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sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Reforma da Justiça (5): A PGR chamada a capítulo

1. Além de ter colocado decididamente no debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo Ministério Público, o Manifesto pela Reforma da Justiça pesou seguramente na decisão da AR de chamar a PGR a prestar contas da sua ação perante os deputados

Trata-se de um enorme progresso no correto entendimento do lugar institucional do MP no nosso Estado de direito democrático, que não consente poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar. Agora, importa que a AR estabeleça como regra a apresentação regular do/a PGR no parlamento para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas dos deputados, sem prejuízo da sua eventual chamada quando as circunstâncias o exigirem.

Assim termina finalmente uma clara situação de inércia inconstitucional.

2. Conseguido esta importante conquista, a reforma do Ministério Público passa por mais dois pilares: 

   - cumprimento do mandato constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando que tem por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR, e acabando com a pretensa, mas ilegítima, "independência funcional" de cada magistrado; de resto, só assim é que o/a PGR pode responder externamente pela ação do MP;

   - assegurar a autonomia da instituição em relação à manifesta dependência do sindicato do MP, que através do seu domínio do Conselho Superior e da abdicação dos sucessivos titulares da PGR, se erigiu em "eminência parda" e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível com a  autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR; como já escrevi antes, o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão corporativa instalada.

Todavia, como é evidente, ambas esta vertentes da necessária reforma do MP necesitam de uma revisão do seu estatuto legislativo. O Governo e a AR não podem falhar esta oportunidade.


quinta-feira, 9 de maio de 2024

+ União (81): Também uma conquista de Abril

De entre os vários textos publicados hoje para assinalar o dia da UE, merece destaque este, da autoria de Tiago Antunes - que desempenhou muito bem o cargo de secretário de Estado dos Assuntos Europeus no anterior Governo -, intitulado "A Europa que Abril abriu", disponível na página digital do Expresso. 

Para além de defender que as próximas eleições do PE, daqui a um mês, devem ser centradas sobre a visão de cada força política para o projeto europeu, evitando a reedição requentada da recente campanha eleitoral interna para as eleições legislativas, o texto enuncia de forma clara os principais desafios a enfrentar no próximo quinquénio pela UE e, portanto, pelos deputados ao PE que vamos eleger. 

Um exercíco inteligente e convincente, por quem sabe do que fala, com conhecimento de causa.

Adenda
Infelizmente, não compartilho da opinião da comissária europeia Elisa Ferreira, de que António Costa pode vir a ser presidente do Conselho Europeu, apesar do inquérito penal no âmbito do processo Influencer. Não vejo como é que AC pode ser candidato sem arquivamento da investigação; ora, como aqui mostrei, o MP quer mantê-lo indefinidamente como seu refém, apesar do juízo do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a falta de fundamento de todo o processo. E ninguém presta contas pelos abusos de poder do MP...

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Contra a corrente (8): Benesses por atacado

1. Depois de o próprio líder socialista se ter adiantado a propor ao Governo um acordo sobre o aumento imediato das remunerações de várias categorias profissionais do Estado (professores, polícias, militares, etc.), também tenho poucas dúvidas de que o PS vai igualmente aprovar a nova baixa do IRS, embora reduzida, anunciada por Montenegro (poucos meses depois da entrada em vigor da redução do mesmos imposto decidida pelo anterior Governo socialista).

Todavia, duvido que tais medidas de aumento substancial da despesa pública e de redução da receita fiscal fossem tomadas por um Governo PS, por receio de que viessem a exigir a redução da despesa social (saúde, educação, proteção social, habitação, etc.), que sustenta o Estado social, ou a pôr em causa o saldo as contas públicas e a necessária redução do peso da dívida pública.

Também aqui, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.

2. É certo que que, como mostrou há dias o Conselho das Finanças Públicas, confirmando as previsões do anterior Governo, são muito positivas as perspetivas económicas e financeiras herdadas pelo novo Governo - como nenhum outro, há muitos anos -, e o aumento do rendimento disponível que aquelas medidas implicam pode mesmo estimular o crescimento económico previsto, por aumento da procura interna.

Todavia, além de se traduzirem num política pró-cíclica, que pode pressionar a inflação, trata-se de medidas politicamente irreversíveis, com impacto significativo permanente no aumento da despesa e na redução da receita pública, que dificilmente podem considerar-se prudentes num País com o elevado nível de dívida pública (e do seu custo) e de despesa social, como é o caso de Portugal.

Adenda
Um eleitor comenta que «o Governo de António Costa não o faria, mas que um Governo de PNS, sim, pois ele anunciou que seria menos exigente quanto ao excedente orçamental». Admito que sim, mas eu não apoiaria.

Adenda 2
Outro leitor argumenta que «a baixa do IRS anunciada pelo Governo é ridícula, por isso não é por aí que as contas públicas vão ao ar». Sim, eu próprio digo acima que é «reduzida» (ao contrário do que chegou a ser noticiado pelo spin governamental). O desvelo principal do prometido "choque fiscal" vai para a redução da IRC das empresas e outros tributos sobre a atividade económica; a marginal redução do IRS, anunciada à cabeça, é só para o Governo fingir que também alivia fiscalmente as famílias


domingo, 31 de março de 2024

Não concordo (46): Dois erros na formação do Governo

1. Além da problemática nomeação de uma advogada para a pasta da Justiça nas atuais circunstâncias, como referi anteriormente, há mais dois aspetos em que discordo na composição do novo Governo.

O primeiro é a nomeação da Juíza-Conselheira Margarida Blasco para ministra da Administração Interna (ou qualquer outra pasta), porque, desde sempre (por exemplo, AQUI), considero que a nomeação de magistrados judiciais para cargos políticos sem prévio abandono da carreira judicial viola flagrantemente o princípio da separação de poderes e a independência partidária da magistratura (e não estou sozinho neste ponto). Apesar de já jubilada, tal estatuto (a que voltará depois de deixar o Governo) não representa abandono da carreira judicial, mantendo-se vinculada às incompatibilidades próprias da magistratura.

A meu ver, a "porta giratória" entre cargos judiciais e cargos políticos não é compatível com o princípio do Estado de direito.

2. O segundo aspeto negativo é o regresso dos assuntos europeus ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Como defendi anteriormente AQUI, o pelouro dos assuntos europeus - que compreende essencialmente a representação do Governo na formação de "assuntos gerais" do Conselho da União, e a articulação da representação ministerial nacional nas nove restantes formações especializadas do Conselho - tem a ver sobretudo com políticas internas, desde a economia ao ambiente, pelo que deveria continuar sob responsabilidade de um secretário de Estado, na presidência do Conselho de Ministros, ou seja, sob a égide e autoridade superior do Primeiro-Ministro, tal como no Governo cessante.

Além de injustificada, até porque o MNE sempre teria direito a integrar o conselho de ministros da política externa da UE, esta solução constitui, a meu ver, um retrocesso prejudicial à coordenação das políticas da UE com as correspondentes políticas internas, que são competência dos demais ministros sectoriais, e que deveria continuar sob responsabilidade do PM, e não de um ministro sectorial, como o MNE.

Adenda
Um leitor, que sabe do que fala, comenta que se trata de «um claro retrocesso na visão do papel que os Assuntos Europeus têm / devem ter na governação» e que «o relevo dos MNE na política europeia é muito diminuto (salvo a PESC), sendo a política europeia um tema dos chefes do Governo e uma tarefa essencialmente de coordenação ministerial». Inteiramente de acordo.

Adenda 2
Outro leitor objeta que «Montenegro não podia desperdiçar o profundo conhecimento de Paulo Rangel sobre a UE». Eu não contesto obviamente a entrega dos assuntos europeus a Rangel; o que entendo é que, então, devia nomeá-lo Ministros dos Assuntos Europeus adjunto do PM, fazendo um upgrade político desse pelouro governativo essencial e respeitando a sua natureza transversal, em vez de o degradar como secretaria de Estado do MNE, que é um ministério sectorial e que, além disso, tem pouco a ver com a UE. Decididamente, a UE não é uma questão de política externa.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Praça da República (79): Práticas políticas à margem da Constituição

1. Merece leitura e reflexão este artigo de Vitalino Canas no Público de hoje sobre o decreto-lei de simplificação do procedimento de licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, recentemente publicado no DR (que se tornou famoso, por o Ministério Público o ter invocado como prova no caso Influencer) .

Limitando este comentário à questão do procedimento legislativo, sabemos agora que a versão originária do diploma foi vetada pelo Presidente da República, mas não conhecemos essa versão, tal como aprovada em Conselho de Ministros (por tais textos não serem publicados) e também não conhecemos o teor do veto presidencial, nem a sua fundamentação exata (porque os vetos de diplomas governamentais também não são publicados). Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão final, depois de alterada na sequência do veto, não tenha ido a Conselho de Ministros.

Parece óbvio, porém, que, como assinala VC, além da óbvia inconstitucionalidade da aprovação da versão final à margem do Conselho de Ministros, este modelo de aprovação dos diplomas governamentais afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue essencialmente da arcana praxis legislativa governamental própria do "Estado Novo" (e do Antigo Regime pré-constitucional).

2. Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão definitiva tenha sido "negociada" entre a Presidência do CM e Belém, depois das reservas do PR à versão inicial, muitas vezes não expressas através de veto formal.

Também aqui há um manifesto desvio às regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de que o PR não é cotitular, só tendo o poder de veto, de oposição fundamentada, não lhe competindo propor alterações aos diplomas governamentais, tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de poderes constitucional. 

Tal como não o autoriza a intrometer-se no exercício do "poder executivo" do Governo, o "poder moderador" do PR muito menos lhe confere credencial política para interferir no exercício do poder legislativo daquele, salvo através do poder de veto, exercido nos precisos termos da Constituição.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Corporativismo (56): Ordens profissionais mal agradecidas

1. O bastonário da Ordem dos Economistas, que é presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, veio declarar que a recente revisão do regime jurídico das ordens profissionais visou «destruitr o papel que as ordens têm na sociedade portuguesa»

Infelizmente, não tem razão. A revisão teve três propósitos explícitos, relativamente bem conseguidos, a saber: (i) separar organicamente a função de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profisional. Mas não teve desde o início nenhum propósito de eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente, em Portugal, que são justamente a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como "grupos de pressão" oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins.

Com efeito, numa democracia liberal, nenhuma dessas funções deve caber a entidades públicas, como são as ordens profissionais entre nós, mas sim a associações e a grupos de interesse privados, ao abrigo da liberdade de associação e da separação Estado - sociedade civil.

2. A prova de que a revisão do regime jurídico das ordens profissionais foi demasiadamente modesta e complacentee com o statu quo (como mostrei AQUI) está na sobrevivência de algumas ordens que nada justifica, a começar pela própria Ordem dos Economistas.

Como resulta da Constituição e da lei-quadro, a criação de ordens profissinais só se justifica se verificados dois requisitos: (i) quando tal se tornar necessário para regular a entrada numa profissão e disciplinar o seu exercício, a fim de assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços (princípio da necessidade); e (ii) quando tal tarefa não possa ser exercida apropriadamente pelo próprio Estado (princípio da subsidiariedade). Ora, não se vê em que é que a profissão de economista envolva alguma "falha de mercado" relevante que preencha estes dois requisitos.

A prova disso está em que os próprios estatutos legais da Ordem, ao contrário de outras, não exigem a inscrição para o exercício da profissão de economista (que, por isso, pode ser exercida à margem de qualquer supervisão ou disciplina da Ordem), e que os novos estatutos preveem insolitamente a inscrição de estudantes, os quais, por definição, não exercem a profissão. 

Ou seja, em vez de condenar infundadamente a reforma legislativa, o bastonário da Ordem dos Economistas devia agradecer a, aliás indevida, generosidade do legislador, ao prescindir de a extinguir, como devia.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Causa palestina (4): Reconhecimento do Estado da Palestina, já!

1. Com despudorado cinismo, o Presidente dos EUA vem dizer, como se fosse novidade, que Israel não quer solução de dois Estados, ou seja, não quer o Estado da Palestina, e isto pela simples razão de que continua a anexar o resto do seu território e a expulsar os seus habitantes, como vem fazendo há décadas.

O que também é novidade é que, não querendo Israel os dois Estados, os EUA também não querem, porque nesta matéria abdicaram de qualquer autonomia política, dado o peso esmagador do lobby político-financeiro israelita em Washington, como ficou demonstrado no Conselho de Segurança da Onu, com o seu vergonhoso veto à moderada proposta de cessar fogo humanitário em Gaza.

2. Ora, perante o óbvio desafio israelita nos territórios ocupados, anexando-os, e perante a horrenda destruição física e a inominável chacina humana em Gaza - que o SG das Nações Unidas, António Guterres, tem denunciado com coragem -, é altura de a comunidade internacional - a começar pela UE -, perceber que o único modo de fazer valer o direito internacional e o direito dos palestinos à autodeterminação, é o reconhecimento generalizado do Estado palestino, nas suas fronteiras acordadas, isto é, sem aceitação da ilegal anexação territorial israelita em Jerusalém e na Cisjordânia nas últimas décadas.

Basta de hipocrisia: cumpre saber se, tal como os EUA, a UE também aceita não passar de um "fantoche político" de Israel na questão palestina.

Corporativismo (55): A incontinência da Ordem dos Médicos

1. O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, tem toda a razão quando qualifica de «inqualificável intromissão» na esfera governativa o facto de de Ordem dos Médicos ter aberto um inquérito para efeitos disciplinares contra si, por suspeita de conduta indevida no chamado "caso das gémeas luso-brasileiras", alegadamente por ele também ser médico.

Ora, é evidente que a OM só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa qualidade, por atos da profissão médica, o que não é manifestamente o caso dos atos natureza político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde, que, por coincidência, acontece ser médico. Por isso, o referido governante deve, pura e simplesmente, recusar-se a submeter-se a este inaceitável abuso de poder.

2. A ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política, nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM. Trata-se, portanto, de mais um gritante caso de usurpação de funções por parte da Ordem, na sua obsessão geral de se intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e, em especial, de cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à AR e à oposição, o que lhe não cabe nem pode caber.

Não fora o Governo estar demitido, justificava-se de todo em todo desencadear a tutela governamental sobre a OM e ordenar uma inspeção, por reiterada atuação à margem dos seus poderes, que só são os que a lei explicitamente lhe deu. O que é demais é demais!

Adenda
Um leitor sugere que Sales pode continuar inscrito na Ordem e que esta «não sabe distinguir entre os atos profissionais e os outros». Clarificando: (i) o facto de ele estar inscrito na Ordem é irrelevante aqui, pois tal não a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao exercício da profissão (como é o caso); (ii) a distinção entre os atos de um médico nessa qualidade e os atos da mesma pessoa noutra qualidade (político, gestor, dirigente desportivo, etc.) é óbvia e intuitiva, e se a direção da OM não percebe tal diferença, um assessor jurídico ajuda. O problema está em que a Ordem "dispara" antes de pensar...

Adenda 2
Esta notícia de agora, sobre um pedido de indemnização à Ordem, regista outro caso de flagrante abuso de poder da OM, quando, no início da pandemia, mandou abrir um inquérito a uma IPSS - para o que, desde logo, não tinha competência, por não ter base legal - e tirou conclusões altamente lesivas para a instituição, que depois vierem a ser infirmadas pelo Ministério Público. Julgo que a OM deve ser devidamente responsabilizada.

Adenda 3
O bastonário da OM veio agora dizer que não instaurou nem tinha intenção de instaurar «nenhum prodecimento disciplinar» contra o antigo SE da Saúde, António Sales. Mas, esta afirmação é uma pura vigarice, pois, como lembra o Expresso de hoje, no seu pedido ao conselho disciplinar da Ordem, o bastonário mencionava expressamante como pessoas a investigar «tanto o secretário de Estado, enfim, tanto da parte governativa, como da parte da gestão do próprio hospital, a direção clínica, como da parte dos médicos diretamente envolvidos no serviço do hospital ou noutros locais onde possa ter havido aqui intervenção médica». Já não dá para aturar tanto farisaísmo!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O que outros pensam (2): A "cunha" de Belém

Marques Mendes no seu comentário de ontem na SIC, sobre o chamado caso das "gémeas luso-brasileiras":
«O filho do PR teve um comportamento inaceitável. Tentou meter uma cunha ao pai. Sendo filho do PR, devia ter-se abstido de qualquer intervenção. Não podia nem devia comprometer a imagem do PR. (...) Claro que Marcelo podia ter arquivado o caso. (...) Mesmo assim, não arquivando, não meteu qualquer cunha: tratou o filho como qualquer cidadão, enviando a documentação para o PM, como faz em todos os casos. (...) Meter uma cunha é fazer um pedido. Ora, Marcelo não fez qualquer pedido. Nem ao primeiro-ministro. Nem ao Ministério da Saúde. Nem ao Hospital. (...).»
Mas o comentador - que é membro do Conselho de Estado indicado pelo PR - não tem razão, como mostrei aqui. Primeiro, MRS deu seguimento à "cunha" do filho, não podendo ignorar que o nome familiar lhe daria um peso especial; em segundo lugar (ponto omitido por MM), MRS ordenou aos serviços da Presidência para contactarem o Hospital de Santa Maria, o que, além da violação clara da separação de poderes, só podia ser entendido como "apadrinhamento" da "cunha" filial.

Adenda
Um leitor escreve: «Uma coisa é o Presidente endereçar ao Governo uma queixa geral sobre alguma disfunção administrativa ou legal, outra coisa é endereçar uma chamada de atenção para o caso de uma pessoa em particular; a este último procedimento chama-se, precisamente, "meter uma cunha". Ou seja: [neste caso,] o filho meteu uma cunha ao pai; e o pai meteu uma cunha ao Governo. MRS é tão culpado quanto o seu filho. Ele não tem nada que estar a fazer "forward" de cunhas para o Governo, venham elas de quem venham, qualquer que seja o apelido que tragam.» No entanto, mesmo a adotar esta posição de princípio mais geral, continuo a entender que, neste caso, a relação familiar  constitui uma agravante.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?

1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.

Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011). 

Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011)

2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes. 

Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário

3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR fá-lo ao abrigo do poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.

Não sendo constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, ela pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.

[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]

Adenda
Comentário de um leitor: "O principal argumento contra a dissolução é que as novas eleições vão de certeza levar à substituição de um governo maioritário, capaz de fazer reformas e de contas certas, por um governo minoritário ou de coligação inconsistente, incapaz de uma coisa e de outra". Subscrevo obviamente este argumento, acrescentando a instabilidade governamental inerente a tais soluções governativas. Abdicar das vantagens de um Governo maioritário, a começar pela estabilidade política, é um luxo que o País não se devia permitir nesta altura.

Adenda 2
O PR nem sequer conseguiu convencer o seu órgão consultivo, o Conselho de Estado, sobre a bondade da dissolução, onde o resultado foi um empate. Como pensa convencer o País, sobretudo depois de ficarem à vista as suas nefastas consequências?

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Ai, Portugal (10): Resgatar António Costa

1. Não bastasse a proverbial fama de António Costa quanto a integridade política e ao combate à corrupção - aliás comprovada por anos e anos de governante local (presidente da CM de Lisboa) e nacional (secretário de Estado, ministro e Primeiro-Ministro) -, para afastar qualquer suspeita de ilicitude pessoal neste caso que atingiu em cheio o seu Governo, a verdade é que, mesmo que não estivesse acima de qualquer suspeita, seria o cúmulo da estupidez deixar-se envolver num processo ilícito, não em proveito próprio, mas sim coonestando a alegada ação ilícita e a correspondente vantagem pessoal de outros. 

O que se tem de esperar agora é que o STJ não acrescente à irresponsabilidade do Ministério Público a procrastinação do inquérito, dando aso à costumeira condenação na praça pública e nas redes sociais, sem julgamento, sem defesa e sem recurso. Até porque continua no exercício de funções até à conclusão da crise política, António Costa tem direito a ver decididamente apurada, tão depressa quanto possível, a inocência que protesta.

2. Se vier a ser ilibado - como é de esperar -, António Costa tem todo o direito a recuperar em pleno os seus direitos de cidadania e a ser resgatado na sua honra e integridade pessoal e política, não só pelo PS, mas também pelo País. 

O primeiro, porque lhe deve oito anos de governo bem-sucedido, uma maioria absoluta, a coesão do partido e o êxito de grande parte da sua agenda progressista; o País, porque, entre muitas coisas, lhe deve a retoma da coesão social depois da amarga experiência da assistência financeira externa, o combate vitorioso contra a epidemia e a recuperação da crise económica e social que ela gerou, o reforço do Estado social, o equilíbrio das finanças públicas e a redução do comprometedor fardo da dívida pública, assim como o prestígio externo, nomeadamente entre os países de língua portuguesa e, em especial, na UE.

A reparação de acusações infundadas e e gratidão não podem ser noções ausentes do léxico e da prática política.

3. Sendo um dos mais eminentes e resolutos políticos nascidos com o regime democrático, penso que nem o PS nem o País podem prescindir do muito que ele ainda tem para dar, se vier a ser ilibado, como se espera. 

Por isso, entendo que, tendo ele próprio afastado liminarmente a hipótese de voltar a ser a chefe do Governo e estando as eleições presidenciais longe, a melhor solução estará em vê-lo a encabeçar a lista do PS nas próximas eleições do Parlamento Europeu, abrindo a porta à possibilidade de vir a ser presidente do PE ou presidente do Conselho Europeu, que muitos lhe haviam destinado. 

Indevidamente "enjeitado" no seu País, um estadista deste gabarito excecional merece um cargo de responsabilidade nos mais altos escalações políticos da UE, por cuja coesão e ambição ele tanto tem labutado.

Adenda
A título de declaração de interesses políticos, devo lembrar que não sou filiado no PS e que, tendo apoiado de fora a candidatura de AC à liderança do PS em 2014, tenho, porém, manifestado publicamente ao longo destes anos numerosas divergências em relação aos seus Governos, como este blogue testemunha.


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

+ União (75): A ficar para trás

1. Tanto ou mais importante do que o enorme desafio institucional que o previsto alargamento da UE a Leste suscita é o preocupante atraso - que esta análise do Financial Times revela - no ritmo do crescimento económico da União, tanto face aos EUA como face a outras economias avançadas, com efeitos negativos, quer sobre o rendimento e o bem-estar dos europeus, quer no peso político da UE na cena externa, que advém sobretudo da dimensão do seu mercado interno e do seu papel no comércio internacional. 

Como mostra o estudo citado - que é de leitura obrigatória -, alarga-se o fosso económico entre Europa e os Estados Unidos, em todas as dimensões: PIB e rendimento per capita, produtividade, peso na revolução tecnológica, etc. Se há dez anos a economia europeia valia 91% da economia norte-americana, hoje vale somente 65%. É uma impressionante degradação em apenas uma década.

2. Entre as causas desse crescente atraso da Europa não se contam somente os "suspeitos do costume", como a elevada despesa social e os direitos laborais, os impostos mais altos, os maiores custos da energia (que a guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia agravaram), mas também a incompletude do mercado interno e as suas distorções (que a dispensa das restrições às ajudas de Estado desde a pandemia multiplicou), o défice de mão-de-obra qualificada, o vezo excessivamente regulatório, a insuficiência de investigação científica e da sua aplicação à economia, os excessos burocráticos ao nível da União e dos Estados-membros, etc.

Como habitualmente nestas situações, a União manda elaborar relatórios a especialistas qualificados, desta vez a Enrico Letta, sobre o mercado interno, e a Mario Draghi, sobre a competitividade. Mas, como assinala a citada reportagem, para além de demorados, não há nenhuma garantia de que as  recomendações destes estudos, por mais convincentes que sejam, venham a ser seguidas. A partilha do poder executivo da União entre o Conselho e a Comissão e a consequente diluição da responsabilidade política (só a Comissão responde politicamente perante o PE), assim como a tradição de decisões consensuais naquele (mesmo quando não há exigência de unanimidade) dificultam as reformas e a sua tomada em tempo.

No entanto, não se vê como é que a gravidade da perda de poder económico relativo da Europa, e a sua rapidez, pode ser enfrentada sem as devidas reformas de fundo no governo económico da União.

[Rubrica modificada]

Adenda 
Um leitor comenta que «mais vale ter um welfare state a sério, como na Europa, do que um grande crescimento económico, como na América». O problema é que sem um robusto crescimento económico não é somente  o nível de vida dos europeus que aumenta menos do que o norte-americano - é própria sustentabilidade financeira do welfare state que fica em causa, dadas os seus crescentes custos orçamentais (pensões, custos do sistema de saúde, etc.). Portanto, a questão não está em optar por um ou outro, mas sim em não poder manter um (o Estado social avançado) sem ter o outro (elevado crescimento económico)

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Assim, não (6): O mal e a caramunha

Dois conselheiros de Estado, ambos de direita, que acumulam com a função de comentadores políticos, vieram criticar o Primeiro-Ministro por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado

Ora, eles sabem bem porque é que ele tomou, e bem, tal decisão, como expliquei AQUI: (i) porque não devia coonestar a "golpada" presidencial (política e constitucional), de tornar abusivamente o Conselho em órgao de julgamento político do PM e do Governo e num órgão de definição da política geral do País; (ii) e porque o PR anunciou antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento (o mesmo é dizer, o seu veredicto), sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada.

Ora, se se pode compreender que os dois conselheiros, ambos designados pelo próprio PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que manifestamente concordam, tendo ambos intervindo no "julgamento", por maioria de razão deveriam poupar-se a condenar publicamente o PM, por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação...

Adenda
Concordando com este post, um leitor sublinha: «Que grande descaramento!».

Adenda 2
Outor leitor observa que, por via de regra, é o PM que precisa de consultar o PR e não o contrário, pois este não goza de poderes executivos, e se precisar de ouvir aquele sobre qualquer assunto, ele não precisa de convocar o Conselho de Estado, tendo os encontros semanais ordinários entre ambos para o fazer. Tem razão.

Adenda 3
O Conselheiro Lobo Xavier escreveu-me a dizer que, contrariamente à minha acusação (baseada numa notícia do Expresso, devidamente invocada no post acima), não se pronunciou sobre o silêncio do PM: «a minha afirmação expressa [foi] a de que não me pronunciaria sobre o que se passou no Conselho de Estado, e muito menos comentaria o alegado silêncio de António Costa». Aqui fica a devida correção, repondo a verdade

terça-feira, 5 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): O "mister"

1. Segundo a Constituição, o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, naturalmente quanto ao exercício dos seus poderes próprios. Por isso, deve ser a instância em que o Presidente ouve os conselheiros sobre os temas que lhe propõe.

Todavia, segundo esta notícia, o Presidente já tem escrito o discurso que vai fazer na reunião de hoje do Conselho, mesmo antes de ouvir os seus membros, incluindo o Primeiro-Ministro, que teve de se ausentar da reunião anterior. Pelos vistos, em vez de discreto local de consulta presidencial, coligindo as opiniões nele expendidas, o Conselho de Estado está a ser transformado numa câmara de eco das opiniões presidenciais, logo depois indevidamente vazadas para os media.

2. O que a ordem de trabalhos definida para a esta reunião do Conselho de Estado revela, em conclusão da anterior, é a compulsivo propósito do PR de assumir como supremo definidor da agenda política interna e externa do País, condicionando a orientação e as políticas do Governo, de acordo com o seu programa, claramente à margem da Constituição, segundo a qual é ao executivo, e só a ele, sob orientação exclusiva do Primeiro-ministro, que compete a condução da política geral (interna e externa) do País, pela qual responde perante o parlamento (e não perante o Conselho de Estado), do qual depende politicamente, apenas com a obrigação de manter o Presidente devidamente informado (a que a doutrina acrescenta um dever de consulta qualificado em matéria de política de defesa e de política externa). Manifestamente, o PR não tem um poder de superintendência política sobre o Governo.

Lamentavelmente, estamos assistir a uma deliberada tentativa presidencial de modificação do sistema de governo e de repartição de responsabilidades políticas constitucionalmente estabelecido. Importa denunciá-lo, para que não passe despercebido.

Adenda

Penso que o PM fez bem em não coonestar o exame político do Governo a que o PR abusivamente pretendeu submetê-lo no Conselho de Estado. Nem o Governo responde politicamente perante o PR (somente perante a AR), nem o Conselho é uma segunda câmara parlamentar com poderes de escrutínio político (como assinalei na altura). Era tempo de fazer prevalecer o quadro constitucional.

Adenda 2
Discordando da minha análise, um leitor argumenta que o PR goza de uma legitimidade eleitoral mais forte do que do Governo, por ser eleito por maioria absoluta dos cidadãos e não poder ser demitido, pelo que se compreende «que lhe caiba definir as orientações políticas do País». Mas não tem nenhuma razão. A principal conquista do constitucionalismo moderno, há dois séculos e meio, foi a substituição da concentração de todo o poder nas mãos do monarca (absolutismo régio) pela sua repartição por vários órgãos de poder (separação de poderes), cada um deles com a sua tarefa própria. Ora, em Portugal, o Presidente não é eleito para governar nem para mandar no Governo: não escolhe o Governo, não governa nem cogoverna, nem tem nenhuma competência para definir as orientações governativas. Consequentemente o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente. Obviamente, o leitor não tem de conhecer este quadro constitucional dos poderes presidenciais, mas o Presidente conhece, e bem!

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Corporativismo (47): Uma reforma assaz modesta...

 1. Há quem me atribua, indevidamente, a autoria intelectual da revisão do regime das ordens profissisonais e das profissões "ordenadas", mas seria hipocrisia negar que a minha luta de muitos anos contra  o "malthusianismo" e o protecionismo profissional protagonizados pelas ordens, restringindo profundamente, em proveito próprio, a entrada nessas profissões e a concorrência na prestação dos respetivos serviços, ajudou a criar condições para esta reforma e para a sua validação pelo Tribunal Constitucional.

Todavia, importa dizer que, a meu ver, e ao contrário da radical crítica das ordens, esta reforma peca por demasido modesta e por não atacar o cerne do problema

2. A "minha" reforma seria bastante mais profunda, e passaria pelos seguintes passos:

    - eliminação de várias da ordens e câmaras profissionais existentes, como as dos economistas, dos arquitetos, dos despachantes oficiais, do serviço social, onde não se verifica nenhuma "falha de mercado" qualificada que justifique a prerrogativa da autorregulação profissional oficial, através de uma associação pública obrigatória, em negação absoluta da liberdade de associação;

   - supressão da função de representação e defesa profissional da ordens, reduzindo-as a conselhos de supervisão e disciplina profisssional, por entender que a mistura das duas funções constitui um casamento contra natura, dado o tendencial conflito entre a defesa do interesse público da disciplina da profisão e a defesa de interesses privativos de grupos profissionais, que numa democracia liberal deve caber a associações privadas;

    - extinção da função de defesa de interesse públicos gerais conferida a certas ordens, como a defesa do Estado de direito (Ordem dos Advogados) ou do SNS (Ordem dos Médicos), atribuições que, além de não terem a ver com a autorregulação profissional, permitem às ordens imiscuírem-se na esfera política, e passarem a atuar como agentes políticos, em violação do princípio fundamental da neutralidade e independência política da função reguladora no "Estado regulador" contemporâneo.

É certo que a reforma em curso corrige os principais abusos das ordens profissionais no que respeita à prestação de serviços profissionais, mas não elimina o privilégio corporativo conferido a certas profissões e o abcesso político em que as ordens se tornaram, tal como se apresentam entre nós. 

3. Acresce que a lei-quadro não foi feliz em algumas das soluções adotadas, designadamente quanto a duas.

A primeira consiste em ter mantido a romântica norma segundo a qual as ordens têm por primeira atribuição a defesa dos interesses dos destinatários dos respetivos serviços, o que, além de ser contraditório com a sua óbvia missão de representação e defesa dos interesses da respetiva profissão, constitui a base da ingerência das ordens na gestão dos serviços públicos, apesar de a lei não lhes dar poderes para tal.

A segunda solução errada da lei-quadro consiste na eleição direta dos membros do conselho de supervisão, incluindo os 40% de membros leigos. Para além de a eleição direta (por maioria ou proporcionalmente?) politizar indevidamente esse órgão com funções parajurisdicionais, não se vê como é que pessoas alheias à profissão, oriundas da academia, podem aceitar de bom grado integrar listas eleitorais concorrentes e submeterem-se a campanhas eleitorais.

Receio bem que esta inadvertida solução venha a criar sérias dificuldades à constituição desse órgão, que desempenha um papel chave na economia da nova lei.

Adenda
Um leitor pergunta se, perante este texto, os Ordens «se devem sentir aliviadas, por a lei não ter ido mais além». Claramente, o legislador preferiu enveredar por uma solução de compromisso, em vez de entrar em choque frontal com elas. Não enjeito o compromisso político alcançado, mas vou continuar a defender as minhas teses, tanto mais que receio que as principais ordens - as "suspeitas do costume" - não vão contribuir de bom grado para a boa execução desta reforma.

Adenda (2)
Como é que o órgao de supervisão deveria ser designado -, pergunta um leitor. A meu ver, deveria ser eleito, por maioria qualificada, pelo conselho representativo geral, o que lhe daria uma legitimidade reforçada, evitando os referidos males da eleição direta. Aliás, também não me parece bem a eleicão direta da direção executiva das ordens, a qual deveria ser eleita igualmente pelo conselho representativo, por maioria simples, e ficando responsável perante ele. A nível do sistema político nacional, também só elegemos diretamente o PR e a AR, não o Governo (muito menos os juízes...).

Adenda (3)
Aproveito para manifestar as minhas maiores reservas sobre o relativamente elevado montante da remuneração dos estágios profissionais proposto pelo Governo. Aprovando sem dúvida o fim dos estágios gratuitos, entendo, porém, que a remuneração monetária deve ter em conta que a melhor e mais valiosa contrapartida recebida pelos estagiários é a aprendizagem da prática da profissão. Receio bem que o montante fixado tenha um forte "efeito colateral" negativo, que é a redução da oferta de estágios, acabando por redundar numa importante barreira no acesso à profissão, contrariando um dos principais objetivos da reforma.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Instrumentalização do Conselho de Estado

1. A expectativa, deliberadamente criada pelo PR, sobre a reunião do Conselho de Estado em julho, para fazer o «ponto de situação (...) sobre a evolução da economia, sobre a situação social e sobre a situação política», é mais do que problemática em termos constitucionais. 

Com efeito, tal como já aqui chamei a atenção há dois anos, o Conselho de Estado, como órgão consultivo do PR, só deve ser chamado a pronunciar-se sobre matérias da competência presidencial, que estão devidamente enunciadas na Constituição, e não sobre a condução da política do País, que constitui competência exclusiva do Governo. 

Por isso, é inteiramente descabido convidar o Conselho de Estado a pronuncuiar-se sobre a orientação geral do Governo, sobre políticas sectoriais, sobre prioridades orçamentais e, muito menos, sobre a composição ou a consistência do Governo. Sucede que o Governo só responde politicamente perante o parlamento, não perante o PR, muito menos perante o seu órgão consultivo

2. O Conselho de Estado não é uma segunda câmara parlamentar (e, de resto, na generalidade das democracias parlamentares com parlamentos bicamarais, a responsabilidade política dos governos é efetuada somente perante a câmara baixa). 

A convocação do Conselho de Estado para "fazer o ponto político" após do debate do Estado da Nação na AR (marcado para 19 de julho), como se fora uma segunda volta desse debate, constitui manifestamente uma tentativa de desconsiderar o escrutínio parlamentar, dando a última palavra aos conselheiros do Presidente - em cuja composição, et pour cause, há um claro desequilíbrio entre a direita e a esquerda, em favor da primeira -, com o óbvio eco na imprensa.

Esta ilegítima instrumentalização do Conselho de Estado e dos seus membros inscreve-se claramente no projeto, que já várias vezes aqui denunciei, de subverter o regime político-constitucional de separação de poderes num sentido presidencialista, dando ao PR um papel de tutela política sobre o Governo, que ele constitucionalmente não pode ter

Adenda
Perguntam-me como apurei a inclinação político-partidária no Conselho. Levei em conta somente os membros com filiação partidária pública (os do PSD e CDS e os do PS), não incluindo, portanto, os membros partidariamente independentes. Em todo o caso, esse ponto é relativamente irrelevante na minha crítica, que tem a ver com a abusiva transformação do Conselho num forum oficial paralelo de escrutínio político, à margem da sede própria - o parlamento.

domingo, 30 de abril de 2023

Novo aeroporto (6): Enviesamento

O jornalista Daniel Deusdado tem razão neste seu artigo, ao apontar a principal falha da lista de critérios anunciados pela Comissão Técnica Independente para a seleção da localização do novo aeroporto a recomendar no final ao Governo - que é a gritante ausência do critério do custo previsível e dos encargos orçamentais do Estado de cada uma delas, incluindo os acessos.

Mas há outros indícios de um enviesamento a favor de uma localização na margem sul do Tejo, nomeadamente o aditamento de várias localizações nessa área, além de Alcochete (na imagem), que não constavam da resolução do Conselho de Ministros, a prioridade dada ao critério da distância a Lisboa (e não o tempo de viagem), o esquecimento do decisivo critério da população e do território servido por cada localização, a degradação do sensível critério ambiental para oitavo lugar, na lista de dez critérios.

A meu ver, ao dar claros indícios de parcialidade à partida, a Comissão compromete a sua credibilidade e a legitimidade da sua decisão.

Adenda
Um leitor considera que era previsível o parti pris da presidente da CTI, pois ela tinha sido assessora no relatório do LNEC que em 2007 se pronunciou a favor de Alcochete, nessa altura contra a Ota, inicialmente escolhida pelo Governo. O erro está em ter como presidente de uma Comissão Técnica Independente alguém há muito comprometida com uma posição sobre a questão a decidir. Uma contradição!

Adenda 2
Outro leitor comenta que, se se vier a confirmar a opção trastagana e o subsequente encerramento da Portela, o sul do País ficará com três aeroportos (Lisboa, Évora e Faro), enquanto o território a norte do Tejo, mais extenso e mais povoado, tem somente um, o do Porto, o que é uma manifesta discriminação territorial. Tem razão!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.