS na votação do orçamento, em relação ao qual este quer manter mãos livres.

Boa jogada de antecipação política, portanto.

2. Mas o risco político deste "jogada" do PS também é duplo: primeiro, ser acusado pelas demais oposições de uma operação oportunista que coloca entre parêntesis a sua reclamada liderança da oposição; e depois, ser  usado pelo Governo como desculpa para a hipótese de o aumento da despesa pública que aquelas medidas importam ajudar a consumir o excedente orçamental previsto para este ano, retirando ao PS o argumento de laxismo orçamental do Governo.

Também na política, não há bela sem senão.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo, sff (30): Pretenso purismo terminológico

1. Usando argumentos da direita na recente polémica dos logótipos governamentais, o editorial de hoje do Diário de Notícias defende que o Governo não devia usar a expressão "República Portuguesa", porque é somente o órgão executivo do Estado, e não a República.

Ora, tal como o demais "órgãos de soberania", também o Governo é órgão da República Portuguesa, que é o nome oficial do País. Desde logo, se o chefe do Estado se designa como Presidente da República e o parlamento como Assembleia da República, torna-se pertinente falar também em Governo da República, até para o distinguir dos governos regionais dos Açores e da Madeira. 

Portanto, desde que dos documentos resulte evidente que se trata do Governo, como sempre sucede, este tem todo o direito de neles invocar a entidade política em nome da qual atua (tal como um governo regional invoca a respetiva Região, ou uma câmara municipal, o seu município). Acresce que é o Governo que conduz a política europeia e a política externa do País, pelo que faz todo o sentido assumir-se como governo da República Portuguesa nas suas relações com outros Estados e com as organizações transnacionais.

O que não faz sentido é, em documentos ou símbolos oficiais, usar "Portugal" em vez de "República Portuguesa".

2. Levando ao extremo o seu purismo político-terminológico, o autor entende também que «em lugar de chamar ao OE Orçamento do Estado, este dever-se-ia designar Orçamento do Governo, [pois] é este último quem decide onde aplicar o dinheiro (poder) que recebe... do Estado (povo)».

É difícil concentrar tanta confusão em tão poucas palavras. Antes de mais, a expressão "orçamento do Estado" é a designação constitucional (CRP, art. 105º) e está correta, pois o documento prevê as receitas e as despesas de todo o Estado, incluindo as que são privativas do PR, da AR e dos tribunais, e não somente do Governo e da Administração dele dependente. E não é o Governo que «decide onde aplicar o dinheiro», pois só lhe cabe elaborar a proposta de orçamento, cabendo a sua aprovação à AR (e a promulgação ao PR).

Em suma, como artigo de opinião, este texto não se recomenda; como editorial, é reprovável. Um jornal como o DN deveria assumir posições mais ponderadas nos seus editoriais, que não podem ser meras opiniões jornalísticas de responsabilidade individual, como outras.

Adenda
Um jornalista do DN informa-me que, apesar de publicado na p. 2 e ser subscrito pelo editor do jornal, não se trata de um editorial em sentido próprio, pois esses são da responsabilidade da direção. Aqui fica feita a devida correção, mantendo, porém, tudo o resto. 

Não dá para entender (38): Fusão doutrinária das direitas?

1. Não se compreende bem como é que um liberal assumido, como Passos Coelho, se dispõe a apresentar e, implicitamente, a patrocinar «um 'manifesto' contra “os adversários da família”, “a ideologia de género” e “a cultura de morte”», que é coletânea de textos de um conjunto de autores, que, embora com algumas exceções, representa doutrinariamente o que de mais radicalmente de direita antiliberal existe entre nós, combatendo todos os avanços das últimas décadas no sentido de alargar a liberdade individual, nomeadamente a emancipação feminina, a IVG, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a morte assistida em condições-limite, etc.

A publicação de um "manifesto" destes é especialmente inquietante em cima das celebrações do cinquentenário do 25 de Abril, que abriu caminho, desde logo na Constituição de 1976 e na subsequente revisão do Código Civil, à desmontagem da conceção corporativa da família da Ditadura.

2. Que os autores dos textos defendam a suas ideias, individualmente ou organizadamente -, nada a objetar numa democracia liberal. Mas que elas recebam a cobertura política de um ex-líder e ex-primeiro-ministro do PSD -  o atual partido no Governo -, isso é muito menos compreensível, comprometendo sem dúvida o partido onde continua a ter muitos adeptos e em cuja campanha eleitoral participou recentemente. 

Será que, antecipando uma eventual união política, deixou de haver fronteira doutrinária entre a direita liberal e a direita retrógrada?

Adenda
Um leitor objeta que «Passos Coelho deixou claramente de ser liberal, estando cada vez mais perto da direita tradicional, por isso não surpreende que tenha apadrinhado o livro». Assim parece.

Adenda 2
Na apresentação do referido livro, a despropósito, Passos Coelho defendeu que o Governo se deve entender com o Chega, argumentando que não o fazer seria «desrespeitar os eleitores». Ora, o PSD fez a campanha eleitoral sob o lema "não-é-não" a um acordo com Ventura, pelo que a solução que Passos recomenda é que seria trair os eleitores. Claramente, o ex-líder do PSD dá preocupantes mostras de  desorientação política.

Adenda 3
Sobre o tal livro é obrigatório ler esta crítica devastadora de Henrique Raposo no Expresso: «neste livro que junta Passos e Ventura, cheira-se apenas o ódio, o moralismo e a incapacidade para aceitar que há várias formas de amor, de vida, de família». Subscrevo.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Assim não vale (9): Despudor político

1. Numa das suas mais inovadoras propostas institucionais, o programa da AD propunha uma incompatibilidade a proibir tanto os juízes como os procuradores do Ministério Público de assumirem cargos públicos, a não ser após um intervalo de três anos. Por mim, que sempre defendi tal  incompatibilidade, pelo menos em relação aos juízes, desde logo por razões constitucionais, aplaudo essa doutrina.

Porém, em flagrante contradição com tal compromisso, Luís Montenegro nomeou duas juízas para o novo Governo, uma juíza-conselheira para Ministra da Administração Interna e uma juíza desembargadora para uma das secretarias de Estado do Ministério da Justiça. Se uma juíza no Governo é condenável (como mostrei AQUI), duas é condenável a dobrar

2. Ora, segundo esta notícia no JN , ao ser confrontado com o incumprimento do programa eleitoral da AD, uma fonte anónima do Governo terá declarado que a tal incompatibilidade se refere a "cargos públicos" e não a "cargos políticos". Ora, não é preciso ter estudado Direito para saber que a categoria de cargos públicos abrange obviamente os cargos políticos, que é uma subcategoria daqueles. De resto, no caso, se se justifica a incompatibilidade quanto aos demais cargos públicos, por maioria de razão ela se impõe no caso de cargos políticos, de nomeação partidária, como é o caso de membro do Governo.

Trata-se, portanto, de uma despudorada desculpa de má-fé, para tentar esconder o manifesto incumprimento do compromisso eleitoral (e, a meu ver, da incompatibilidade constitucional...). Se o programa eleitoral é "mandado às urtigas" logo numa questão tão delicada como esta, o que é que vai restar dele?

Adenda
Um leitor acha que, «se há uma incompatibilidade, o Presidente da República deveria ter recusado a nomeação». Penso que tem razão. Desde há muito que defendo que o PR não deve vetar, por discordância política, os nomes propostos pelo Primeiro-Ministro, pela simples razão de que é ao Governo, por este chefiado, que compete governar o País e responder politicamente perante o parlamento e as oposições, enquanto o PR é politicamente irresponsável. Já assim não sucede, porém, quando o PM propõe a nomeação de pessoas constitucionalmente impedidas de assumir cargos políticos, como é o caso dos juízes, cuja integração no Governo afronta manifestamente os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência política dos juízes. Aqui entendo que o PR deve vetar essas nomeações, por atentatórias do "regular funcionamento das instituições", que lhe incumbe assegurar.

domingo, 7 de abril de 2024

História constitucional (9): A cidadania política em Portugal

1. O livro De Súbditos a Cidadãos, organizado por José Domingues e por mim, e publicado em 2022 (como se assinalou AQUI) pelas edições da Universidade Lusíada, no âmbito dos comemorações do bicentenário da Revolução Liberal, acaba de ser publicado em versão inglesa na mesma editora (imagem acima) para permitir o acesso a um público, especialmente académico, mais vasto do que os falantes de português. Alguns dos textos foram revistos pelos seus autores para este reedição. 

Beneficiária do financiamento da FCT, tal com a versão originária, também esta reedição inglesa se encontra disponível em acesso livre no site da UL.

2. Com origem num colóquio a várias vozes realizado no Porto em 2020, o livro traça as origens da moderna cidadania política entre nós, através da revolução política e constitucional do vintismo, e recorda o seu aprofundamento em dois outros importantes momentos constitucionais, a saber, o republicanismo e o atual regime democrático.

Nas vésperas da celebração do cinquentenário da Revolução do 25 de Abril de 1974, esta reedição assinala mais uma vez o legado que o vintismo e o republicanismo deixaram em matéria de cidadania política à Constituição de 1976.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Não dá para entender (37): Candidatos a fingir

Pelos vistos, há "independentes" com elevado prestígio académico e profissional, que aceitam dar o nome como candidatos em listas eleitorais, em lugares de destaque, obviamente para ajudar a atrair eleitores, mas que depois se permitem nem sequer assumir o mandato

Depois, queixemo-nos do descrédito da política e da alienação dos eleitores. Os eleitores e as eleições merecem mais respeito...

Adenda
Um leitor defende que "mais culpado do que o candidato fake foi o PSD, que explorou politicamente a sua candidatura, sabendo que ele não iria exercer o mandato". Sim, mas a culpa partilhada não diminui a irresponsabilidade do próprio!


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo sff (29): Fazer eco dos "recados" governamentais

No jornal eletrónico Eco, uma jornalista escreve o seguinte: «O Governo de Luís Montenegro terá de ajustar o programa económico com que ganhou as eleições às novas regras europeias de disciplina orçamental, que devem entrar em vigor no início de 2025, e que estabelecem limites à despesa que pode ser contraída em cada ano, sob pena de violar as normas comunitárias»

Contudo, esta notícia não faz nenhum sentido, porque quando o programa da AD foi apresentado, as novas regras orçamentais da UE, que foram oficialmente aprovadas na mesma altura, já eram conhecidas há muito, por efeito do acordo sobre elas no Conselho.

Que o Governo recorra agora a desculpas de mau pagador para preparar o incumprimento dos seus compromissos eleitorais, compreende-se. Que jornais "engulam" acriticamente os recados governamentais, nem se compreende nem se aceita. O jornalismo independente não pode aceitar ser megafone do Governo.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Maus augúrios (2): Um Governo desafiador, apesar de ultraminoritário

1. O discurso do novo PM na tomada de posse do Governo PSD+CDS só pode ser interpretado com uma deliberada provocação às oposições, e em especial ao PS, imputando-lhes uma obrigação de "deixar o Governo trabalhar" e a responsabilidade de assegurar a estabilidade política.

Ora, sendo o Governo ultraminoritário, é a ele que cabe promover os compromissos políticos necessários com os partidos de oposição, à esquerda ou à direita, para conseguir fazer aprovar a legislação, em geral, e o orçamento, em especial, sabendo, porém, à partida, que não pode pretender realizar integralmente o seu programa político, por falta de apoio eleitoral e parlamentar.

Numa democracia parlamentar, não é vocação das oposições, muito menos do principal partido de alternativa governativa, sustentar o Governo.

2. Conto-me entre os que defendem que o PS, como partido de governo que não deixou de ser, deve fazer uma oposição responsável, e não caprichosa, ponderada, e não sectária, aberta à negociação com  o Governo, e só votando contra as medidas incompatíveis com o seu próprio programa político. 

Todavia, para haver uma oposição responsável exige-se um Governo disponível para negociar e fazer concessões e para aceitar que todos os partidos têm "linhas vermelhas" políticas e doutrinárias que não podem sacrificar. Ora, a postura desafiadora de Montenegro não aponta para aí, mas sim para a chantagem sobre o PS e para a vitimização política pelas eventuais derrotas parlamentares que não conta evitar.

Perante este discurso, a impressão que fica é que Montenegro quer "encostar o PS à parede" e vai jogar tudo na demissão do Governo numa ocasião politicamente propícia, acusando os socialistas de "bloqueio" à ação governtiva. Maus augúrios, portanto, para o "clima" político e para a estabilidade governativa.

Adenda
Um leitor defende que a maior provocação de Montenegro foi a de proclamar que «um partido que não rejeite o programa do Governo, viabilizando a entrada deste em funções [como o PS já anunciou] fica vinculado a deixá-lo executar, comprometendo-se, portanto, a não votar contra a execuação das medidas neles prevista». Mas essa original tese é tão disparatada, que não chega a ser provocação, mas apenas uma tonteria política.

Adenda 2
Um leitor considera «absurda a ideia de Montenegro de pôr o PS a sustentar o Governo, bastando lembrar que o PSD contribuiu para derrubar tanto o 2º Governo de Sócrates, em 2011, como o 2º Governo de Costa, em 2021». Com efeito, um pouco mais de memória e de coerência política, requere-se.

Adenda 3
Outro leitor chama a atenção para a edição do "Polígrafo" de ontem ao fim da tarde (disponível AQUI), de onde transcreve alguns excertos, nomeadamente este «O que é certo é que o próprio Montenegro já serviu de bloqueio por várias vezes nos últimos nove anos: em alguns deles, mesmo antes de conhecer os documentos apresentados pelos Executivos de António Costa, o agora PM pedia aos líderes que fossem claros, enquanto reforçava que o voto contra não podia depender do Orçamento. Entre 2016 e 2024, o PSD nunca votou a favor de um Orçamento socialista. Mas em 2018 e em 2019, sobre o documento para os anos seguintes (2019 e 2020), Luís Montenegro nem precisou de provas.» Com um "cadastro" destes, é um verdadeiro desconchavo político que Montenegro se atreva a exigir do PS uma oposição "colaborativa", sem bloqueios, incluindo a passagem dos orçamentos, às cegas

terça-feira, 2 de abril de 2024

Aplauso (39): O teste do algodão

Justifica-se plenamente esta iniciativa de António Costa, de pedir explicitamente ao MP junto do STJ para ser ouvido com toda a brevidade sobre a investigação a que está sujeito desde há quase cinco meses, sem, nesse longo período de tempo, ter sido sequer informado pessoalmente sobre que conduta delituosa versa a investigação e muito menos sem ter sido ouvido para prestar declarações sobre o assunto.

Agora como cidadão comum, que tem de decidir sobre a sua vida pessoal, profissional e política, o ex-PM tem um interesse mais do que legítimo em ver esclarecida a suspeita, tão depressa quanto possível, e não se vê que interesse pode ter o MP - salvo o de o manter indefinidamente como refém político - em conservar o silêncio inquisitorial que tem mantido sobre a tal (pseudo)investigação.

Portucaliptal (32): Um bom exemplo

1. Durante décadas, sob pressão da indústria de celulose e do correspondente lobby florestal, assistimos à transformação do País num imenso eucaliptal, com enormes manchas territoriais de monocultura do eucalipto, por montes e vales, sem paralelo em qualquer outro país europeu.

Apesar dos seus óbvios impactos negativos - desfeiando a paisagem, favorecendo a erosão dos solos, afetando os recursos hídricos, reduzindo a biodiversidade, tornando a floresta mais vulnerável aos incêndios -, sucessivos governos de diversa orientação política não somente consentiram mas também incentivaram essa destruição da paisagem nacional.

Uma história politicamente deprimente!

2. Felizmente, nos últimos anos, por efeito da ação dos grupos ecologistas, foi-se quebrando o consenso nacional favorável ao eucalipto - largamente devido ao investimento maciço do setor na propaganda mediática e na "captura" política dos governos -, tendo crescido a consciência pública sobre os malefícios da eucaliptização extensiva.

Esta iniciativa de substituição do eucalipto por espécies autóctones do município de Albergaria-a-Velha - um dos muncípios do distrito de Averio mais atingidos por essa praga florestal - mostra essa nova sensibilidade cívica, até porque não é isolada. Embora, sendo iniciativas micro, elas merecem ser saudadas e divulgadas como exemplos a seguir por outros municípios.

A batalha contra o eucalipto só agora começa.

Adenda
Um leitor objeta que a eucaliptização do País se deveu, «maioritariamente, às decisões livres de incontáveis proprietários privados de terrenos, que decidiram plantar eucaliptos nas suas propriedades, porque consideram que eles são a melhor forma de retirar algum ganho das suas propriedades, [pelo que] não convém acusar a indústria da celulose de culpas que não lhe cabem». Mas não tem razão. Antes da vinda da celulose, a área do eucaliptal era reduzida; grande parte do eucaliptal privado é diretamente gerida pelas empresas de celulose; as políticas pró-eucalipto, incluindo a subsidiação, foram "compradas" pelo lobby das celuloses. E principalmente, nem os proprietários nem as celoluses pagam as enormes "externalidades negativas" do eucaliptal, acima apontadas, que são suportados pela coletividade, tornando o eucalipto mais rentável. A conexão celulose-eucaliptização é incontornável.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

O que outros pensam (5): O domínio partidário no comentário político

«Chega-me falar de uma originalidade portuguesa: dois ex-líderes dos partidos que se juntaram numa mesma coligação têm o monopólio do comentário sem contraditório em canais abertos generalistas. Espaços que garantem, à partida e de longe, maior audiência. De tal forma poderosos que já ajudaram a eleger um Presidente (também ex-líder do PSD) e têm outro na calha para o mesmo projeto. 
Não fazendo grande esforço para disfarçar a função política dos seus espaços exclusivos, Luís Marques Mendes e Paulo Portas não hesitaram em participar diretamente na campanha eleitoral das últimas eleições, saltando da cadeira de analistas para o palanque de comícios e, de novo, para a cadeira de analistas. Nada contra. Os comentadores não têm de ser neutros. Grave é que duas pessoas empenhadas na campanha da mesma força política tenham mantido este monopólio nas televisões portuguesas.»

           [Daniel Oliveira, «Mendes e Portas serão as novas "conversas em família"?», no Expresso]

Estou de acordo, com eu mesmo anotei AQUI. A Lei da Televisão obriga as televisões a respeitarem o pluralismo político - que se impõe sobretudo às televisões de sinal aberto, protegidas por não haver liberdade de acesso a tal atividade -, o que não sucede manifestamente no caso da propaganda monopartidária travestida de comentário politico.

Adenda
Um leitor «gostaria de ser esclarecido [sobre] se os dois Conselheiro de Estado, Marques Mendes e António Lobo Xavier, podem ser comentadores residentes em duas estações de televisão, utilizando por vezes informação privilegiada, pensando até que contraria os princípios de independência, isenção, além de falta de respeito pelo órgão onde estão nomeados, havendo por vezes conflitos de interesse». Julgo que seria preferível que tais acumulações potencialmente equívocas se não verificassem, mas, uma vez que existem, só nos resta confiar na deontologia profisssional e política dos conselheiros-comentadores e no sentido de responsablidade pública das respetivas cadeias de televisão (caso exista...).

Adenda 2
Outro leitor comenta que «os ditos comentadores, além de destacados (e ativos) militantes partidários, são também, como advogado e como lóbista, respetivamente, representantes de plúrimos interesses privados», mas que, «contrastando com o que se passa lá fora, não há "disclosure" de qualquer situação que possa "ensombrar" a suposta isenção e imparcialidade das suas posições e opiniões». Compreendo a preocupção do leitor, mas a cultura de "full disclosure" de interesses de quem intervém no espaço público não é prática adquirida em Portugal.

No cinquentenário do 25 de Abril (3): As conquistas da Revolução e os novos desafios


Entre os livros recentemente publicados a propósito do cinquentenário do 25 de Abril permito-me destacar este, que colige as diversas conferências temáticas do ciclo promovido em 2023, pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a direção do Professor J. Gouveia Monteiro.

Saliento três aspetos muito valiosos neste livro:
      - a seleção dos temas das conferências, vários deles menos óbvios e menos debatidos, sobre problemas atuais do País, como, por exemplo, "demografia e ordenamento do território", "ser jovem hoje" e "saúde mental e envelhecimento";
    - o elevado gabarito dos conferencistas, todos especialistas reputados nos temas abordados, e a diferença entre as suas abordagens, que suscitaram interessantes questões da assistência;
     - por último, mas não menos importante, as duas notáveis contribuições do próprio Prof. Gouveia Monteiro, uma sobre as "dez grandes conquista de Abril", como introdução ao livro, e outra sobre a "cidadania política e dos direitos individuais - um viagem pela história", em anexo à conferência sobre o mesmo tema.

Trata-se, portanto, de uma reflexão importante não somente sobre as mudanças trazidos pela Revolução, nos planos político, económico, social e cultural, mas também sobre os antigos e novos problemas que reclamam uma resposta ao regime democrático conquistado há cinquenta anos. 

Adenda
Importa assinalar que o livro vai ser apresentado publicamente em Coimbra no próximo dia 23 deste mês, nas vésperas do 25 de Abril.

domingo, 31 de março de 2024

Não concordo (46): Dois erros na formação do Governo

1. Além da problemática nomeação de uma advogada para a pasta da Justiça nas atuais circunstâncias, como referi anteriormente, há mais dois aspetos em que discordo na composição do novo Governo.

O primeiro é a nomeação da Juíza-Conselheira Margarida Blasco para ministra da Administração Interna (ou qualquer outra pasta), porque, desde sempre (por exemplo, AQUI), considero que a nomeação de magistrados judiciais para cargos políticos sem prévio abandono da carreira judicial viola flagrantemente o princípio da separação de poderes e a independência partidária da magistratura (e não estou sozinho neste ponto). Apesar de já jubilada, tal estatuto (a que voltará depois de deixar o Governo) não representa abandono da carreira judicial, mantendo-se vinculada às incompatibilidades próprias da magistratura.

A meu ver, a "porta giratória" entre cargos judiciais e cargos políticos não é compatível com o princípio do Estado de direito.

2. O segundo aspeto negativo é o regresso dos assuntos europeus ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Como defendi anteriormente AQUI, o pelouro dos assuntos europeus - que compreende essencialmente a representação do Governo na formação de "assuntos gerais" do Conselho da União, e a articulação da representação ministerial nacional nas nove restantes formações especializadas do Conselho - tem a ver sobretudo com políticas internas, desde a economia ao ambiente, pelo que deveria continuar sob responsabilidade de um secretário de Estado, na presidência do Conselho de Ministros, ou seja, sob a égide e autoridade superior do Primeiro-Ministro, tal como no Governo cessante.

Além de injustificada, até porque o MNE sempre teria direito a integrar o conselho de ministros da política externa da UE, esta solução constitui, a meu ver, um retrocesso prejudicial à coordenação das políticas da UE com as correspondentes políticas internas, que são competência dos demais ministros sectoriais, e que deveria continuar sob responsabilidade do PM, e não de um ministro sectorial, como o MNE.

Adenda
Um leitor, que sabe do que fala, comenta que se trata de «um claro retrocesso na visão do papel que os Assuntos Europeus têm / devem ter na governação» e que «o relevo dos MNE na política europeia é muito diminuto (salvo a PESC), sendo a política europeia um tema dos chefes do Governo e uma tarefa essencialmente de coordenação ministerial». Inteiramente de acordo.

Adenda 2
Outro leitor objeta que «Montenegro não podia desperdiçar o profundo conhecimento de Paulo Rangel sobre a UE». Eu não contesto obviamente a entrega dos assuntos europeus a Rangel; o que entendo é que, então, devia nomeá-lo Ministros dos Assuntos Europeus adjunto do PM, fazendo um upgrade político desse pelouro governativo essencial e respeitando a sua natureza transversal, em vez de o degradar como secretaria de Estado do MNE, que é um ministério sectorial e que, além disso, tem pouco a ver com a UE. Decididamente, a UE não é uma questão de política externa.

sábado, 30 de março de 2024

Causa palestina (9): Guerra de extermínio

O que se passa com a invasão de Gaza por Israel é um verdadeira guerra de extermínio populacional: destruição generalizada de infraestruturas e do parque habitacional, tornando o território inabitável, matança massiva e indiscriminada da população (mais de 35 000 mortos, sendo mais de metade mulheres e crianças, obviamente combatentes do Hamas...), expulsão massiva de populações dos seus lugares de residência, proibição de acesso da ajuda humanitária às zonas mais críticas, fome generalizada. Uma catástrofe humanitária.

Entretanto, as potências ocidentais (US e UE) não passam da crítica verbal, continuando a deixar mão-livre a Netanyahu na guerra de extermínio em que Israel está empenhada. O Tribunal Internacional de Justiça acaba de intimar Israel a não praticar atos de violação dos direitos do povo de Gaza ao abrigo da Convenção das Nações Unidas contra o Genocídio. Mas o que é que ocorre em Gaza senão uma clara tentativa de genocídio, em avançado estádio de execução?

sexta-feira, 29 de março de 2024

Corporativismo (57): Conflito de interesses no Governo

1. Uma das soluções problemáticas no novo Governo PSD&CDS é a nomeação de uma advogada como Ministra da Justiça, depois da recente guerra política movida pela Ordem dos Advogados contra a reforma das ordens profissionais (que instituiu a separação entre a sua função de representação e defesa de interesses profissionais e a sua função oficial de regulação e supervisão da profissão) e contra a redução do âmbito dos chamados "atos próprios" (ou seja, exclusivos) dos advogados.

A bastonária da OA apressou-se a felicitar a nomeação da sua associada e a exprimir a esperança de que a nova Ministra reverta as referidas reformas. A titular da pasta fica em maus lençóis: ou vai ao encontro dos interesses da sua corporação profissional, propondo ao parlamento a reversão da reforma e  arriscando um litígio com a Comissão Europeia - que impôs tal reforma como condição do PRR -, ou resiste à pressão corporativa, arriscando um voto de desconfiança da sua classe.

Os conflitos de interesse geram estes dilemas.

2.  Se o Governo optar pela 1ª via, revertendo a meritória reforma (apesar de moderada) da regulação pública das chamadas profissões liberais, teremos a estranha situação de ver um Governo de direita, supostamente mais liberal quanto ao papel do mercado, a reverter uma reforma assumidamente liberalizadora de um Governo de esquerda, por princípio menos liberal em termos económicos, e efetuada com a cobertura da UE e da OCDE.

O que está em causa é obviamente o conflito entre o protecionismo profissional, que as ordens atavicamente defendem, e um módico de concorrência na prestação de serviços profissionais, em prol dos interesses dos utentes, sobretudo dos clientes empresariais, numa economia cada vez mais "terceirizada" e cada vez mais aberta à concorrência externa, onde aqueles serviços profissionais assumem cada vez maior importância.

Para um Governo apostado em aumentar o crescimento económico, a escolha racional parece óbvia. Todavia, quando os interesses corporativos prevalecem, podem registar-se contradições entre a doutrina e a prática política.

Adenda
Um leitor argumenta que «o PSD votou na AR contra essa reforma, por isso é natural que a reverta». Porém, se os governos se dedicassem a reverter todas as medidas que criticaram na oposição, não fariam mais nada, e o País não beneficiaria de muitas reformas, que encontraram forte oposição quando foram adotadas, mas que os governos posteriores não suprimiram, onde se incluem várias do Governo PSD&CDS de 2011-2015. Quando na oposição, os partidos são mais vulneráveis aos "grupos de interesse" do que no governo, justamente porque querem ampliar a sua tração política.

Adenda 2
Um leitor de Coimbra argumenta que, «se agora há governo a pedido», ele tem dois pedidos concretos à nova Ministra, que é deputada por este círculo eleitoral: a construção do novo tribunal da cidade, há muito em falta, e a mudança da enorme penitenciária para fora do perímetro urbano, como se fez em Lisboa. Receio, porém, que o leitor tenha de "esperar sentado": por um lado, dada a sua natureza ultraminoritária, este Governo vai governar para o dia seguinte e de anúncios sem concretização; por outro lado, quanto a investimentos em infraestruturas, se os houver, a prática será, como é usual, Lisbon first.

O SNS em questão (28): A receita da privatização

Com o novo Governo PSD&CDS, é de esperar uma aposta numa maior privatização dos cuidados de saúde, pretextando o défice de resposta do SNS.

Por isso, vale a pena ler este recente estudo publicado na revista Lancet, que questiona as alegadas vantagens da privatização (agradecendo a Rosalvo Almeida a referência). Citando o sumário: 

«(..) Com base nos dados disponíveis, a nossa análise apresenta provas que questionam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde, concluindo que o fundamento científico para maior privatização dos serviços de saúde é fraco».

Infelizmente, a ineficiência do SNS entre nós e o argumento ideológico contra ele levam ao triunfo da opção privatizadora.

Adenda
Um leitor argumenta que «as PPP na gestão de hospitais do SNS (Braga, Loures, etc.) provaram ser vantajosas, justificando-se o seu regresso». A hostilidade às PPP no I Governo de António Costa ("Geringonça") não contou com o meu apoio, até por elas serem, a meu ver, um bom exercício de benchmark competition para a gestão pública, cuja ineficiência é um dos principais handicaps do SNS, e que a reforma há pouco iniciada - diretor executivo do SNS, instituição das ULS, regime de "dedicação plena", etc. - pode melhorar, se não for interrompida. Todavia, receio bem que, em vez de apostar na melhoria da eficiência do SNS, a direita no Governo prefira usar a ineficiência existente como pretexto para os seus projetos de privatização, que não se limitam às PPP ...

quarta-feira, 27 de março de 2024

Aplauso (38): O partido adulto na sala

1. Fez bem o PS em contribuir para desbloquear a comprometedora ameaça de crise institucional criada na AR pela imprudência do PSD, ao confiar ingenuamente no acordo com o Chega para assegurar a eleição do Presidente da AR, acordo que Ventura rompeu sem escrúpulos políticos (e já sem surpresa). 

Mesmo que a legislatura não venha a ser cumprida, e o PS não chegue a exercer a sua parte na presidência da AR, fica sempre o óbvio significado político deste episódio: o PSD experimentou mais uma vez os custos do "namoro" sem rede com a direita radical, e o PS reforçou o seu estatuto de partido capaz de, sem deixar de protagonizar a oposição ao Governo, sacrificar os seus interesses políticos imediatos em prol do prestígio das instituições democráticas.

É bom saber que em casos de emergência institucional há "partidos adultos na sala", capazes dos compromissos necessários para os superar.

2. Para além de se inspirar numa prática do Parlamento Europeu em anteriores legislaturas, a repartição temporal da presidência do parlamento pelos dois principais partidos tem a seu favor neste caso a igualdade de deputados entre o PSD e o PS, e esta solução pode vir eventualmente a iniciar uma "convenção constitucional", pelo menos nos casos em que o partido vencedor das eleições, ou tido como tal, não tem uma maioria de deputados no seu campo político para eleger o Presidente da AR, ou não consegue ativá-la, como neste caso. 

As regras de uma democracia constitucional não se resumem aos preceitos constitucionais, incluindo também as práticas instituídas que não sejam incompatíveis com aqueles.

Adenda
Discordando deste post, um leitor defende que «o PS não devia ter dado a mão ao PSD, salvando-o da traição do Chega e da humilhação de não conseguir eleger o seu candidato a presidente da AR». Não sufrago esse entendimento, como é óbvio. Há que distinguir, por um lado, as fundas divergências entre o PS e o PSD quanto à orientação política e, por outro lado, a responsabilidade comum de ambos em atalhar as eventuais ameaças de crise institucional, como era o caso. Um coisa é liderar a oposição política ao Governo, outra é facilitar o "jogo sujo" do Chega contra as instituições.

Adenda 2
Outro leitor considera que «se foi o Chega a tirar o tapete ao PSD no caso da eleição do Presidente da AR, pondo em risco um acordo de governo entre ambos, esta ajuda do PS ao PSD tira o tapete à proposta de unidade de esquerda contra o Governo de direita». Como já expliquei antes, não acompanho a ideia de uma frente de esquerda na oposição, como foi proposto pelo BE, dadas as óbvias divergências entre os diversos partidos, pelo que, sem prejuíuzo das normais consultas, o PS deve manter a sua autonomia política como líder da oposição

No cinquentenário do 25 de Abril (2): Recordar o "antigo regime"

1. A um mês dos 50 anos da Revolução importa registar as principais manifestações e opiniões sobre o evento que mudou profundamente Portugal - para melhor! 

Uma tarefa obrigatória consiste em lembrar o regime político caracterizamente antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar a que a Revolução veio pôr fim e a degradante situação económica, social e cultural a que a maior parte dos portugueses estava sujeita, até porque não falta quem continue a louvá-lo.

 Infelizmente, entre os saudosos não se contam aí somente os seus ideólogos e beneficiários e os herdeiros destes.

2. Julgo que podemos começar por este luminoso texto Fernanda Câncio de no Diário de Notícias de há pocuos dias, sobre as "Saudades da ditadura".

Um excerto: 

«Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são conquistas da democracia».

uma coisa que nem o tempo nem a contrainformação podem apagar: a opressão política, económica, social e cultural do chamado "Estado Novo".

Adenda
Um leitor exprime a sua «amargura por ver os 50 anos do 25 de Abril comemorados com a direita no Governo e a extrema-direita reacionária com 50 deputados na AR». Concordo que as comemorações oficiais poderiam ter outro brilho e outra convicção sem essas duas adversidades políticas decorrentes das recentes eleições antecipadas, que o PR decidiu injustificadamente convocar. Mas não creio que elas constranjam a mobilização e a expressão das comemorações extra-oficiais (partidos, sindicatos, organizações cívicas), que são as que mais importam.

História constitucional (8): Nos 200 anos da 1ª constituição brasileira

1. O Brasil comemora por estes dias o bicentenário da sua primeira Constituição (25 de março de 1824), menos de dois anos depois da independência (1822), por secessão do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que tinha sido instituído por D. João VI, no Rio de Janeiro, em 1815.

Embora seja um facto em geral ignorado na histografia política e constitucional brasileira, a primeira constituição aplicada no Brasil foram as Bases da Constituição aprovadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa em 1821, que foram imediatamente juradas e postas em vigor no reino do Brasil pelo regente D. Pedro, ainda antes de serem juradas, com efeito para todo o Reino Unido, por D. João VI no seu regresso a Lisboa. A declaração de independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, impediu a entrada em vigor ,no outo lado do Atlântico, da Constituição de 1822, aprovada no final desse mês, que constitucionalizava o Reino Unido, embora em termos insatisfatórios para os brasileiros.

A intransigência dos constituintes portugueses contra a proposta de tipo federal do Brasil precipitou a separação, que, aliás, D. Pedro preparava desde há muito.

2. Ao contrário da Constituição portuguesa, aprovada em assembleia constituinte eleita ainda em 1820, a Constituição brasileira de 1824 foi preparada por um comité próximo do imperador e outorgada pelo próprio D. Pedro, depois de ter dissolvido em 1823 a assembleia constituinte que ele próprio tinha convocado no Rio de Janeiro em 1822, interrompendo autocraticamente o exercício de poder constituinte representativo.

Na verdade, sendo um produto do poder constituinte outorgado pelo imperador, na senda do constitucionalismo restauracionista francês da Carta Constitucional de 1814, a Constituição brasileira consagrava a preeminência do poder do imperador, o qual, além de compartilhar do poder legislativo com o parlamento, através da sanção legislativa, e de ser titular do poder exercutivo, nomeando e demitindo livremente o governo, era também titular de um novo poder próprio, o poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, mas desviando-se do "poder neutral" deste, que era concebido como poder separado, e não cumulativo, dos demais poderes.

Tratava-se de formidável acumulação de poderes nas mãos do Imperador, em contraste com os reduzidos poderes régios na anterior Constituição portuguesa de 1822.

3.  Sucede que dois anos depois, na qualidade de herdeiro do trono português, por falecimento de D. João VI, D. Pedro decidiu restaurar a monarquia constitucional em Portugal, interrompida com a contrarrevoluação de 1823 contra o vintismo constitucional, optando expeditamente pela outorga de uma Carta Constitucional a Portugal, que não passava de uma réplica, com pequenas alterações, do texto que dera ao Brasil dois anos antes.

Emitida também no Rio de Janeiro e remitida para Lisboa para ser jurada, a Carta Constitucional de 1826 teve inicialmente vida bem mais atribulada do que a sua homóloga brasileira, tendo a sua vigência sido interrompida duas vezes: primeiro pela usurpação miguelista (1828-34) e depois pelo constitucionalismo setembrista (1836-1842). Todavia, tendo a sua vigência sido consolidada com a Regeneração (1851) e a revisão constitucional de 1852, ela veio a vigorar até à proclamação da República (1910), tal como no Brasil a Constituição de 1824 veio a manter-se até à proclamação respetiva República, em 1889.

Ou seja, a Constituição brasileira de 1824 constitui a matriz de um longevo constitucionalismo comum luso-brasileiro, sendo essencial para compreender a nossa Carta Cosntitucional e fazendo, portanto, também parte integrante da história constitucional nacional.

terça-feira, 26 de março de 2024

Um pouco mais de jornalismo sff (29): Destino do excedente orçamental

1. É inquietante a confusão que vai na cabeça de vários jornalistas e comentadores que imaginam que o saldo orçamental do ano passado, no valor extraordinário de mais de 3 000 milhões de euros, pode ser utilizado no pagamento de despesa pública no corrente ano orçamental, nomeadamente nas prometidas benesses aos professores, polícias, etc.

Trata-se simplesmente de ignorar que o art. 21º da Lei do Enquadramento Orçamental estipula claramente o destino do excedente orçamental geral - para amortização da dívida pública - e do excedente da conta da segurança social - para reforço do respetivo Fundo de Estabilização Financeira -, o que exclui obviamente o pagamento de despesa pública, como, aliás, foi anteriormente assinalado pelo presidente da UTAO.

Um pouco mais de zelo profissional não fazia mal a ninguém.

2. A despesa pública do corrente ano tem de ser coberta com receita cobrada neste ano. Por conseguinte, o novo Governo só pode contar com a previsível folga orçamental resultante de maior receita do que a prevista, cortesia de um crescimento económico e de um emprego de valor superior superior aos valores estimados no orçamento, o que o BP já prevê efetivamente.

Parece, porém seguro que, mesmo sem nova despesa, o excedente orçamental deste ano, embora podendo ser previsivelmente maior do que o previsto no orçamento ("somente" 0,2%), não iria atingir seguramente o valor extraordinário do excedente de 2023.

Adenda
A propósito, é de rejeitar de todo a qualificação do excedente orçamental como «almofada salazarenta», como faz a comentadora Ana Gomes, não somente pela infelicíssima comparação histórica com a ditadura, mas sobretudo porque nega o evidente mérito da redução da dívida pública (ainda perto dos 100%, 40 pp acima do limite estipulado pela UE), com os inerentes ganhos colateriais (redução dos juros da dívida pública, deixando maior margem para outra despesa pública), bem como do reforço da sustentabilidade da segurança social e do sistema de pensões. De resto, como já escrevi, considero que uma das grandes mais-valias dos governos de António Costa foi o abandono do tradicional laxismo orçamental e a conversão do PS à ideia de que «a disciplina orçamental é de esquerda», como sustento há muitos anos.

Adenda 2
Um leitor observa que, mesmo assim, o excedente orçamental provável para o corrente ano ainda vai representar muito dinheiro, que o novo Governo vai aproveitar para fazer o brilharete de distribuir pelos vários grupos profissionais, «o que o PS devia ter feito antes, para melhorar as suas hipóteses eleitorais». Concordo que vai ser muito dinheiro, mas se o novo Governo o gastar, aumentando a despesa pública corrente, deixa de ter excedente e de reduzir a dívida pública, este ano e provavelmente nos seguintes, como estava previsto. Quanto ao facto de o PS não ter feito isso no ano passado, reduzindo o excedente de 2023 (e eliminando o deste ano), é uma questão de opinião quanto à justeza dessas benesses - eu, por exemplo, não teria apoiado.

segunda-feira, 25 de março de 2024

No cinquentenário do 25 de Abril (1): Uma Revolução a sério

1. Sendo uma das mais profundas revoluções da história política nacional, quanto à rutura com o regime precedente - só equiparável à Revolução liberal de 1820, que, porém, foi vencida pela contrarrevolução antivintista logo em 1823 -, a Revolução de 25 de Abril de 1974, iniciada por uma sublevação militar, logo transformada em intensa revolução popular, foi também a mais bem-sucedida na transformação do País, indo além do seu programa originário.

No campo político: fim do regime autoritário e do seu aparelho repressivo e termo da guerra colonial, recuperação das liberdades pessoais, civis e políticas, instauração de um regime democrático baseado na democracia representativa e na democracia participativa, sólidas instituições do Estado de direito, descentralização territorial nos municípios e nas regiões autónomas;

No campo económico e social: institucionalização de um "Estado social" avançado, assente na constitucionalização dos direitos laborais e sociais (educação, saúde, segurança social, etc.), uma economia de mercado temperada pela regulação pública e pela garantia pública dos "serviços de interesse económico geral", a que a integração económica europeia veio dar cobertura (a "economia social de mercado").

Se as revoluções se medem pelos seus resultados, esta pede meças a todas as anteriores revoluções nacionais.

2. Além disso, passados 50 anos, o regime democrático instaurado há meio século mantém uma notável vitalidade, apesar dos novos desafios (globalização, emergência de novos poderes, ameaças terroristas, movimentos migratórios, populismo, etc.). Nem a nova direita política de caráter populista radical ousa desafiar frontalmente os fundamentos constitucionais do regime.

A Constituição de 1976 - que é o estatuto jurídico-institucional da Revolução e das suas transformações políticas, económicas, sociais e culturais - é ja a segunda Lei Fundamental mais duradoura da nossa história constitucional, só superada pela Carta Constitucional de 1826. 

Aliás, de entre as nossas constituições mais avançadas (as de 1822, de 1838 e de 1911), a CRP de 1976 foi a única que passou o teste do tempo, estando à beira de perfazer também os 50 anos. De resto, não sendo modificada há quase 20 anos, desde a pontual revisão de 2005 - o que prova o amplo consenso constitucional alcançado, que as várias revisões constitucionais ajudaram a estabelecer -, ela passa pelo maior período de estabilidade constitucional entre nós, desde 1885!

Os deputados da Assembleia Constituinte de 1975-76, entre os quais me conto, têm razões para se sentirem orgulhosos da sua obra.

3. Há evidentemte gente que, tendo-se empenhado, no auge da Revolução, na luta por transformações económicas, políticas, sociais e culturais bem mais radicais - nomeadamente a superação do capitalismo e da "democracia burguesa" -, sente que o saldo das "conquistas de Abril" foi escasso e que mesmo algumas que pareciam alcançadas (até porque inicialmente dotadas de garantia constitucional), como a nacionalização do grande poder económico e a reforma agrária, acabaram por perder-se ingloriamente. Não falta mesmo quem ouse proclamar que "não foi para isso que se fez o 25 de Abril".

Lamento discordar. Primeiro, tais objetivos não constavam dos propósitos originários da Revolução, os quais foram todos realizados, como se mostrou acima; segundo, aqueles objetivos "utópicos" nunca gozaram de uma maioria política ou sociológica de apoio, como se viu logo nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975; terceiro, numa democracia constitucional, a própria Constituição está  aberta à revisão, aliás dependente de maiorias políticas muito exigentes.

Seja como for, a Revolução portuguesa acabou por ir bem além dos seus estritos propósitos iniciais  e foi seguramente bastante mais ambiciosa do que a transição democrática de outros regimes autoritários em numerosos outros países depois dela, na Europa e fora dela.

Por isso, a única mensagem que traduz apropriadamente o que devemos à Revolução de há 50 anos é: Obrigado, 25 de Abril!

Contra a corrente (6): A questão do número de deputados da emigração

1. O substancial aumento da participação eleitoral nos círculos eleitorais do exterior nestas eleições parlamentares veio alimentar a ideia de elevar o número de deputados que eles atualmente elegem (4), e até o comentador Marques Mendes veio ajudar a essa "missa", fazendo uma comparação com círculos eleitorais do território nacional com semelhante número de eleitores e que elegem mais deputados.

Penso, porém, que não se deve aumentar esse número. Primeiro, é a própria Constituição que afasta o critério do número de eleitores na determinação do número de deputados a eleger pelos residentes no exterior; segundo, como o número de deputados da AR não pode ser aumentado, o acréscimo de deputados dos círculos do exterior só poderia ser feito à custa de uma redução dos deputados eleitos no território nacional; terceiro, há muitos países, incluindo na Europa, que não conferem direito de sufrágio aos eleitores residentes fora do País (como a Irlanda), ou que deixam de o reconhecer passado um certo tempo de ausência do País (como a Dinamarca, dois anos).

A verdade é que nem a teoria democrática, nem nenhuma obrigação internacional, impõem a participação dos residentes no exterior na escolha dos parlamentos e dos governos nacionais.

2. E comprende-se bem porquê: os residentes no exterior não compartilham em geral das obrigações dos residentes, nomeadamente quanto ao pagamento de impostos (sem ignorar, todavia, a importância económica das remessas dos emigrantes), nem são afetados pela generalidade das políticas adotadas pelos respetivos parlamentos e governos. 

No entanto, a democracia representativa é, por definição, a governação exercida pelos representantes eleitos direta ou indiretamente pelos governados, ou seja, aqueles que vão ser os destinatários das leis e das políticas governamentais adotadas e que sustentam o Estado com os seus impostos. 

Os residentes no estrangeiro, muitos deles sem nenhuma conexão direta com o País e outros acumulando a nacionalidade do seu país de residência, só marginalmente compartilham de ambas aquelas dimensões da cidadania, pelo que faz pouco sentido que possam influenciar fortemente a escolha dos governantes.

3. Ora, mesmo elegendo só quatro deputados, os círculos do exterior estiveram à beira de decidir o vencedor destas eleições. Com a crescente fragmentação partidária, o aumento desse número faria aumentar exponencialmente esse risco, criando um problema de legitimidade política, mesmo ignorando os problemas de segurança e de integridade do voto no exterior.

Sendo indubitavelmente justificada, como instrumento de reforço do sentimento de pertença nacional, a representação política exterior deve, porém, ser proporcional à sua contribuição para os encargos da República e à medida em que compartilham dos seus problemas e das soluções políticas que lhes são dadas.

Adenda
Mais radical, um leitor entende que se não justifica o voto dos cidadãos não residentes, transmutando a célebre proclamação no taxation without representation dos independentistas norte-americanos contra a Grâ-Bretanha numa outra: no representation without taxation. Penso que a falta de obrigação tributária justifica uma representação política reduzida, mas não a sua eliminação.

Adenda 2
Outro leitor receia que, depois de ter vencido as eleições entre os emigrantes, «a primeira iniciativa legislativa do Chega vai ser mesmo o alargamento da sua representação política». Admito que sim, mas o que me preocupa é o eventual seguidismo oportunista de outras bancadas, incluindo dos principais partidos. Confio, porém, na impossibilidade de reunir os 2/3 de deputados que a Constituição exige.

Adenda 3
Concordando com o post, um leitor acrescenta que «seria bom notar que Portugal tem atualmente um grande número de imigrantes, os quais sofrem os efeitos das políticas do Estado português, mas não são autorizados a votar», defendendo que «seria mais do que adequado conceder a todos os imigrantes que já estivessem em Portugal há um certo número de anos (talvez dois ou quatro) o direito de votar em todas as eleições». Notando que eles também contribuem para a sustentação financeira do Estado, como os nacionais, e deixando em aberto os requisitos concretos, também entendo que é altura de equacionar o reconhecimento da cidania política dos imigrantes radicados em Portugal.

Adenda 4
Também concordando com o texto, outro leitor acrescenta outra razão para justificar a limitação da representação parlamentar dos cidadãos residentes no exterior, que tem a ver com «considerações de coesão / soberania nacional, na medida em que os eleitores residentes no estrangeiro, contribuindo com o seu voto para a decisão em território nacional, podem ser muito influenciados por realidades exteriores» - como poderia ter sido o caso nestas eleições da influência do bolsonarismo no Brasil ou da hostilidade da direita populista francesa contra a imigração islâmica, em favor do voto no Chega. Sem dúvida, uma consideração a não ignorar.

sábado, 23 de março de 2024

Falsas boas ideas (4): Fugir ao parlamento?

1. Esta ideia de o novo Governo minoritário legislar preferentemente por decreto-lei, evitando a AR, não tem pés nem cabeça. 

Primeiro, há as muitas matérias de competência reservada da AR, sobre as quais o Governo não pode legislar, ou só pode fazê-lo sob autorização parlamentar, o que se não afigura viável sem negociação com os partidos de oposição; em segundo lugar, todos os diplomas legislativos do Governo, mesmo no uso de competência própria, podem ser chamados, ato contínuo, a controlo parlamentar e ser modificados ou revogados.

De resto, além de ser uma falsa solução, a proposta de "fuga ao parlamento" pode, pelo contrário, acirrar as oposições contra o Governo, piorando a situação deste.

2.  Um governo minoritário está, por definição, mais dependente do parlamento do que um governo maioritário. 

O poder legislativo governamental autónomo é uma ilusão quando se trata de governos minoritários, especialmente no caso deste Governo de direita, que tem menos deputados do que o campo político adverso - os partidos de esquerda - e que, portanto, precisa do apoio, e não somente da abstenção, dos demais partidos de direita.

Como primeiro esquema para atenuar a vulnerabilidade política de um Governo tão minoritário como este, a proposta de contornar o parlamento não é seguramente uma ideia brilhante. Exige-se melhor dos estrategos do Governo Montenegro. 

Adenda
O Público de hoje acrescenta que o Governo não tem maioria parlamentar para confirmar os diplomas vetados pelo PR. Mas não é de crer que tal seja um problema real: 1º - como mostro acima, poucas serão as leis aprovadas na AR somente com os votos das bancadas governamentais; 2º - em qualquer caso, a hipótese de veto legislativo presidencial será ainda mais rara. Na verdade, com este Governo - que, afinal, também é seu... -, é de antecipar que o poder de veto do PR vai "entrar de férias", não sendo, portanto, de recear o "fogo amigo" de Belém..

sexta-feira, 22 de março de 2024

Ai, Portugal ! (12): Estado de não-direito

1. A PGR, Lucília Gago, veio admitir que a responsabilidade pela investigação a António Costa, até agora nas mãos dos magistrados do Ministério Público junto do STJ, por este ser o foro competente para eventual julgamento do chefe do Governo, poderá ser transferida para o DCIAP, agora que ele está em vias de cessar aquelas funções, mas logo foi desautorizada pelo presidente do sindicato do MP - que se pronuncia habitualmente como se fora o verdadeiro PGR -, que lhe veio negar qualquer poder para alterar a situação. 

Assim vai, com este problemático grau de autoridade, uma instituição que deveria primar no respeito do Estado de direito.

2. Seja como for, nem a PGR nem o sindicato, se permitiram adiantar o que quer que seja sobre a situação da tal investigação, passados mais de quatro meses sobre o fatal último parágrafo do comunicado da PGR de 7 de novembro que provocou a demissão de AC, não tendo o visado recebido nenhuma informação durante todo este tempo, nem sido ouvido no processo - um manifesto abuso de poder.

Pelos vistos, apesar de ter conseguido a sua demissão, o MP mantém-se inabalável na perseguição ao ex-líder do PS e ex-PM, mantendo-o indefinidamente como refém da sua inqualificável operação de lawfare, sem nenhuma possibilidade de reação, com lesão evidente da sua vida pessoal, profissional e política. Isto não é próprio de um Estado de direito.

Adenda
Sobre este assunto, merece ser lido este artigo do Professor Miguel Romão no Diário de Notícias de hoje, sintomaticamente intitulado "Golpe". Há golpes pela calada, literalmente.

Memórias acidentais (25): Um singular serviço militar

1. Não pude estar no lançamento da biografia de Francisco Lucas Pires, mas vou lê-la seguramente, não só pelo importante legado político-doutrinário que ele deixou, mas também pelo respeito intelectual e pela amizade que nos ligou desde os tempos de Coimbra, que o interesse comum pelo constitucionalismo facilitou, e que já tive oportunidade de registar publicamente aqui no Causa Nossa.

É verdadeiro o episódio que esta notícia sobre o livro evoca, do nosso serviço militar nas Caldas da Rainha no final de 1974. Embora já com cerca de 30 anos, ambos já casados e com filhos, tínhamos gozado do adiamento do serviço militar, primeiro como estudantes bem-sucedidos e depois como assistentes e doutorandos da FDUC, o que nos livrou da guerra colonial. Chegada a Revolução, ambos decidimos interromper o doutoramento que preparávamos no estrangeiro, eu em Londres, ele na Alemanha, para nos entregarmos à luta política, nos campos políticos opostos a que pertencíamos. 

Nenhum de nós resistiu ao apelo da Revolução.

2. Foi aí que inesperadamente fomos chamados ao cumprimento do serviço militar, não no Curso de Oficiais Milicianos (COM), em Mafra, como era antes do 25 de Abril - entretanto extinto, como "excrescência elitista" -, mas sim na recruta geral, no quartel das Caldas da Rainha. Foi uma experiência exigente, num clima agreste, de frio e chuva - entre as faxinas, a aprendizagem no manejamento da G3 e o rastejamento em percursos lamacentos -, enquanto a Revolução fervia cá fora, depois do 28 de Setembro. 

Felizmente, como a referida notícia refere, tive a sorte de o acompanhar não poucas vezes, depois do quartel, à casa que Teresa, sua mulher, tinha arrendado em Óbidos, em longos repastos e fértil discussão política. Uma muito grata recordação!

3. Terminada a nossa breve missão militar, viemos a seguir caminhos afins: ele foi preparar um projeto de Constituição para o CDS e eu fui integrar o grupo de trabalho do PCP para a preparação do respetivo projeto de Constituição.

Mais tarde, a vida encarregar-se-ia de nos aproximar politicamente, tendo ambos deixado os nossos partidos de origem, ele no centro-direita e eu no centro-esquerda, continuando a cultivar a amizade e a admiração recíproca que nos ligara desde Coimbra, até ao seu desafortunado desaparecimento prematuro. 

Apraz-me verificar que este livro vem resgatar merecidamente o seu pioneiro legado político-intelectual na direita liberal e europeísta entre nós.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Eleições parlamentares 2024 (44): A lição de 1987 e de 2021-22

1. Não me conto entre os que auguram vida curta ao novo Governo do PSD-CDS, atendendo à sua base parlamentar ultraminoritária (80 deputados em 230). Pelo contrário.

O meu argumento é o seguinte: nenhum Governo minoritário (mesmo Cavaco Silva em 1985 ou Guterres em 1995) iniciou funções em condições económicas e financeiras tão favoráveis como este: economia a crescer, emprego e salários a subir, folga orçamental substancial e receitas públicas a aumentar, peso da dívida pública a descer, o PRR a "bombar" financiamento do investimento público e privado, inflação controlada. Acresce que a esperada descida da taxa de juros pelo BCE vai facilitar o crédito ao consumo e ao investimento, estimulando o crescimento, e aliviar os encargos do crédito à habitação.

A não sobrevir nenhum fator adverso inesperado, basta ao Governo explorar adequadamentea a herança recebida para sobreviver e, mesmo, ser bem-sucedido.

2. Com efeito, nestas condições extremamente favoráveis, o Governo bem pode começar por satisfazer as reivindicações das corporações do setor público que tanto "azucrinaram" o Governo cessante (professores, polícias, militares, pessoal do SNS), apesar do significativo aumento da despesa pública corrente que elas implicam, e preparar a "compra" do voto do Chega no orçamento no final do ano, incluindo o início da prometida desoneração fiscal e do novo aumento das pensões mais baixas.

Se as coisas não decarrilaram, por inépcia ou sofreguidão governamental, não se vê como pode verificar-se uma convergência do Chega e do PS para derrubar o Governo (e só ela o poderia deitar abaixo). Como fazem lembrar as experiências em 1987 (derrube do I Governo de Cavaco Silva) e de 2021-22 (derrube do II Governo de A. Costa) - que resultaram em maioria absoluta do Governo derrubado, nas eleições subsequentes -,  o pior que as oposições podem fazer é juntarem-se para derrubarem um Governo minoritário a quem as coisas estão a correr bem.

Adenda
Um leitor socialista, concordando com o post, considera que, «depois desta pesada derrota, o próprio PS precisa de tempo para se recompor e para construir em novos moldes a sua relação com os eleitores e, por isso, não pode precipitar uma queda rápida deste governo». Estou de acordo, como argumentei AQUI.

Adenda 2
Um leitor adiciona um outro fator favorável ao novo Governo: o «apoio ativo do Presidente da República, em vez da oposição pública que moveu contra o último governo do PS». Tem razão: a ajuda de Belém pode ser decisiva.

Adenda 3
Manifestado a sua concordância com o post, outro leitor comenta: «o que me espanta é como é que o PS foi tão penalizado, precisamente com esta situação económica e social, e, obviamente, como é que os votos vão parar a um partido sem qualquer programa político que se entenda, recebendo ainda, massivamente, o apoio dos emigrantes portugueses lá fora, quando se trata de um partido que hostiliza a imigração». Tem razão: na era do populismo e das redes sociais, a política tem razões que a razão política desconhece.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Eleições parlamentares 2024 (43): Frentismo oposicionista?

1. Não vejo que sentido faz ver o PS a aceitar prontamente o convite do Bloco para uma ronda de encontros, por este promovida, com os demais partidos de esquerda, com o propósito declarado de acordar numa estratégia comum na oposição ao Governo liderado pelo PSD e de preparar uma futura alternativa de Governo.

Por um lado, considero que se o PS quer ser o líder da oposição, como anunciou PNS na noite eleitoral, não pode aceitar alinhar com iniciativas em que o protagonismo é assumido pelo BE, posto em bicos de pés, como campeão da convergência, depois de ter passado a campanha eleitoral a fazer do PS o alvo principal dos seus ataques. Por outro lado, tal como a julgo que a insistência numa maioria de esquerda, mesmo quando ela já era manifestamente impossível, foi um dos fatores que contribuiu para o mau desempenho eleitoral do PS entre os eleitores do centro político, também agora penso que uma "união de esquerda" na oposição só pode redundar em prejuízo do PS

2. Uma coisa são eventuais consultas "ad hoc", nomeadamente no quadro parlamentar, outra coisa é um acordo sobre uma espécie de "programa comum de oposição" - que se afigura totalmente descabido.

Se quer reconquistar o eleitorado perdido, o PS deve afirmar a sua autonomia política não somente face à direita, mas também face às demais esquerdas, quer na oposição ao Governo, quer na preparação de uma futura alternativa de governo.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Eleições parlamentares 2024 (42): A invenção do Presidente

1. Este anúncio de que MRS considera ao número de «deputados da AD e não somente do PSD» para efeitos de formação do Governo, confirma o deliberado viés presidencial neste processo, para favorecer o PSD, que denunciei anteriormente

Depois de ter efetuado indevidamente as audiências antes de conhecida a composição da AR (que depende dos quatro deputados do exterior, ainda por apurar), incluindo nelas as coligações, que não deviam entrar neste processo, o Presidente prepara-se para considerar na escolha do novo PM o número de deputados eleitos nas listas da AD (e também da coligação PSD+CDS na Madeira, que não integrou a AD), onde se contam dois deputados do CDS, mesmo depois de ela estar extinta. 

Ora, constitucionalmente não há "deputados da AD", mas somente deputados do PSD e do CDS eleitos nas listas da AD, tal como propostos por ambos os partidos.  

2. De facto, depois de apurados os resultados eleitorais, as coligações extinguem-se automaticamente, e o que conta é o número de deputados de cada partido, independentemente de terem sido obtidos isoladamente, em listas próprias, ou em listas de coligação. É absurdo somar os deputados do CDS para fundamentar o convite ao PSD para formar Governo em 1º mão, mesmo que este acabe por não ser o partido com mais deputados e o maior partido da AR -, o que sucederá pela primeira vez no regime democrático. 

Cabe perguntar se MRS faria o mesmo se, em vez do PS e da AD, estivesse em causa o PSD e uma hipotética coligação "Esquerda democrática" (PS+Livre), tendo o PSD menos deputados do que a soma dos partidos da coligação, mas mais do que o PS. Parece-me evidente que na formação do Governo daria preferência, e bem, ao PSD, por ter maior número de deputados e ser o maior partido na AR.

O PR é politicamente irresponsável pelas suas decisões, mesmos quando manifestamente erradas como esta, mas não é imune ao julgamento da opinião pública.

Adenda
Através da sua ventríloqua privilegiada no Expresso, MRS faz saber que «sonha com AD [sic] a resistir ate às presidenciais» -, com a desvelada ajuda de Belém, obviamente.

Adenda 2
Como é claro desde o dia 10, o PS não se propõe formar Governo, mesmo que viesse a ter mais deputados, porque tal solução não teria a mínima hipótese de vingar na AR, dada a ampla maioria parlamentar das direitas, pelo que será o PSD, ainda que venha a ter menos deputados, a constituir Governo, minoritário, mesmo formando uma coligação de governo com o CDS. Mas para isso não é preciso inventar a ideia dos "deputados da AD"

quinta-feira, 14 de março de 2024

Eleições parlamentares 2024 (41): A desistência Liberal

É fácil perceber as razões da Iniciativa Liberal para desistir de entrar no Governo com o PSD, como tinha defendido convictamente na campanha eleitoral. O seu líder chegou a dizer no debate com Montenegro que a solução governativa estava naquela mesa.

A meu ver há várias razões: primeiro, a IL não conseguiu realizar o seu objetico de crescimento eleitoral, tendo por isso perdido poder negocial para impor ao PSD concessões relevantes, em negociações que sempre seriam muito difíceis, dadas as marcadas diferenças entre os dois partidos; segundo, essa coligação alargada não teria maioria absoluta, nem sequer mais deputados do que o conjunto das esquerdas, tornando a tarefa do Governo bastante mais problemática quanto a reformas liberais; terceiro, uma vez que o Governo ficaria essencialmente dependente do Chega, a IL receou, com razão, poder estar em risco a linha vermelha que tinha anunciado contra qualquer colaboração governativa com a direita populista; por último, a IL terá concluído serem assaz problemáticas as condições de sucesso e de duração do Governo do PSD (+CDS), não justificando o seu investimento nessa solução, dado o risco de vir a pagar politicamente pelo seu provável insucesso.

A desistência liberal torna o Governo PSD+CDS ainda mais minoritário e politicamente mais isolado, dependente de negociações caso a caso com o Chega e com a IL, em competição. Não são boas perspetivas.

quarta-feira, 13 de março de 2024

O que o Presidente não deve fazer (45): O árbitro não deve tomar partido

1. O PAN tem razão quando defende que as audiências presidenciais aos partidos com vista à formação de novo Governo não deviam ter lugar antes de os resultados eleitorais estarem inteiramente apurados, para o que ainda falta escrutinar os votos do exterior, os quais podem alterar os dados relativos ao território nacional, nomeadamente quanto ao número de deputados eleitos por cada partido.

Ora, havendo neste momento um empate entre o PSD e o PS, os resultados que faltam podem desfazer esse empate a favor de qualquer do dois principais partidos, sendo evidente que isso está longe de ser politicamente irrelevante (como mostrei AQUI).

2. Acresce que, desta vez MRS convocou também as coligações junto com os partidos políticos que concorreram isoladamente, ao contrário do que fez em 2019, como se pode ver na imagem abaixo, que me foi remetida por um leitor. Ora, não faz sentido convocar as coligações eleitorais, não somente por elas se extinguirem automaticamente com o apuramento dos resultados eleitorais, mas também por os mandatos parlamentares serem atribuídos aos partidos, e não às coligações.

Tendo em conta que estas audições têm a ver com as diligências preparatórias para a nomeação do novo Governo, que é matéria do foro dos partidos, e não das coligações, não se compreende a convocação das segundas.

3. Além disso, tendo covocado duas coligações, a AD e a CDU (apesar de os Verdes não terem elegido nenhum deputado), Belém "esqueceu-se" de uma 3ª coligação, a "Madeira Primeiro", constituída pelo PSD e pelo CDS naquele círculo eleitoral, que não pode ser integrada na AD, porque tem uma composição partidária diferente, pelo que os resultados daquela, em votos e em deputados eleitos, não podem ser imputados à AD (como os media estão a fazer indevidamente).

Não se percebe, portanto, o critério de seleção das coligações...

4. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e afins (como o francês), em que os presidentes da República são titulares ou cotitulares das funções executivas (governo) e, por isso, são eleitos numa base partidária, nenhuma dessas condições se verifica entre nós, onde o PR exerce uma função de supervisão do sistema político, como árbitro independente e imparcial.

Nessa condição, no exercício dos seus poderes, o Presidente não tem partido nem pode pode orientar-se por razões de preferência ou de animosidade partidária. Não pode, nem deve dar a impressão de que o faz...

Adenda
Embora continue a contabilizar os deputados pelas coligações, não os desagregando pelos partidos que as constituem, a página oficial da Comissão Nacional de Eleições sobre os resultados eleitorais distingue claramente, como tem de ser, a coligação PSD+CDS+PPM (AD), da coligação PSD+CDS (Madeira Primeiro), por se tratar de duas candidaturas diferentes (e, por isso, coloca o PS em 1º lugar, por ter mais votos e mais deputados do que a AD).

Adenda 2
Um leitor argumenta que, uma vez que «o PS já decidiu passar à oposição, sem esperar pelo apuramento final das eleições, não há razão para Marcelo [Rebelo de Sousa] não iniciar as audiências necessárias para a formação de novo Governo». Sim, não tenho dúvidas que o PS não quer formar Governo, mesmo que venha a ser o maior partido parlamentar, pelas razões que expus AQUI (posição reafirmada no jornal oficial do PS), mas isso não dispensa o PR de respeitar as regras aplicáveis, a saber: (i) a formação do Governo diz respeito aos partidos, não às coligações eleitorais, que se extinguem com as eleições; (ii) as audiências com os partidos devem iniciar-se somente depois de conhecido o novo quadro parlamentar, que depende do apuramento final das eleições. Não há nenhuma razão válida para não respeitar tais regras.

Adenda 3
Contestanto a tese de que o PR deve ser imparcial no exercício das suas funções, um leitor sustenta que «não há nenhuma lei que diga isso [e que] nada na lei proíbe o Presidente de fazer parte de um partido nem de favorecer um partido, de qualquer forma que lhe apraza, desde que no respeito da Constituição». Mas não tem razão. A neutralidade partidária do PR goza de um largo sufrágio entre os constitucionalistas, tendo em conta não somente a origem doutrinária do "poder moderador" do Presidente (que Constant designou justamente como "poder neutro"), mas sobretudo o seu estatuto constitucional: não ser candidato partidário, ser o representante da República (ou seja, de toda a coletividade, e não de uma parte dela), e estar fora da dialética Governo v. oposição. Os juízes também podem ter partido, e os árbitos deportivos podem ter o seu clube, mas no exercício das suaa funções têm de os colocar "entre parêntesis".