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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (9): Contra o desvio do Conselho de Estado

1. Na sua entrevista de ontem à CNN, o candidato presidencial Marques Mendes anunciou que, se for eleito, tenciona prosseguir com a prática da reunião frequente do Conselho de Estado, incluindo o convite a personalidades convidadas, considerando positiva a inovação trazida por Marcelo Rebelo de Sousa nesse ponto.

Comprendo o seu ponto de vista, tanto mais que, como conselheiro de Estado de nomeação presidencial, ele foi "cúmplice" e beneficiário dessa prática. Mas não penso da mesma maneira -, pelo contrário. Várias vezes denunciei o abuso e a instrumentalização política do Conselho de Estado pelo PR cessante (por exemplo, AQUI e AQUI). E por isso incluí tal item no meu "catálogo do bom candidato presidencial" (AQUI).

Como diz a Constituição, o CdE só pode ser convocado para aconselhar o PR no exercício das suas funções, o que, a meu ver, requer duas coisas: (i) que o PR submeta ao Conselho uma questão relativa ao exercício de um dos seus poderes constitucionais, (ii) a fim de obter um parecer do Conselho sobre a mesma.

Tal como os demais órgaos constitucinais, o CdE só pode ser chamado a exercer os poderes previstos na Constituição, e não para outros efeitos.

2. Por isso, o Conselho não deve ser convocado para se pronunciar sobre, ou só para para debater,  as políticas públicas setoriais, que são da competência do Governo, sob escrutínio da AR, e não do foro presidencial, pelo que também estão fora dos poderes daquele. 

Ao contrário do que tem sucedido, o Conselho não pode ser despromovido a uma mera tertúlia política de senior citizens - que o PR sempre poderá reunir à volta de um discreto repasto -, nem muito menos ser promovido a uma espécie de segunda câmara parlamentar de escrutínio da ação governamental, à margem do seu conceito histórico e da atual Constituição, que claramente optou, desde a origem, por um parlamento unicamaral, representativo das diversas forças políticas, e que, desde 1982, estabelece inequivocamente que o Governo só responde politicamente perante a AR, e não perante o PR, nem direta nem indiretamente.

Não ignoro que não falta quem defenda a criação de um senado, o que se comprende entre os próprios putativos "senadores da República", mas não é essa manifestamente conceção constitucional do CdE, que deve ser precisamente respeitada

Adenda
Em contrapartida, concordo inteiramente com as declarações de Marques Mendes contra os comentários presidenciais às leis aquando da sua promulgação, prática em que o atual titular do cargo é useiro e vezeiro, e que condenei desde o princípio (AQUI). Tendo um poder de veto sobre as leis e sobres alguns atos do Goveno, o PR não é, porém, cotitular do poder legislativo nem do poder governamental.

Adenda 2
Não tem razão o leitor que objeta que, «se o Presidente não puder convocar livremente o Conselho de Estado, este de nada serve». Com efeito, além dos casos de convocação constitucionalmente obrigatória (como a dissolução da AR e dos parlamentos regionais), o Presidente pode sempre convocá-lo para dar parecer sobre o exercício de outros dos seus poderes, como, por exemplo, a declaração do estado de sítio (ou a sua renovação), o veto de leis parlamentares (que, a meu ver, deveria ser obrigatório, pelo menos no caso das "leis orgânicas"), a convocação extraordinária da AR, a nomeação do PGR e do presidente do Tribunal de Contas, a ratificação dos tratados de adesão a organizações internacionais, etc. Não é preciso convocar o Conselho à margem da Constituiação, para dar trabalho aos conselheiros...

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Manifesto pela Reforma da Justiça (7): O sindicato dirigente

1. Merece ser lido este texto ontem publicado no Público pela magistrada aposentada do Ministério Público, Maria José Fernandes, sobre o sindicato dos seus magistrados e sobre como ele passou de uma organização de defesa de direitos e interesses laborais, como é próprio dos sindicatos, para um centro de poder hegemónico dentro da própria instituição. Mais uma vez a autora dá uma prova de coragem incomum na defesa da instituição a que dedicou a sua vida profissional.

Com o conhecimento de causa que o texto revela, ele vem ao encontro de algo que há muito tempo denuncio aqui, ou seja, a captura do governo do MP pela autogestão sindical da corporação, que constitui uma ameaça fatal à autoridade do Procurador-Geral como presidente da PGR, ao princípio da hierarquia funcional e à autonomia do Ministério Público, constitucionalmente garantida.

2. Tal como a autora, não creio que a situação seja reparável por autorreforma da conduta do sindicato. Quem tomou um  poder numa instituição tão importante no nosso sistema de justiça penal (e não só) não abdica dele de motu proprio.

Reiterando as propostas que tenho feito sobre o assunto, a captura sindical do MP só pode ser desfeita por duas vias simultâneas: (i) a transferência para o PGR de poderes de que nunca deveria ter sido privado, como presidente que é da Procuradoria-Geral, como o movimento dos magistrados e a ação disciplinar; (ii) a redução da representação dos magistrados no Conselho Superior da instituição, perdendo a absurda a maioria que atualmente detêm.

Ao contrário do sindicato, que, por definição, representa interesses particulares de grupo, o PGR goza de legitimidade democrática para governar a instituição à luz do interesse público, sendo nomeado (e eventualmente destituído) pelo PR sob proposta do Primeiro-Ministro, e só ele pode responder pela atividade do MP, como é devido numa Estado de direito constitucional, quer perante quem o nomeou, quer perante a AR.

Decididamente, é altura de uma reforma do governo do Ministério Público em plena conformidade com a Constituição.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Não concordo (50): Pior a emenda...

1. Penso que não é preciso ser apoiante da desagregação das freguesias em vias de aprovação na AR, para não ver razão para travar a sua implementação, mediante um veto presidencial, com o argumento de que que este ano haverá eleições autárquicas

Pelo contrário, penso que é exactamente antes das eleições locais gerais que se devem fazer estas reformas territoriais e que, ocorrendo as eleições lá para finais de setembro, há tempo mais do que suficiente para as preparar nas novas freguesias. Ao invés, o adiamento da sua criação, além da frustração criada nas freguesias em causa, obrigaria à realização de novas eleições posteriormente, interrompendo o mandato eleitoral obtido este ano, e para um mandato subsequente incompleto. Isto, para além dos custos dessas novas eleições em tantas freguesias. 

Seria, portanto, pior a emenda do que o soneto...

2. Por isso, não vejo porque é que o entendimento particular do PR sobre a inoportunidade da criação das novas freguesias em ano de eleições há-de prevalecer sobre o juízo contrário da AR, que tem constitucionalmente a competência exclusiva para as criar, e cuja iniciativa gerou fundadas expectativas nas populações interessadas. Não está em causa seguramente o "regular funcionamento das instituições".

Se, como defendo há muito, o veto político sobre leis da AR deve ser, por princípio, excecional, não deve nunca ser exercido somente para fazer valer as opiniões políticas do PR, para mais pouco pertinentes.

Adenda
Um leitor considera que, se MRS admite mesmo vir a exercer o veto político sobre a lei, «deve consultar previamente o Conselho de Estado, cujo parecer aqui se justifica plenamente». Inteiramente de acordo. De resto, tenho defendido que os vetos de leis da AR deveriam ser precedidos, por via de regra, por parecer do Conselho de Estado, porque lesam a soberania legislativa da AR, como expressão da autonomia legislativa da coletividade, representada no parlamento.

sábado, 4 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (51): Onde não é chamado

1. Ao consultar os demais membros do Conselho de Estado sobre o pedido do líder do Chega para uma reunião daquele órgão de consulta presidencial sobre questões de segurança, o PR admite explicitamente que tal reunião poderá vir a ter lugar, se uma maioria deles tal entender. Ora, para além de descartar a responsabilidade pela convocação (ou não) do seu órgão consultivo, não se vê qual pode ser o cabimento político e constitucional da intervenção do CE nessa matéria.

Segundo a Constituição, o Conselho de Estado, para além dos casos de convocação obrigatória, sobre o exercício de competências presidenciais de maior impacto político (como a dissolução parlamentar ou a demissão do Governo), pode ser chamado a «aconselhar o PR no exercício das suas funções», a seu pedido. Ora, que se saiba, o PR não exerce nenhuma função em relação à política de segurança, que é da exclusiva competência governamental, pela qual o Governo é responsável somente perante o parlamento.

2. Manifestamente, o PR insiste em instrumentalizar politicamente o Conselho de Estado (como ja anotei AQUI e AQUI e AQUI), transformando-o numa espécie de segunda câmara parlamentar, para se imiscuir onde não é chamado, ou seja, na condução da política nacional, que é do foro privativo do Governo, e para secundarizar o papel da AR no seu papel específico de escrutínio político da atividade governativa.

A questão que se coloca é a de saber se o PM e os deputados do Governo e da oposição que são membros do CE devem continuar a ser cúmplices, à sua custa, deste abuso de poder presidencial, à margem da separação constitucional de poderes e de repartição de responsabilidade política.

Adenda
Um leitor pergunta se há fundamento para a noção de "cooperação estratégica" entre o PR e o PM, utilizada pelo primeiro na sua mensagem de Ano Novo (que se pode ler AQUI). A meu ver, tal conceito não tem fundamento nenhum no nosso sistema político-constitucional, sendo obviamente destinado a dar cobertura à errada noção de uma condução política do País partilhada entre Belém e São Bento, como se o PR fosse cotitular do poder governamental, numa espécie de diarquia política, a la française. 

domingo, 15 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (3): As minhas condições de voto

 

1.  Considerando a Constituição da República - que os PR juram respeitar quando tomam posse do cargo - e as várias experiências presidenciais ao longo deste 50 anos, em especial a que está em final de mandato, entendo que nas próximas eleições só devo apoiar um candidato que se comprometa explicitamente a respeitar, cumulativamente, as seguintes condições:

     - suspender, para todos os efeitos, a filiação partidária que eventualmente tenha;
     - assumir-se como Presidente de todos os portugueses, independentemente do seu voto;
     - exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial;
     - respeitar os resultados eleitorais para a AR e a composição desta como única fonte da legitimidade dos governos; 
     - nunca esquecer que não lhe compete a função de governar, desde logo porque é politicamente irresponsável, a qual cabe ao Governo, responsável perante a AR, nem tampouco o papel de contrapoder, que cabe aos partidos de oposição;
     - não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição, não sendo parte no respetivo debate político;
     - não se arrogar o papel de comentador político, muito menos através de pseudoanónimas "fontes de Belém", junto de meios de comunicação seletos;
     - manter uma atitude de leal cooperação institucional com o Governo em funções e respeitar (e fazer respeitar) os direitos da oposição, pois nem um nem outra estão sob sua tutela política;
     - nunca esquecer que não lhe cabe a função legislativa, pelo que deve exercer o seu poder de veto legislativo a título excecional, especialmente quanto às leis da AR, que é o titular supremo do poder legislativo no sistema constitucional de separação de poderes;
     - não comentar publicamente as leis que promulga, como se o PR fosse colegislador, pois a promulgação presidencial é uma obrigação constitucional por omissão (salvo veto), que não precisa de ser justificada;
     - recorrer à dissolução parlamentar e à correspondente antecipação de eleições somente como solução de última instância - por se traduzir na interrupção do mandato conferido pelos eleitores -, e nunca por capricho político ou por desforço antigovernamental;
     - não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência; 
     - respeitar escrupulosamente o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião, não participando, na sua qualidade presidencial, em cerimónias ou eventos religiosos;
     - utilizar um critério exigente em matéria de condecorações oficiais, cuja atribuição deve ser sempre publicamente justificada, de modo a evitar a sua banalização;
     - defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial, da integração europeia, da cooperação lusófona e da paz e da segurança coletiva numa ordem internacional sujeita a regras. 

Num Estado de direito constitucional, não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República.

2. É evidente, para quem acompanha o Causa Nossa, que este desenho da magistratura presidencial está nos antípodas do desempenho do cargo pelo atual PR, Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado frequentemente na minha rubrica "O que o Presidente não deve fazer", que já vai no 50º episódio, onde defendi que ele se «arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial».

Na verdade, creio que as próximas eleições devem proporcionar ao País um PR que cumpra escrupulosamente o perfil constitucional de "poder moderador" e de garante do «regular funcionamento das instituições», que exclui todo e qualquer ativismo político presidencial, em competição com a AR e o Governo. 

Adenda
Um leitor observa que «nenhum dos anteriores Presidentes respeitou todas essas condições». Sim, mas uma coisa é infringir algumas delas ocasionalmente, outra é ignorar todas elas, ou quase todas, sistematicamente.

sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Reforma da Justiça (5): A PGR chamada a capítulo

1. Além de ter colocado decididamente no debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo Ministério Público, o Manifesto pela Reforma da Justiça pesou seguramente na decisão da AR de chamar a PGR a prestar contas da sua ação perante os deputados

Trata-se de um enorme progresso no correto entendimento do lugar institucional do MP no nosso Estado de direito democrático, que não consente poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar. Agora, importa que a AR estabeleça como regra a apresentação regular do/a PGR no parlamento para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas dos deputados, sem prejuízo da sua eventual chamada quando as circunstâncias o exigirem.

Assim termina finalmente uma clara situação de inércia inconstitucional.

2. Conseguido esta importante conquista, a reforma do Ministério Público passa por mais dois pilares: 

   - cumprimento do mandato constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando que tem por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR, e acabando com a pretensa, mas ilegítima, "independência funcional" de cada magistrado; de resto, só assim é que o/a PGR pode responder externamente pela ação do MP;

   - assegurar a autonomia da instituição em relação à manifesta dependência do sindicato do MP, que através do seu domínio do Conselho Superior e da abdicação dos sucessivos titulares da PGR, se erigiu em "eminência parda" e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível com a  autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR; como já escrevi antes, o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão corporativa instalada.

Todavia, como é evidente, ambas esta vertentes da necessária reforma do MP necesitam de uma revisão do seu estatuto legislativo. O Governo e a AR não podem falhar esta oportunidade.


quinta-feira, 9 de maio de 2024

+ União (81): Também uma conquista de Abril

De entre os vários textos publicados hoje para assinalar o dia da UE, merece destaque este, da autoria de Tiago Antunes - que desempenhou muito bem o cargo de secretário de Estado dos Assuntos Europeus no anterior Governo -, intitulado "A Europa que Abril abriu", disponível na página digital do Expresso. 

Para além de defender que as próximas eleições do PE, daqui a um mês, devem ser centradas sobre a visão de cada força política para o projeto europeu, evitando a reedição requentada da recente campanha eleitoral interna para as eleições legislativas, o texto enuncia de forma clara os principais desafios a enfrentar no próximo quinquénio pela UE e, portanto, pelos deputados ao PE que vamos eleger. 

Um exercíco inteligente e convincente, por quem sabe do que fala, com conhecimento de causa.

Adenda
Infelizmente, não compartilho da opinião da comissária europeia Elisa Ferreira, de que António Costa pode vir a ser presidente do Conselho Europeu, apesar do inquérito penal no âmbito do processo Influencer. Não vejo como é que AC pode ser candidato sem arquivamento da investigação; ora, como aqui mostrei, o MP quer mantê-lo indefinidamente como seu refém, apesar do juízo do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a falta de fundamento de todo o processo. E ninguém presta contas pelos abusos de poder do MP...

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Contra a corrente (8): Benesses por atacado

1. Depois de o próprio líder socialista se ter adiantado a propor ao Governo um acordo sobre o aumento imediato das remunerações de várias categorias profissionais do Estado (professores, polícias, militares, etc.), também tenho poucas dúvidas de que o PS vai igualmente aprovar a nova baixa do IRS, embora reduzida, anunciada por Montenegro (poucos meses depois da entrada em vigor da redução do mesmos imposto decidida pelo anterior Governo socialista).

Todavia, duvido que tais medidas de aumento substancial da despesa pública e de redução da receita fiscal fossem tomadas por um Governo PS, por receio de que viessem a exigir a redução da despesa social (saúde, educação, proteção social, habitação, etc.), que sustenta o Estado social, ou a pôr em causa o saldo as contas públicas e a necessária redução do peso da dívida pública.

Também aqui, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.

2. É certo que que, como mostrou há dias o Conselho das Finanças Públicas, confirmando as previsões do anterior Governo, são muito positivas as perspetivas económicas e financeiras herdadas pelo novo Governo - como nenhum outro, há muitos anos -, e o aumento do rendimento disponível que aquelas medidas implicam pode mesmo estimular o crescimento económico previsto, por aumento da procura interna.

Todavia, além de se traduzirem num política pró-cíclica, que pode pressionar a inflação, trata-se de medidas politicamente irreversíveis, com impacto significativo permanente no aumento da despesa e na redução da receita pública, que dificilmente podem considerar-se prudentes num País com o elevado nível de dívida pública (e do seu custo) e de despesa social, como é o caso de Portugal.

Adenda
Um eleitor comenta que «o Governo de António Costa não o faria, mas que um Governo de PNS, sim, pois ele anunciou que seria menos exigente quanto ao excedente orçamental». Admito que sim, mas eu não apoiaria.

Adenda 2
Outro leitor argumenta que «a baixa do IRS anunciada pelo Governo é ridícula, por isso não é por aí que as contas públicas vão ao ar». Sim, eu próprio digo acima que é «reduzida» (ao contrário do que chegou a ser noticiado pelo spin governamental). O desvelo principal do prometido "choque fiscal" vai para a redução da IRC das empresas e outros tributos sobre a atividade económica; a marginal redução do IRS, anunciada à cabeça, é só para o Governo fingir que também alivia fiscalmente as famílias


domingo, 31 de março de 2024

Não concordo (46): Dois erros na formação do Governo

1. Além da problemática nomeação de uma advogada para a pasta da Justiça nas atuais circunstâncias, como referi anteriormente, há mais dois aspetos em que discordo na composição do novo Governo.

O primeiro é a nomeação da Juíza-Conselheira Margarida Blasco para ministra da Administração Interna (ou qualquer outra pasta), porque, desde sempre (por exemplo, AQUI), considero que a nomeação de magistrados judiciais para cargos políticos sem prévio abandono da carreira judicial viola flagrantemente o princípio da separação de poderes e a independência partidária da magistratura (e não estou sozinho neste ponto). Apesar de já jubilada, tal estatuto (a que voltará depois de deixar o Governo) não representa abandono da carreira judicial, mantendo-se vinculada às incompatibilidades próprias da magistratura.

A meu ver, a "porta giratória" entre cargos judiciais e cargos políticos não é compatível com o princípio do Estado de direito.

2. O segundo aspeto negativo é o regresso dos assuntos europeus ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Como defendi anteriormente AQUI, o pelouro dos assuntos europeus - que compreende essencialmente a representação do Governo na formação de "assuntos gerais" do Conselho da União, e a articulação da representação ministerial nacional nas nove restantes formações especializadas do Conselho - tem a ver sobretudo com políticas internas, desde a economia ao ambiente, pelo que deveria continuar sob responsabilidade de um secretário de Estado, na presidência do Conselho de Ministros, ou seja, sob a égide e autoridade superior do Primeiro-Ministro, tal como no Governo cessante.

Além de injustificada, até porque o MNE sempre teria direito a integrar o conselho de ministros da política externa da UE, esta solução constitui, a meu ver, um retrocesso prejudicial à coordenação das políticas da UE com as correspondentes políticas internas, que são competência dos demais ministros sectoriais, e que deveria continuar sob responsabilidade do PM, e não de um ministro sectorial, como o MNE.

Adenda
Um leitor, que sabe do que fala, comenta que se trata de «um claro retrocesso na visão do papel que os Assuntos Europeus têm / devem ter na governação» e que «o relevo dos MNE na política europeia é muito diminuto (salvo a PESC), sendo a política europeia um tema dos chefes do Governo e uma tarefa essencialmente de coordenação ministerial». Inteiramente de acordo.

Adenda 2
Outro leitor objeta que «Montenegro não podia desperdiçar o profundo conhecimento de Paulo Rangel sobre a UE». Eu não contesto obviamente a entrega dos assuntos europeus a Rangel; o que entendo é que, então, devia nomeá-lo Ministros dos Assuntos Europeus adjunto do PM, fazendo um upgrade político desse pelouro governativo essencial e respeitando a sua natureza transversal, em vez de o degradar como secretaria de Estado do MNE, que é um ministério sectorial e que, além disso, tem pouco a ver com a UE. Decididamente, a UE não é uma questão de política externa.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Praça da República (79): Práticas políticas à margem da Constituição

1. Merece leitura e reflexão este artigo de Vitalino Canas no Público de hoje sobre o decreto-lei de simplificação do procedimento de licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, recentemente publicado no DR (que se tornou famoso, por o Ministério Público o ter invocado como prova no caso Influencer) .

Limitando este comentário à questão do procedimento legislativo, sabemos agora que a versão originária do diploma foi vetada pelo Presidente da República, mas não conhecemos essa versão, tal como aprovada em Conselho de Ministros (por tais textos não serem publicados) e também não conhecemos o teor do veto presidencial, nem a sua fundamentação exata (porque os vetos de diplomas governamentais também não são publicados). Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão final, depois de alterada na sequência do veto, não tenha ido a Conselho de Ministros.

Parece óbvio, porém, que, como assinala VC, além da óbvia inconstitucionalidade da aprovação da versão final à margem do Conselho de Ministros, este modelo de aprovação dos diplomas governamentais afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue essencialmente da arcana praxis legislativa governamental própria do "Estado Novo" (e do Antigo Regime pré-constitucional).

2. Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão definitiva tenha sido "negociada" entre a Presidência do CM e Belém, depois das reservas do PR à versão inicial, muitas vezes não expressas através de veto formal.

Também aqui há um manifesto desvio às regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de que o PR não é cotitular, só tendo o poder de veto, de oposição fundamentada, não lhe competindo propor alterações aos diplomas governamentais, tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de poderes constitucional. 

Tal como não o autoriza a intrometer-se no exercício do "poder executivo" do Governo, o "poder moderador" do PR muito menos lhe confere credencial política para interferir no exercício do poder legislativo daquele, salvo através do poder de veto, exercido nos precisos termos da Constituição.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Corporativismo (56): Ordens profissionais mal agradecidas

1. O bastonário da Ordem dos Economistas, que é presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, veio declarar que a recente revisão do regime jurídico das ordens profissionais visou «destruitr o papel que as ordens têm na sociedade portuguesa»

Infelizmente, não tem razão. A revisão teve três propósitos explícitos, relativamente bem conseguidos, a saber: (i) separar organicamente a função de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profisional. Mas não teve desde o início nenhum propósito de eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente, em Portugal, que são justamente a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como "grupos de pressão" oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins.

Com efeito, numa democracia liberal, nenhuma dessas funções deve caber a entidades públicas, como são as ordens profissionais entre nós, mas sim a associações e a grupos de interesse privados, ao abrigo da liberdade de associação e da separação Estado - sociedade civil.

2. A prova de que a revisão do regime jurídico das ordens profissionais foi demasiadamente modesta e complacentee com o statu quo (como mostrei AQUI) está na sobrevivência de algumas ordens que nada justifica, a começar pela própria Ordem dos Economistas.

Como resulta da Constituição e da lei-quadro, a criação de ordens profissinais só se justifica se verificados dois requisitos: (i) quando tal se tornar necessário para regular a entrada numa profissão e disciplinar o seu exercício, a fim de assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços (princípio da necessidade); e (ii) quando tal tarefa não possa ser exercida apropriadamente pelo próprio Estado (princípio da subsidiariedade). Ora, não se vê em que é que a profissão de economista envolva alguma "falha de mercado" relevante que preencha estes dois requisitos.

A prova disso está em que os próprios estatutos legais da Ordem, ao contrário de outras, não exigem a inscrição para o exercício da profissão de economista (que, por isso, pode ser exercida à margem de qualquer supervisão ou disciplina da Ordem), e que os novos estatutos preveem insolitamente a inscrição de estudantes, os quais, por definição, não exercem a profissão. 

Ou seja, em vez de condenar infundadamente a reforma legislativa, o bastonário da Ordem dos Economistas devia agradecer a, aliás indevida, generosidade do legislador, ao prescindir de a extinguir, como devia.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Causa palestina (4): Reconhecimento do Estado da Palestina, já!

1. Com despudorado cinismo, o Presidente dos EUA vem dizer, como se fosse novidade, que Israel não quer solução de dois Estados, ou seja, não quer o Estado da Palestina, e isto pela simples razão de que continua a anexar o resto do seu território e a expulsar os seus habitantes, como vem fazendo há décadas.

O que também é novidade é que, não querendo Israel os dois Estados, os EUA também não querem, porque nesta matéria abdicaram de qualquer autonomia política, dado o peso esmagador do lobby político-financeiro israelita em Washington, como ficou demonstrado no Conselho de Segurança da Onu, com o seu vergonhoso veto à moderada proposta de cessar fogo humanitário em Gaza.

2. Ora, perante o óbvio desafio israelita nos territórios ocupados, anexando-os, e perante a horrenda destruição física e a inominável chacina humana em Gaza - que o SG das Nações Unidas, António Guterres, tem denunciado com coragem -, é altura de a comunidade internacional - a começar pela UE -, perceber que o único modo de fazer valer o direito internacional e o direito dos palestinos à autodeterminação, é o reconhecimento generalizado do Estado palestino, nas suas fronteiras acordadas, isto é, sem aceitação da ilegal anexação territorial israelita em Jerusalém e na Cisjordânia nas últimas décadas.

Basta de hipocrisia: cumpre saber se, tal como os EUA, a UE também aceita não passar de um "fantoche político" de Israel na questão palestina.

Corporativismo (55): A incontinência da Ordem dos Médicos

1. O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, tem toda a razão quando qualifica de «inqualificável intromissão» na esfera governativa o facto de de Ordem dos Médicos ter aberto um inquérito para efeitos disciplinares contra si, por suspeita de conduta indevida no chamado "caso das gémeas luso-brasileiras", alegadamente por ele também ser médico.

Ora, é evidente que a OM só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa qualidade, por atos da profissão médica, o que não é manifestamente o caso dos atos natureza político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde, que, por coincidência, acontece ser médico. Por isso, o referido governante deve, pura e simplesmente, recusar-se a submeter-se a este inaceitável abuso de poder.

2. A ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política, nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM. Trata-se, portanto, de mais um gritante caso de usurpação de funções por parte da Ordem, na sua obsessão geral de se intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e, em especial, de cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à AR e à oposição, o que lhe não cabe nem pode caber.

Não fora o Governo estar demitido, justificava-se de todo em todo desencadear a tutela governamental sobre a OM e ordenar uma inspeção, por reiterada atuação à margem dos seus poderes, que só são os que a lei explicitamente lhe deu. O que é demais é demais!

Adenda
Um leitor sugere que Sales pode continuar inscrito na Ordem e que esta «não sabe distinguir entre os atos profissionais e os outros». Clarificando: (i) o facto de ele estar inscrito na Ordem é irrelevante aqui, pois tal não a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao exercício da profissão (como é o caso); (ii) a distinção entre os atos de um médico nessa qualidade e os atos da mesma pessoa noutra qualidade (político, gestor, dirigente desportivo, etc.) é óbvia e intuitiva, e se a direção da OM não percebe tal diferença, um assessor jurídico ajuda. O problema está em que a Ordem "dispara" antes de pensar...

Adenda 2
Esta notícia de agora, sobre um pedido de indemnização à Ordem, regista outro caso de flagrante abuso de poder da OM, quando, no início da pandemia, mandou abrir um inquérito a uma IPSS - para o que, desde logo, não tinha competência, por não ter base legal - e tirou conclusões altamente lesivas para a instituição, que depois vierem a ser infirmadas pelo Ministério Público. Julgo que a OM deve ser devidamente responsabilizada.

Adenda 3
O bastonário da OM veio agora dizer que não instaurou nem tinha intenção de instaurar «nenhum prodecimento disciplinar» contra o antigo SE da Saúde, António Sales. Mas, esta afirmação é uma pura vigarice, pois, como lembra o Expresso de hoje, no seu pedido ao conselho disciplinar da Ordem, o bastonário mencionava expressamante como pessoas a investigar «tanto o secretário de Estado, enfim, tanto da parte governativa, como da parte da gestão do próprio hospital, a direção clínica, como da parte dos médicos diretamente envolvidos no serviço do hospital ou noutros locais onde possa ter havido aqui intervenção médica». Já não dá para aturar tanto farisaísmo!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O que outros pensam (2): A "cunha" de Belém

Marques Mendes no seu comentário de ontem na SIC, sobre o chamado caso das "gémeas luso-brasileiras":
«O filho do PR teve um comportamento inaceitável. Tentou meter uma cunha ao pai. Sendo filho do PR, devia ter-se abstido de qualquer intervenção. Não podia nem devia comprometer a imagem do PR. (...) Claro que Marcelo podia ter arquivado o caso. (...) Mesmo assim, não arquivando, não meteu qualquer cunha: tratou o filho como qualquer cidadão, enviando a documentação para o PM, como faz em todos os casos. (...) Meter uma cunha é fazer um pedido. Ora, Marcelo não fez qualquer pedido. Nem ao primeiro-ministro. Nem ao Ministério da Saúde. Nem ao Hospital. (...).»
Mas o comentador - que é membro do Conselho de Estado indicado pelo PR - não tem razão, como mostrei aqui. Primeiro, MRS deu seguimento à "cunha" do filho, não podendo ignorar que o nome familiar lhe daria um peso especial; em segundo lugar (ponto omitido por MM), MRS ordenou aos serviços da Presidência para contactarem o Hospital de Santa Maria, o que, além da violação clara da separação de poderes, só podia ser entendido como "apadrinhamento" da "cunha" filial.

Adenda
Um leitor escreve: «Uma coisa é o Presidente endereçar ao Governo uma queixa geral sobre alguma disfunção administrativa ou legal, outra coisa é endereçar uma chamada de atenção para o caso de uma pessoa em particular; a este último procedimento chama-se, precisamente, "meter uma cunha". Ou seja: [neste caso,] o filho meteu uma cunha ao pai; e o pai meteu uma cunha ao Governo. MRS é tão culpado quanto o seu filho. Ele não tem nada que estar a fazer "forward" de cunhas para o Governo, venham elas de quem venham, qualquer que seja o apelido que tragam.» No entanto, mesmo a adotar esta posição de princípio mais geral, continuo a entender que, neste caso, a relação familiar  constitui uma agravante.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?

1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.

Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011). 

Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011)

2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes. 

Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário

3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR poderá invocar o poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.

Não sendo, à partida, constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, a dissolução parlamentar devia sempre ser um recurso excecional, porque se numa derrogação da separação de poderes e numa interrupção forçada do mandato parlamentar quadrienal, pelo que pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.

[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]

Adenda
Comentário de um leitor: "O principal argumento contra a dissolução é que as novas eleições vão de certeza levar à substituição de um governo maioritário, capaz de fazer reformas e de contas certas, por um governo minoritário ou de coligação inconsistente, incapaz de uma coisa e de outra". Subscrevo obviamente este argumento, acrescentando a instabilidade governamental inerente a tais soluções governativas. Abdicar das vantagens de um Governo maioritário, a começar pela estabilidade política, é um luxo que o País não se devia permitir nesta altura.

Adenda 2
O PR nem sequer conseguiu convencer o seu órgão consultivo, o Conselho de Estado, sobre a bondade da dissolução, onde o resultado foi um empate. Como pensa convencer o País, sobretudo depois de ficarem à vista as suas nefastas consequências?

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Ai, Portugal (10): Resgatar António Costa

1. Não bastasse a proverbial fama de António Costa quanto a integridade política e ao combate à corrupção - aliás comprovada por anos e anos de governante local (presidente da CM de Lisboa) e nacional (secretário de Estado, ministro e Primeiro-Ministro) -, para afastar qualquer suspeita de ilicitude pessoal neste caso que atingiu em cheio o seu Governo, a verdade é que, mesmo que não estivesse acima de qualquer suspeita, seria o cúmulo da estupidez deixar-se envolver num processo ilícito, não em proveito próprio, mas sim coonestando a alegada ação ilícita e a correspondente vantagem pessoal de outros. 

O que se tem de esperar agora é que o STJ não acrescente à irresponsabilidade do Ministério Público a procrastinação do inquérito, dando aso à costumeira condenação na praça pública e nas redes sociais, sem julgamento, sem defesa e sem recurso. Até porque continua no exercício de funções até à conclusão da crise política, António Costa tem direito a ver decididamente apurada, tão depressa quanto possível, a inocência que protesta.

2. Se vier a ser ilibado - como é de esperar -, António Costa tem todo o direito a recuperar em pleno os seus direitos de cidadania e a ser resgatado na sua honra e integridade pessoal e política, não só pelo PS, mas também pelo País. 

O primeiro, porque lhe deve oito anos de governo bem-sucedido, uma maioria absoluta, a coesão do partido e o êxito de grande parte da sua agenda progressista; o País, porque, entre muitas coisas, lhe deve a retoma da coesão social depois da amarga experiência da assistência financeira externa, o combate vitorioso contra a epidemia e a recuperação da crise económica e social que ela gerou, o reforço do Estado social, o equilíbrio das finanças públicas e a redução do comprometedor fardo da dívida pública, assim como o prestígio externo, nomeadamente entre os países de língua portuguesa e, em especial, na UE.

A reparação de acusações infundadas e e gratidão não podem ser noções ausentes do léxico e da prática política.

3. Sendo um dos mais eminentes e resolutos políticos nascidos com o regime democrático, penso que nem o PS nem o País podem prescindir do muito que ele ainda tem para dar, se vier a ser ilibado, como se espera. 

Por isso, entendo que, tendo ele próprio afastado liminarmente a hipótese de voltar a ser a chefe do Governo e estando as eleições presidenciais longe, a melhor solução estará em vê-lo a encabeçar a lista do PS nas próximas eleições do Parlamento Europeu, abrindo a porta à possibilidade de vir a ser presidente do PE ou presidente do Conselho Europeu, que muitos lhe haviam destinado. 

Indevidamente "enjeitado" no seu País, um estadista deste gabarito excecional merece um cargo de responsabilidade nos mais altos escalações políticos da UE, por cuja coesão e ambição ele tanto tem labutado.

Adenda
A título de declaração de interesses políticos, devo lembrar que não sou filiado no PS e que, tendo apoiado de fora a candidatura de AC à liderança do PS em 2014, tenho, porém, manifestado publicamente ao longo destes anos numerosas divergências em relação aos seus Governos, como este blogue testemunha.


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

+ União (75): A ficar para trás

1. Tanto ou mais importante do que o enorme desafio institucional que o previsto alargamento da UE a Leste suscita é o preocupante atraso - que esta análise do Financial Times revela - no ritmo do crescimento económico da União, tanto face aos EUA como face a outras economias avançadas, com efeitos negativos, quer sobre o rendimento e o bem-estar dos europeus, quer no peso político da UE na cena externa, que advém sobretudo da dimensão do seu mercado interno e do seu papel no comércio internacional. 

Como mostra o estudo citado - que é de leitura obrigatória -, alarga-se o fosso económico entre Europa e os Estados Unidos, em todas as dimensões: PIB e rendimento per capita, produtividade, peso na revolução tecnológica, etc. Se há dez anos a economia europeia valia 91% da economia norte-americana, hoje vale somente 65%. É uma impressionante degradação em apenas uma década.

2. Entre as causas desse crescente atraso da Europa não se contam somente os "suspeitos do costume", como a elevada despesa social e os direitos laborais, os impostos mais altos, os maiores custos da energia (que a guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia agravaram), mas também a incompletude do mercado interno e as suas distorções (que a dispensa das restrições às ajudas de Estado desde a pandemia multiplicou), o défice de mão-de-obra qualificada, o vezo excessivamente regulatório, a insuficiência de investigação científica e da sua aplicação à economia, os excessos burocráticos ao nível da União e dos Estados-membros, etc.

Como habitualmente nestas situações, a União manda elaborar relatórios a especialistas qualificados, desta vez a Enrico Letta, sobre o mercado interno, e a Mario Draghi, sobre a competitividade. Mas, como assinala a citada reportagem, para além de demorados, não há nenhuma garantia de que as  recomendações destes estudos, por mais convincentes que sejam, venham a ser seguidas. A partilha do poder executivo da União entre o Conselho e a Comissão e a consequente diluição da responsabilidade política (só a Comissão responde politicamente perante o PE), assim como a tradição de decisões consensuais naquele (mesmo quando não há exigência de unanimidade) dificultam as reformas e a sua tomada em tempo.

No entanto, não se vê como é que a gravidade da perda de poder económico relativo da Europa, e a sua rapidez, pode ser enfrentada sem as devidas reformas de fundo no governo económico da União.

[Rubrica modificada]

Adenda 
Um leitor comenta que «mais vale ter um welfare state a sério, como na Europa, do que um grande crescimento económico, como na América». O problema é que sem um robusto crescimento económico não é somente  o nível de vida dos europeus que aumenta menos do que o norte-americano - é própria sustentabilidade financeira do welfare state que fica em causa, dadas os seus crescentes custos orçamentais (pensões, custos do sistema de saúde, etc.). Portanto, a questão não está em optar por um ou outro, mas sim em não poder manter um (o Estado social avançado) sem ter o outro (elevado crescimento económico)

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Assim, não (6): O mal e a caramunha

Dois conselheiros de Estado, ambos de direita, que acumulam com a função de comentadores políticos, vieram criticar o Primeiro-Ministro por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado

Ora, eles sabem bem porque é que ele tomou, e bem, tal decisão, como expliquei AQUI: (i) porque não devia coonestar a "golpada" presidencial (política e constitucional), de tornar abusivamente o Conselho em órgao de julgamento político do PM e do Governo e num órgão de definição da política geral do País; (ii) e porque o PR anunciou antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento (o mesmo é dizer, o seu veredicto), sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada.

Ora, se se pode compreender que os dois conselheiros, ambos designados pelo próprio PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que manifestamente concordam, tendo ambos intervindo no "julgamento", por maioria de razão deveriam poupar-se a condenar publicamente o PM, por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação...

Adenda
Concordando com este post, um leitor sublinha: «Que grande descaramento!».

Adenda 2
Outor leitor observa que, por via de regra, é o PM que precisa de consultar o PR e não o contrário, pois este não goza de poderes executivos, e se precisar de ouvir aquele sobre qualquer assunto, ele não precisa de convocar o Conselho de Estado, tendo os encontros semanais ordinários entre ambos para o fazer. Tem razão.

Adenda 3
O Conselheiro Lobo Xavier escreveu-me a dizer que, contrariamente à minha acusação (baseada numa notícia do Expresso, devidamente invocada no post acima), não se pronunciou sobre o silêncio do PM: «a minha afirmação expressa [foi] a de que não me pronunciaria sobre o que se passou no Conselho de Estado, e muito menos comentaria o alegado silêncio de António Costa». Aqui fica a devida correção, repondo a verdade