sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (7): Com "amigos" destes...

1. A Ministra da Saúde anunciou o recurso à requisição civil para parar mais uma greve dos enfermeiros às cirurgias no SNS.
A meu ver, a decisão só peca por tardia, tendo em conta o tipo de greve utilizada e os seus efeitos devastadores sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias. Duvido que uma greve reincidente desta natureza fosse tolerada em muitos outros países. A greve, sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto.

2. O SNS é um vítima especial do abuso das greves no setor público, sendo o setor privado muito menos afetado, apesar das vantagens da função pública (menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego, ADSE, etc.).
Há duas razões para isso:
- primeiro, em relação ao Estado, que não vai à falência em caso de prejuízos, nem pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal, os sindicatos não temem o risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado;
- segundo, como as greves nos serviços públicos (como transportes, educação e saúde) afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os Governos veem-se muitas vezes forçados a ceder, mesmo que as reivindicações sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas.
Mas é evidente que cada greve no SNS é uma ajuda ao setor privado.

3. Mesmo descontando as greves, o SNS é também é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior ao setor privado. De facto, são preocupantes os números conhecidos de "baixas por doença" e, mesmo, de faltas injustificadas.
A irresponsabilidade profissional, o laxismo médico nas baixas por doença fictícia e a falta de controlo e de sanção disciplinar do absentismo injustificado explicam esta situação.

4. É evidente que, mesmo que não houvesse outras razões, estes dois handicaps endógenos bastariam para colocar o desempenho do SNS em desvantagem comparativa com o setor privado. As vítimas são obviamente os utentes, que sofrem a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o sobrecusto do SNS.
Não menos importante, são estas disfuncionalidades do SNS que reforçam os argumentos em defesa de um sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado.

Imprevisível Itália (2): O elo fraco

1. Ultrapassando os piores augúrios, a Itália entrou em recessão técnica, após dois trimestres de redução do PIB.
Uma coligação de governo contraditória - entre a extrema-direita da Liga e a esquerda populista do 5 Estrelas - e um orçamento pouco credível, depois do choque com a Comissão Europeia, provocaram uma queda na confiança eonómica e a baixa do investimento.
A "geringonça" governamental que ocupa o Palácio Montecitório, a sua errática política económica e o desafio "soberanista" a Bruxelas sofrem um rude golpe.

2. Ao iniciar o ano com este mau desempenho económico, muito longe das previsões de crescimento oficiais, a Itália não vai poder cumprir as metas orçamentais quanto ao défice, a que se comprometeu com Bruxelas (mesmo se generosas), a enorme dívida pública italiana vai continuar a aumentar e os custos da dívida vão subir. Ou seja, os custos habituais da irresponsabilidade financeira de Roma.
Com estes maus dados, a Itália tornou-se mais uma vez o "elo fraco" da União Económica e Monetária. Estando a União Europeia, ela mesma, em processo de abrandamento económico - cortesia do impacto negativo das guerras comerciais alheias e do Brexit -, a recessão italiana era bem escusada.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Praça da República (8): Descentralização territorial assimétrica

1. Entre os princípios constitucionais que exigem ação do Estado, um dos menos respeitados é princípio da subsidiaridade territorial, desde logo nas relações entre o Estado central e as coletividades locais, nomeadamente os municípios. Por isso, é bem-vindo o processo de descentralização em curso, consubstanciado na respetiva Lei-quadro (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) e nos decretos-leis de concretização sectorial que têm vindo a ser aprovados desde então, como, por exemplo, o que respeita à educação, hoje publicado.
Embora eu defenda há muito uma descentralização mais ambiciosa nesta área - abrangendo a gestão municipal (ou intermunicipal) integrada de todo o ensino básico, incluindo o pessoal docente, bem como a gestão a nìvel regional de todo o ensino secundário (incluindo o pessoal docente) -, é inegável que este diploma dá um importante passo em frente, confiando aos municípios (ou comunidades intermunicipais, corforme os casos) a gestão do parque e do equipamento escolar, dos transportes e da refeições escolares, do pessoal não docente, etc., em relação a todo o ensino pré-escolar, básico e secundário.

2. A minha principal reserva tem a ver com o facto de esta descentralização em prol dos municípios só abranger o território do Continente, excluindo as regiões autónomas, o que estabelece uma assimetria injustificável quanto aos níveis de autonomia municipal, entre os municípios continentais e os insulares. Ora, nos termos da Constituição, a definição das atribuições dos municípios, em todo o país, cabe induvitavelmente ao poder legislativo nacional, não às regiões autónomas, e nem sequer pode haver delegação ao poder legislativo regional.
A Lei-quadro remeteu essa matéria para leis específicas, a aprovar sob iniciativa dos parlamentos regionais respetivos - o que se pode compreender, dado que nos Açoes e da Madeira as atribuições a descentralizar já se encontram, em geral, na esfera regional -, mas não fixa, como devia, um prazo para o efeito e também não prevê a preclusão dessa iniciativa legislativa regional reservada, caso o prazo não seja observado, deixando, portanto, nas mãos das regiões autónomas a concretização da descentralização municipal no seu território. Para além disso, não me parece conforme à Constituição que a AR tenha feito condicionar o exercício do seu poder legislativo, numa matéria reservada, a uma iniciativa legislativa insular.
Autonomia regional dos Açores e da Madeira, sim, mas nem tanto!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Terra brasilis (3): "Reserva da elite" à custa de todos

1. Aplicando a perspectiva elitista tradicional da direita conservadora, o novo ministro do ensino superior do governo Bolsonaro veio declarar que "as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual", assegurando, porém, que continuarão gratuitas, como até aqui. Ou seja, os contribuntes brasileiros em geral, incluindo a maioria que não pertence à tal elite, financiam com os seus impostos o privilégio de acesso às universidades públicas...
Sucede que, como o ensino básico e secundário público deixa muito a desejar no Brasil, as possibilidades de entrar nessa elite são muito reduzidas, pelo que o acesso à universidades públicas favorece quem tem meios para frequentar o ensino pré-universitário privado! Essa enorme discriminação social no acesso à universidade só foi ligeiramente atenuada nos governos do PT, com o estabeleciimento de quotas para estudantes oriundos do ensino secundário público.
Com a nova perspectiva elitista, esta iniquidade social torna-se ainda mais gritante

2. Para agravar o privilégio e a iniquidade, é preciso dizer que no Brasil todos os graus do ensino universitário público são gratuitos, incluindo mestrados e doutoramentos, tudo à custa dos contribuintes, sem nenhuma contribuição específica dos beneficiários da formação universitária, em termos de emprego e de remuneração!
É claro que para estes, a gratuitidade é "um direito", como sempre ocorre nestas situações. Intrigante é pensar que no Brasil a esquerda alinha com este argumento para defender a gratuitidade da universidade pública, sem de dar conta de que, quanto mais gratuita a universidade for para quem a pode e deve pagar, mais onerosa fica em termos orçamentais, correndo o risco de se tornar cada vez menos universal e mais elitista.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O que o Presidente não deve fazer (15): Deus e César

Como crente católico, Marcelo Rebelo de Sousa pode participar a título pessoal em toda e qualquer manifestação religiosa, dentro ou fora do País - como ocorreu agora no Panamá -, não estando sequer limitado por nenhuma obrigação de discrição pelo facto de também ser Presidente.
Mas, sendo Portugal constitucionalmente um Estado laico, com separação entre o Estado e as igrejas, e representando o chefe do Estado, por definição, todos os portugueses - crentes de diferentes religiões ou não crentes -,  o Presidente da República, enquanto tal, não tem religião nem pode participar nessa qualidade em manifestações religiosas, pelo que MRS deveria ser mais escrupuloso na separação das duas condições, a pessoal e a oficial, e deveria abster-se de saudar eventos religiosos em nome do todos os portugueses, por mais louváveis que sejam, como sucedeu agora com o anúncio da realização do próximo "encontro mundial da juventude" em Lisboa.
É uma questão de respeito pela natureza laica do Estado, pela liberdade religiosa de cada um e pelas diferentes opções dos cidadãos em matéria religiosa, incluindo a de não ter religião.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Praça da República (7): Bairro Jamaica

[Fonte: aqui]
1. A violência policial contra protestos sociais, justos ou não, é sempre censurável, quando desnecessária ou desproporcional - por violação dos direitos cívicos e do código de conduta das próprias forças de segurança -, qualquer que seja a etnia dos manifestantes, só podendo qualificar-se de "violência racista" se motivada especificamente pela etnia dos seus alvos.
Nada autoriza a ver "racismo" numa ação policial mais musculada ou mesmo patentemente violenta, se ela teria sido muito provavelmente a mesma se tivesse outros alvos nas mesmas circunstâncias. Os africanos e afrodescentes não gozam de nenhuma imunidade especial contra medidas de polícia, quando justificadas pela necessidade de garantir o direito à segurança (que também é um direito humano). Por isso, salvo evidência incontornável, são precipitadas todas as acusações à polícia antes do apuramento rigoroso dos factos ocorridos no Bairro Jamaica, que obviamente impõem o devido inquérito.

2. O que tem de considerar-se social e politicamente intolerável são as condições de habitação e de vida no Bairro Jamaica, que, essas sim, revelam a profunda iniquidade no tratamento das minorias étnicas em Portugal, especialmente as de origem africana, que têm os mesmo direitos humanos a serem respeitados, sejam ou não cidadãos portugueses.
São condições de vida degradantes como aquelas que nutrem o ressentimento e a revolta etnocêntrica e que são exploradas pelo radicalismo étnico-identitário, retintamente racista (embora de sinal contrário). O racismo não tem só uma cor.

Adenda
A única justificação plausível para a invocação da cor da sua pele pelo Primeiro-Ministro no debate parlamentar sobre o incidente (que muitos consideraram despropositada), em reação à insistência da líder do CDS sobre saber se ele apoiava as forças de segurança, terá consistido em o PM ter visto nessa insistência uma tentativa de contrapor a sua responsabilidade como chefe do Governo a uma insinuada "solidariedade étnica" com os manifestantes. Mas o mais provável é que a líder do CDS quisesse somente explorar mais uma vez as contradições políticas dentro da "Geringonça", entre o Governo responsável pelas forças de segurança e os partidos da extrema-esquerda parlamentar, a protestar contra a "violência policial".

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (6): De universal a subsidiário?

1. Apesar de, na sua génese e configuração constitucional, o SNS ser um serviço universal e geral de provisão pública de cuidados de saúde (Estado financiador e prestador), a verdade é que ao longo destes 40 anos não cessou de minguar a sua quota no mercado de saúde em Portugal, em contrapartida da expansão do setor privado.
Foram duas as vias de desenvolvimento do setor privado:
- o crescimento autónomo de um mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado pelos próprios utentes ou por esquemas de seguros de saúde;
- a crescente subcontratação externa de cuidados de saúde pelo próprio SNS, desde meios auxiliares de diagnóstico a cirurgias, por incapacidade de resposta do serviço público.

2. Entre as medidas que facilitaram a vida e os negócios do setor privado, em prejuízo do SNS, mencionaria os seguintes, que fui apontando ao longo dos anos:
- a manutenção da ADSE, como sistema de saúde privativo dos funcionários públicos, essencialmente assente no financiamento público de cuidados de saúde privados;
- o continuado défice de oferta do SNS em algumas áreas, como a medicina dentária e a oftalmologia, deixando terreno livre à medicina privada;
- as generosas deduções de despesas de saúde no IRS e a subsidiação dos medicamentos prescritos na medicina privada em pé de igualdade com os prescritos no SNS, que equivaleram a uma pingue subvenção do setor privado;
- a complacência com a prática sistemática da contratação externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos recursos e serviços internos do SNS;
- o exclusivo público de formação de médicos e de especialistas, com os enormes custos financeiros envolvidos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários e sem exigência de nenhum período de serviço posterior no SNS, tudo se traduzindo num invetimento público na medicina privada;
- a prática de atribuição de seguros de saúde pelas próprias entidades administrativas e empresariais públicas.

3. Rejeitando teorias simplistas de "parasitização" do SNS pelo setor privado, parece evidente que este foi estimulado deliberadamente pelo Estado, como meio de reduzir a procura e os encargos financeiros do SNS.
Sem surpresa, apesar da cobertura tendencialmente universal do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública em saúde em Portugal (em rácio do PIB) já está abaixo da média da OCDE, enquanto a despesa privada está acima.
A manter-se esta tendência, o SNS corre o risco de tornar-se, a prazo, num subsistema subsidiário de saúde, confinado aos cuidados mais onerosos que o setor privado não cobre (oncologia, doenças vasculares, etc.) e às camadas de utentes sem meios para aceder ao setor privado. Um destino pouco condizente com a sua grandiosa consagração constitucional e com o seu percurso épico na melhoria das condições de saúde em Portugal...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Big Ben (2): O Reino Unido já não é o que era...

[Fonte: aqui]
1. Rejeitado no Parlamento, por larga maioria, o acordo sobre o Brexit acerca dos termos de saída, laboriosamente negociado entre o Governo britânico e a União Europeia, foi vítima de uma coligação negativa, unindo contraditoriamente os "hard-brexiters" (que querem uma saída sem concessões) e os opositores ao Brexit e partidários de um Brexit mais brando.
Não parecendo haver condições para voltar atrás nesta rejeição, até porque do lado da UE não há margem para renegociar os termos do acordo, as soluções em cima da mesa são teoricamente três:
- assumir a impossibilidade de acordo e deixar consumar a saída abrupta do Reino Unido da União, na data prevista, 29 de março;
- adiar a data de saída, com o assentimento da União, e avançar nas negociações sobre a futura relação do Reino Unido com a UE depois da sua saída, tentando encontrar uma solução para a questão da fronteira entre as duas Irlandas, que tem sido o grande pomo da discórdia britânica em relação ao acordo de saída;
- suspender o processo de saída e convocar um novo referendo, seja sobre a própria saída, revogando a decisão popular anterior, seja sobre o contencioso acordo de saída.
Sendo reconhecidamente graves os efeitos de uma saída desordenada - sobretudo para parte britânica e para a relação entre as duas Irlandas -, resta saber se não serão ainda mais deletérios os efeitos económicos e políticos da prolongada incerteza do adiamento ou suspensão da saída, sem nenhuma garantia de êxito quanto ao encontro de uma solução mutuamente aceitável.

2. Parece evidente que Bruxelas pouco pode fazer para ajudar a solucionar o embróglio de Londres, que constitui uma punição autoinfligida pela leviandade e pelas divisões britânicas em todo este processo.
Tendo começado mal, com uma insensata e oportunista convocação de um referendo sobre a saída, o processo do Brexit parece encaminhar-se inexoravelmente para um desastre. Decididamente, sob o ponto de vista dos padrões de "political wisdom" e de "responsible government", que como ninguém ajudou a definir, o Reino Unido já não é que era...

SNS, 40 anos (5): O modo de financiamento do SNS

1. No modelo de SNS vigente entre nós, de tipo britânico, o financiamento público é assegurado por via orçamental, ou seja, com base nos impostos gerais, diferentemente do que sucede, por via de regra, nos sistemas de saúde de tipo bismarckiano, em que o sistema é financiado por contribuições específicas dos beneficiários, dispondo, portanto, de orçamento próprio e gestão financeira separada. É uma espécie de seguro coletivo obrigatório legalmente definido.
É, aliás, o que se passa entre nós com a ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários públicos, embora haja também um copagamento maior ou menor dos cuidados recebidos pelos beneficiários.

2. Ora, nada impede a adoção desse modo de financiamento em relação ao SNS existente, pois a Constituição não determina o tipo de financiamento público (excluindo, porém, as taxas, como fonte de financiamento substancial, por causa da quase gratuitidade dos cuidados prestados).
Ponto é que o montante dessa nova contribuição para o SNS fosse fixado em função dos rendimentos de cada um e que a sua introdução fosse acompanhada de uma redução correspondente da carga fiscal.

3. Essa fórmula alternativa de financiamento, mediante um contribuição específica e um orçamento próprio separado do OGE - à imagem do sistema público de segurança social -, permitiria autonomizar o financiamento do sistema público de saúde em relação à política fiscal e orçamental geral de cada Governo e tornaria mais visível para os cidadãos a sua responsabilidade individual e coletiva no financiamento adequado das despesas de saúde.
Curiosamente, porém, esta hipótese nunca entrou na agenda de reforma do SNS.

SNS 40 anos (4): Um modelo alternativo?


1. Considerando que o SNS já não pode "dar conta do recado" nas atuais condições, o ex-ministro da Saúde, F. Leal da Costa (Governo Passos Coelho), apresenta neste artigo uma alternativa ao atual sistema público de saúde, que consiste no fundamental em universalizar o modelo da ADSE (o subsistema de saúde dos funcionários públicos), baseado nos seguintes traços:
- financiamento através de uma contribuição de saúde dedicada universal, de montante variável, segundo os rendimentos de cada um;
- provisão de cuidados de saúde a cargo de uma pluralidade de prestadores privados convencionados, à escolha dos beneficiários;
- remuneração dos cuidados de saúde de acordo com normas estabelecidas ou acordadas com o financiador.
No entanto, algo incoerentemente, a proposta mantém o atual SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo orçamento, como agora, à margem do novo sistema.

2. Trata-se no fundo de substituir o atual modelo "beveridgiano" (britânico) de SNS por uma variante do sistema de tipo "bismarckiano", que conjuga o financiamento público, por via de uma contribuição dos beneficiários, com a provisão de cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas, aderentes ao sistema.
O autor sustenta que este modelo não careceria de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos constitucionais da universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade (quanto à prestação concreta de cuidados de saúde). Mas é evidente que este modelo alternativo se afasta substantivamente da solução constitucional, que prevê claramente não somente o financiamento público mas também, por princípio, a provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS.

3. Resta saber se os partidos de direita - que nunca coabitaram pacificamente com o atual modelo - vão adotar esta alternativa clara ao SNS, ou se vão continuar a apostar, como tem sucedido até agora, no quadro da Lei de Bases de 1990, na sua asfixia e implosão, quer mediante a crescente privatização, por via de "subcontratação", da função de prestação do sistema público de saúde, quer através do desenvolvimento de um sistema privado de saúde alternativo (seguros de saúde), explorando as crescentes insuficiências e deficências do SNS...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Duopólio territorial

Eis o cabeçalho do meu artigo semanal no Dinheiro Vivo de sábado passado, desta vez dedicado ao Plano Nacional de Investimentos para a próxima década anunciado pelo Governo, o qual, a meu ver, em vez de fomentar, como deveria, a coesão territorial do País, atenuando as enormes assimetrias regionais existentes, corre o risco de reforçar a concentração de população, recursos e rendimentos nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, que já beneficiam do natural "efeito de escala" na atração e drenagem de gente e de empregos do resto do País.

Não dá para entender (9): Conúbio pornográfico


1. Não dá para entender porque é que, na opinião da Ministra da Justiça, a questão do segredo de justiça exige um "acordo de regime", como se não bastassem os instrumentos legislativos disponíveis, nomeadamente a punição penal da violação do segredo de justiça.
Ninguém compreende a escandalosa impunidade das sistemáticas violações do segredo de justiça, em prejuízo da investigação penal e dos direitos dos arguidos, incluindo a transmissão televisiva de vídeos com declarações de arguidos. É incompreensível que acabem em "águas de bacalhau" os inquéritos abertos pelo Ministério Público sobre o assunto. Ora, tanto é responsável o agente que transmite para o exterior material protegido, como os órgaos de comunicação que lhe dão divulgação, sabendo que ele está em segredo de justiça.

2. A liberdade de imprensa não é absoluta, não podendo prevalecer, como regra, sobre o segredo de justiça (ou o segredo de Estado), aliás constitucionalmente protegido. Limite-se o segredo de justiça ao mínimo necessário, mas façam-se cumprir as decisões judiciais que o imponham.
A ilegítima condenação sumária na praça pública, em que a imprensa tablóide serve de acusação e de juiz, não pode substituir a obrigação do Ministério Público de levar ao tribunal acusações convincentes com base em investigação escrupulosa e em provas sólidas. Dá a impressão de que ninguém está interessado em pôr termo ao conúbio pornográfico entre agentes da justiça e os média tablóide que disputam a compra de peças em segredo de justiça.

SNS, 40 anos (3): O erro da ADSE


1. Não podia concordar mais com esta opinião de Daniel Sampaio e Fredrico George sobre o erro de ter mantido a ADSE [o subsistema de saúde dos funcionários públicos proveniente do "Estado Novo"] após a criação do SNS em 1979.
E não apenas pela razão invocada ("desnatação" do SNS), mas sobretudo porque a ADSE (i) mina a universalidade e igualdade do SNS, por ser um privilégio privativo dos funcionários públicos que os afasta do SNS e (ii) obedece a uma filosofia nos antípodas do SNS, na medida em que assenta no financimento público de cuidados de saúde privados e no seu copagamento pelos beneficiários.

2. Foi com base nestes argumentos que já há 15 anos - num artigo com o título provocativo de "sobrevivências corporativas" - propus publicamente a extinção da ADSE ou, em segunda linha, a sua despublicização, terminando o seu financiamento por via orçamental (pois nessa altura os contribuintes em geral ainda financiavam o subsistema dos funcionários públicos!), cessando a inscrição obrigatória e transferindo a sua responsabilidade para os próprios beneficiários.
Não tendo nenhum Governo tido a coragem política de proceder à sua extinção - não somente pelo peso político dos funcionários, mas também pela pressão que ela acrescentaria sobre o SNS -, pelo menos foram extintos o financiamento orçamental e a inscrição obrigatória. E foi pena que, tendo o PS previsto a mutualização do serviço e a sua gestão pelos interessados, tenha depois recuado, limitando-se a criar um instituto público "de gestão participada" para o gerir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Portucaliptal (31): Corrida ao eucalipto


1. Foi finalmente publicado o pacote legislativo sobre a floresta, incluindo a contenção do eucaliptal.
Infelizmente, passaram três anos desta legislatura, permitindo uma "corrida ao eucalipto" antes da entrada em vigor do novo regime. Nunca se plantaram tantos eucaliptos em Portugal. Com este prolongado "banquete", prevalecendo-se da lei de liberalização do eucalito de 2013 (Governo PDS-CDS), a fileira agro-industrial da celulose contornou antecipadamente a anunciada contenção (mas não reversão) legal do eucalipto.
O Governo e a maioria parlamentar da Geringonça não ficam bem nesta história.

2. Mais grave ainda é o facto de o novo regime não ser dotado de instrumentos apropriados para conter efetivamente a continuação da eucaliptização extensiva do País:
-  primeiro, as coimas para a sua violação (cujo montante não foi alterado) não são suficientemente elevadas para serem dissuasórias das grandes plantações, dado o elevado rendimento que proporcionam;
- segundo, as plantações ilegais em execuação ou concluídas não têm de ser obrigatoriamente embargadas ou removidas (como devia ser sempre o caso), sendo essa somente uma possiblidade deixada ao poder discrionário da administração florestal, com todo o risco de decisões de conveniência e de complacência com os factos consumados.
Ora, nesta matéria não deveria haver margem para "o crime compensar".

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (2): Os males do SNS

1. Ao longo deste 40 anos do sistema público de saúde não faltaram medidas legislativas e governativas que, em grande parte, explicam a atual acumulação de dificuldades no SNS e o crescimento do setor privado dos cuidados de saúde. Apesar dos inegáveis ganhos de saúde do país, o SNS está em crescente dificuldades para realizar satisfatoriamente os objetivos que presidiram à sua criação.
Não concordo, porém, em incluir entre essas medidas duas das enunciadas neste artigo de Manuel Alegre, a saber, as taxas moderadoras (de que, aliás, estão isentos metade dos utentes) e a gestão empresarial dos hospitais públicos (que visou aumentar a autonomia, a eficiência e a responsabilidade da gestão hospitalar do SNS, embora sem o conseguir em grande medida). De registar que, ao contrário de outros críticos mais doutrinários, Alegre não menciona as PPPs hospitlares entre essas medidas negativas.

2. Pelo meu lado, entre as medidas que geraram ou reforçaram as dificuldades do SNS, incluo as seguintes, que nunca deixei de criticar publicamente:
- a autorização sem limites da acumulação de funções no SNS e no setor privado, incluindo em situações de óbvio conflito de interesses, como sucede no caso de diretores de serviço;
- o frequente recrutamento político de gestores hospitalares do SNS, em prejuízo do critério de mérito e da competência, e a falta de responsabilização dos gestores pelos resultados da gestão e pelos frustrantes ganhos de eficência;
- a cedência durante muitos anos aos interesses da indústria do medicamento e a falta de protocolos relativos à utilização de medicamentos inovadores, de preços exorbitantes;
- o elevado nível de absentismo e a frequência de greves no SNS, quando comparados com o setor privado, e a atitude corporativista de quase todas as ordens profissionais da saúde;
- a falta de avaliação de desempenho dos profissonais e dos serviços, para efeitos de remuneração e de financiamento de uns e outros, respetivamente;
- a sobrecarga do SNS com pacientes hospitalizados que não têm alta por falta de cobertura da rede de cuidados continuados ou por falta de apoio familar domiciliário;
- o subfinancimento crónico, que causa a degradação dos serviços, fomenta a contratualização externa e aumenta os atrasos nos pagamentos, agravando os preços cobrados.

3. A redução do horário semanal de trabalho nos serviços públicos das 40 para as 35 horas afetou especialmente o SNS, quer em termos de operacionalidade dos serviços, quer em termos de despesa orçamental, dada a necessidade de recrutar mais pessoal. E a complacência oficial perante a recente "greve cirúrgica" dos enfermeiros, que afetou milhares de cirurgias - e que dificilmente seria tolerada noutros países -, mostra que o SNS continua refém de chantagem sindical como nenhum outro serviço público, tanto mais que o setor privado da saúde se vê poupado a semelhantes formas de paralização, o que ajuda à sua procura.
Nada disto ajuda o SNS a cumprir a sua missão constitucional.
[revisto]

domingo, 20 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (1): O público e o privado

1. Quando passam quatro décadas sobre a institucionalização do SNS em 1979, cumprindo a Constituição de 1976, e quando se discute no Parlamento uma nova "lei de bases da Saúde", parece evidente que, se se mantém um amplo consenso social e político sobre a importância essencial do SNS para garantir o direito de todos aos cuidados de saúde, já são assaz diferentes as perspetivas políticas sobre a sua configuração concreta, designadamente sobre o papel do setor privado (e do setor social).
Embora essas divergências entre a esquerda e a direita venham desde o início do próprio SNS - tendo o PSD votado contra a sua criação em 1979 e decretado a sua revogação quatro anos depois -, a verdade é que, após algumas décadas de relativa atenuação, o confronto voltou a acentuar-se nos últimos anos, à medida que o SNS foi perdendo capacidade de resposta e o setor privado foi aumentando a sua oferta e os seus recursos.

2. Por minha parte, não tenho dúvidas em entender que no atual quadro constitucional, sem prejuízo da liberdade individual de recorrer ao setor privado (mediante financiamento próprio ou de seguros de saúde), o SNS é, antes de mais, um serviço universal de prestação pública de cuidados de saúde e que o Estado só deve financiar a sua prestação privada a título subsidiário, ou seja, no caso de défice de capacidade do SNS ou para beneficiar de soluções financeiramente mais vantajosas.
Por isso, não faz sentido - desde logo porque não tem cabimento constitucional - o modelo alternativo, defendido desde há anos pelo PSD e pelo CDS, de tornar o Estado essencialmente um financiador de cuidados de saúde, deixando a cada utente a opção pelos prestadores, públicos ou privados, em concorrência na conquista de utentes.

3. Já não me causa nenhuma objeção de fundo - nem, a meu ver, a Constituição impede - o recurso às PPPs hospitalares, seja para o investimento em novos hospitais do SNS que o Estado não tenha condições orçamentais para financiar, seja para proporcionar um comparador de gestão hospitalar, com vista à redução do conhecido défice de eficiência da gestão pública do SNS.
Ponto é que a equação financeira seja comprovadamente vantajosa para o SNS - envolvendo poupança de gasto público em comparação com a solução pública - e os hospitais PPP sejam sujeitos estritamente às mesmas obrigações que os hospitais de gestão pública, sob escrutínio de uma entidade de supervisão independente, como é o caso desde 2003.
Excluir as PPPs só por razões doutrinárias constitui puro dogmatismo político, que só redunda em prejuízo do SNS e dos contribuintes.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Portucaliptal (30): David contra Golias

Apesar de bem-intencionadas, estas iniciativas locais isoladas contra a eucaliptização selvagem do País dificilmente podem vir a ter algum impacto substancial, sem que o Estado faça impender sobre a fileira agro-industrial da celulose os custos das "externalidades negativas" do eucaliptização extensiva, em termos de depredação dos recursos hídricos, de redução da biodiversidade, de fealdade da paisagem, de potenciação dos incêndios florestais.
Sem reduzir a rentabilidade orçamental do eucalipto, imputando-lhe os seus custos sociais, pouco apelo podem ter as campanhas a favor das espécies autóctones, de muito menor rendimento comercial, se o Estado não financiar as suas "externalidades positivas", como devia (mas não faz...).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"Livres & Iguais: Os Direitos Humanos na Escola"

Já está disponível nas livrarias o livro "Livres e Iguais: os Direitos Humanos na Escola", da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, com ilustrações de Ana Seixas, que tive a honra de prefaciar, publicado pela Imprensa Nacional, no âmbito das Comemorações dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, realizadas no ano passado (de que fui comissário).
Trata-se de uma bela e acessível introdução aos direitos humanos para o público infantil, preeenchendo uma lacuna editorial entre nós.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Big Ben (1): Brexit à deriva


1. Seria difícil, imaginar maior confusão e imprevidência política, num sistema político tradicionalmente tão responsavel e previsível como o britânico, do que o caso do Brexit.
Decidido num referendo levianamente convocado há dois anos, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia foi vítima da irresponsabilidade do seus promotores na previsão dos problemas suscitados pela saída e da falta de consenso entre os seus apoiantes acerca dos objetivos e das modalidades da relação a manter com a União.
O resultado foi a esmagadora rejeição do acordo de saída laboriosamente negociado pelo Governo conservador com Bruxelas, mercê da oposição conjunta não somente dos que desejam a permanência na UE, mas também dos que propugnam a manutenção de uma relação estreita com a União e dos que desejam um Brexit mais radical. Uma perfeita coligação negativa e contraditória.

2. Rejeitado o acordo de forma tão esmagadora, parece dificil imaginar como pode a mesma maioria parlamentar contraditória alcançar um consenso sobre uma alternativa entre as diferentes fações, que, além do mais, respeite as "linhas vermelhas" colocadas pela União, nomeadamente a questão da fronteira entre as duas Irlandas.
A dois meses da data de saída, e a não ser que esta seja adiada, não se vê como evitar um desenlace desordenado, com as consequências devastadoras fáceis de imaginar, sobretudo do lado britânico.
A saída da União é livre, mas implica opções quanto ao que se segue, que Londres não conseguiu definir. Claramente, a elite política britânica não esteve à altura da aventura que desencadeou. Shame on them!

A insensatez da gratuidade do ensino superior

1. Eis o meu artigo de opinião no Dinheiro Vivo de sábado passado, contra a abolição das taxas de frequência ("propinas") no primeiro ciclo do ensino superior público, inopinadamente anunciada pelo Governo neste final da legislatura, manifestamente em vista das eleições no horizonte.

2. Como venho defendendo há décadas, além de ser quase irrelevante em termos de facilitar o acesso ao ensino superior, a abolição das propinas é socialmente iníqua, na medida em que põe a cargo de todos os contribuintes, incluindo os mais pobres, o financiamento do investimento individual na formação académica dos mais abastados. Neste contexto, o que surpreende é que essa medida seja adiantada por um Governo de esquerda, em homenagem acrítica ao velho mito dos serviços públicois gratuitos.

Adenda
No mesmo sentido, com argumentos adicionais, ver o clarividente texto de L. Aguiar-Conraria, "Universidades públicas para ricos", no Público de hoje.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Lisbon first (14): Os aeroportos

E pronto, com a abertura do novo aeroporto do Montijo (adaptando a atual base aérea) e mais uma ampliação da acanhada Portela (a rebentar pelas costuras), Lisboa realiza o seu sonho: ter um aeroporto no quintal e outro do outro lado da rua. Nada como ter um Governo amigo da capital...
Enquanto se gastam milhares de milhões de euros a atamancar soluções aeroportuárias de recurso concentradas em Lisboa, a país continuará sem o há muito planeado aeroporto internacional com a dimensão, os recursos e os acessos que o tráfego intercontinental hoje exigem. Madrid agradece...

Viagem a Cuba


1. Este degradado "Edifício Cuba" na Havana velha serve de metáfora para a má situação do país, 60 anos depois da revolução: depredação do riquíssimo património histórico, infraestruturas em mau estado (estradas, caminhos de ferro, portos), enome atraso tecnológico, economia ineficiente, baixo nível de vida. Uma gande deceção, mesmo para quem não esperava muito.
Aliás, o próprio entusiasmo revolucionário parece ser coisa do passado, a ter em conta as discretas comemorações oficiais dos 60 anos da tomada do poder.

2. A aposta no turismo externo, assente em concessões a cadeias hoteleiras internacionais, e a abertura interna à atividade económica de "trabalhadores autonómos" (profissões liberais, comércio, atividades turísticas, etc.) estão a criar um dualismo monetário, económico e social, cujas contradições são evidentes.
Uma crescente classe profissional independente bem remunerada, claramente destacada da generalidade da população, não vai tardar a exigir o acesso a bens e serviços que a economia cubana e as restrições às importações não proporcionam. Para já, beneficia de uma óbvia economia paralela em moeda forte, o "peso convertível", indexado ao dólar, criada para manter no país as divisas trazidas pelos milhões de turistas.

3. As exigências de maior papel do setor privado como meio de dinamização económica fazem-se sentir mesmo dentro da elite governante, e tiveram algum eco na revisão cosntitucional em curso, apesar da resistência da ortodoxia comunista.
Mas a abertura ao capitalismo pode não se traduzir necessariamente numa transição para a democracia liberal. Como mostraram os exemplos da China e do Vietnam, bem pode suceder que o progressivo abandono do comunismo no campo económico seja acompanhado da sua indefetível persistência no campo político.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Puerta del Sol (2). Na Andaluzia afastar do Governo o partido que ganhou as eleições não é antidemocrático...

1. Em 2015, a direita nacional e os comentadores com ela alinhados passaram semanas a denunciar, urbi et orbi, como "antidemocrática" a solução de governo da "Geringonça" - liderada pelo PS com apoio parlamentar dos demais partidos à sua esquerda -, por ela afastar do Governo a coligação eleitoral que tinha vencido as eleições (PSD+CDS) e o partido com maior representação parlamentar (o PSD). E ainda hoje há quem insista em recordar esse "pecado original" do atual Governo, para o tentar deslegitimar.
Embora sem sufragar politicamente a solução governativa, não me cansei de argumentar que a fórmula governativa em nada bulia com as regras de uma democracia parlamentar como a nossa, quer no plano constitucional, quer no plano democrático. Quem ganha as eleições sem maioria absoluta não goza de nenhum "direito potestativo" a governar.

2. Desde então não faltaram por esse mundo fora situações semelhantes de formação de governos de "coligação dos vencidos" contra o maior partido parlamentar, como, por exemplo, na Nova Zelândia, na Espanha e, possivelmente, na Suécia.
Agora, aqui bem pertinho, também na Andaluzia, o PSOE, vencedor das recentes eleições parlamentares regionais, vê-se afastado do governo regional, que sempre deteve, por uma coligação das direitas, incluindo o apoio do extrema-direita do Vox.
Por concidência, retiro esta noticia do Observador, que em 2015 foi um dos órgãos de comunicação mais agueridos na denúncia do "golpe antidemocrático" perpetrado pelo PS em aliança com a esquerda radical, mas que agora não vê (e bem) nenhum problema democrático na formação de uma "geringonça" andaluza, incluindo a direita radical, contra o PSOE. Mudam-se os protagonistas, muda-se a opinião...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

"Livres & Iguais" (45): Direitos Humanos em Coimbra

Eis o cartaz da 21ª edição da pós-graduação em Direitos Humanos, de que sou codiretor (informações e inscrições AQUI).
Ministrado pelo Ius Gentium Conimbrigae / Centro de Direitos Humanos (IGC / CDH) da FDUC, o curso visa essencialmente oferecer informação e formação sobre a proteção internacional de direitos humanos, quer no plano universal, quer no plano europeu, assim como a sua refração no plano nacional.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Exceção portuguesa

1. Este gráfico, retirado de um estudo da The Economist, mostra o impressionante declínio do tradicional bipartidarismo no sistema representativo de vários países da União Europeia, traduzido numa baixa acentuda da soma da votação dos dois principais partidos, especialmente na França, nos Países Baixos e na Itália.
Esse panorama foi abalado pelo aparecimento de novos partidos e substituído por uma acentuada fragmentação partidária dos parlamentos, levando a novas fórmulas governativas, incluindo "geringonças" politicamente assaz incongruentes, como na Itália. Nada indica que esta tendência fique por aqui, como mostram os indicadores de intenções de voto por exemplo em Espanha.

2. Neste contexto, não deixa de ser surpreendente a exceção portuguesa, onde os dois principais partidos tradícionais (PS e PSD) continuam a somar mais de 60% das intenções de voto, onde o número de partidos com representação parlamentar direta se fica pela meia dúzia e onde várias famílias políticas europeias continuam sem expressão política autónoma entre nós, como os verdes, os liberais e a direita nacionalista.
Para além de não ser fácil a explicação para esta notável estabilidade do sistema partidário, também não se pode antecipar por quanto tempo ela se vai manter. Resta saber se as eleições europeias e parlamentares de 2019 vão trazer alguma novidade nesse aspeto.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Campos Elísios (2): O desastre da esquerda francesa


1. Apesar da redução de apoio político do "macronismo" (La Republique en Marche) no poder em Paris, a esquerda francesa não consegue sair do seu estado fragmentário e sem perspetivas, onde socialistas, dissidentes socialistas, comunistas e verdes se degladiam e onde somente a esquerdista La France Insoumise (de Mélenchon), protecionista, soberanista e antieuropeísta, prospera.
O tradicional panorama partidário e governativo da V República - que este ano completou 60 anos -, caraterizado pela alternância de coligações de direita e de esquerda no poder, parece definitivamente subvertido. Com um partido centrista a governar, a principal vítima foi claramente a esquerda e, em especial, o PS.

2. O declínio do PS parece irrecuperável, depois do terramoto das últimas eleições presidenciais e legislativas. Com apenas cerca de 5% nas sondagens (!), o PS francês corre o risco de não conseguir eleger deputados ao Parlamento Europeu nas eleições europeias de maio do próximo ano, se não conseguir concorrer numa coligação eleitoral, que nenhum outro partido parece disponível para negociar.
Com poucas exceções (Portugal à cabeça!), maus vão os tempos para a esquerda moderada na Europa!

Livres & Iguais (45): O cartaz oficial das Comemorações

1. Eis a versão final do cartaz das Comemorações, o qual, além do lema "livres e iguais" e do logótipo oficial, insere os logótipos do Governo, das empresas patrocinadoras de algumas das ações (a CGD e a Sportzone) e a referência ao alto patrocínio do Presidente da República.
O belo design deve-se ao gabinete da Secretaria-geral do Ministério da Justiça.

2. Como referi várias vezes, esta comemorações beneficiaram da contribuição e do apoio dos quatro poderes da República:
- do Governo, que as organizou e realizou grande parte dos eventos;
- da AR, que acolheu as cerimónias institucionais;
- dos tribunais, que lhe deram uma expressão decisiva;
- e, last but not the least, do PR, que lhe deu o seu alto patrocínio e participou pessoalmente em várias ações.
No final do programa, o meu obrigado a todas as instituições, incluindo o grupo de trabalho interministerial a que presidi.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Não dá para entender (8): Reações corporativas

1. É evidente que, independentemente da sua legitimidade constitucional e da sua eventual justificação política, a desajeitada proposta do PSD de alterar a composição do Conselho Superior do Ministério Público surge a destempo e contra a corrente, só pondendo suscitar a frustrante polémica que provocou.

2. No entanto, sendo óbvia a sua inviabilidade legislativa à partida, por não ter nenhum outro apoio parlamentar, a precipitada ameaça de greve do sindicato do MP é, pelo menos, descabida, como expressão fútil das "dores corporativas" da respetiva magistratura.
Mais despropositada, para não dizer ilegítima, tem de ser considerada a insólita ameaça preventiva de demissão da recém-nomeada Procuradora-Geral da República, que, como titular de uma instituição da República, não pode dedicar-se a exercícios de chantagem virtual sobre o poder legislativo. Um passo em falso, que não credibiliza quem o deu.

Adenda
Quanto à substância da questão, Rui Rio tem razão num ponto decisivo. Se o Conselho Superior da Magistratura - que é o órgão supremo de governo dos juízes, que gozam de independência superlativa -  tem uma maioria de membros designados do exterior, por que razão é que o mesmo não há de suceder no Conselho Superior do Ministério Público, que tem funções parcialmente afins em relação aos respetivos magistrados, quando é certo que a Constituição remeteu a composição daquele para a lei e que o Ministério Público não goza da mesma independência constitucional dos juízes, sendo o/a PGR discricionariamente nomeado/a e exonerado/a por vontade conjunta do PM e do PR? Há alguma razão para que o grau de autogestão do MP ser superior ao dos juízes?

Adenda 2
Mais importante do que a questão da composição do CSMP é que questão do seu poder de gestão dos quadros do MP e do seu poder disciplinar. Ao contrário dos juízes, que são independentes e não têm "chefe", os agentes do MP são funcionários públicos, sujeitos a uma hierarquia encimada pelo/a PGR. Porque é que aqueles poderes hão de ser exercidos em autogestão pelos próprios, em vez de caberem ao/à PGR, que tem a legitimidade democrática que deriva da sua nomeação pelo PR, sob proposta do PM?

Adenda 3
Não deixa de ser curioso ver comentadores liberais, tradicionais inimigos do corporativismo no setor público, a defenderem a autogestão na gestão de quadros e no poder disciplinar do Ministério Público. Contradições que a incoerência doutrinária tece...

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Livres & Iguais (44): "Portugal - Estado de direitos humanos"

1. O último ato público das comemorações dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 anos da Adesão de Portugal à Convenção Europeia de Direitos Humanos é o lançamento, na próxima quinta-feira, dia 20, do livro de Sofia Caseiro, Portugal e a Proteção Internacional de Direitos Humanos.
Com uma apresentação do Ministro Augusto Santos Silva e um prefácio meu, o livro constitui um roteiro da vinculação de Portugal à proteção internacional de direitos humanos ao longo dos anos, sobretudo desde 1978, tanto ao plano do Conselho da Euriopa como no plano da ONU e da OIT.
O lançamento vai ter lugar no Palácio das Necessidades, em Lisboa, pelas 16:00, com a presença da autora e da Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros, Teresa Ribeiro (convite público AQUI).

2. Esta obra é a primeira de uma série de monografias temáticas sobre a proteção internacional de direitos humanos - série intitulada "Portugal - Estado de Direitos Humanos" -, a serem publicadas nos próximos anos. Escritas por especialistas, elas visam o público em geral.
Do meu prefácio a este primeiro volume:
«A obra que agora se publica, da autoria de uma especialista em direitos humanos, constitui um notável trabalho de levantamento e análise de cada uma das convenções internacionais de direitos humanos a que Portugal está vinculado. A “ficha” de cada uma delas descreve sinteticamente o seu objeto, a data de aprovação e entrada em vigor na ordem internacional, as datas de assinatura, aprovação parlamentar e ratificação presidencial, bem como a data da sua entrada bem vigor na ordem interna. São também, mencionadas, sendo caso disso, as eventuais “reservas” que Portugal tenha aposto aquando da ratificação, assim como as eventuais objeções que Portugal tenha levantado a “reservas” de terceiros países, nos termos permitidos pelo direito internacional. Por último, são indicados as instituições e os mecanismos de monitorização de cada convenção, incluindo os procedimentos relativos a Portugal (relatórios e exames periódicos, “comunicações”, recomendações, etc.).»

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Livres & Iguais (43): Migrações e Direitos Humanos

1. Eis uma das últimas iniciativas das Comemorações dos 70 anos da DUDH e dos 40 anos da CEDH, que decorreram nos últimos três meses e abarcaram muitas dezenas de ações, indo além do programa inicial. Simbolicamente, esta sessão, da iniciativa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), tem por tema as migrações.
Como é evidente, nestes tempos atribulados para tanta gente em fuga do seu país (no Mediterrâneo ou na América Central), as migrações não poderiam faltar numa comemoração sobre direitos humanos. Mesmo que não haja um direito à migração como tal, seguramente que os imigrantes são titulares qualificados de direitos, os direitos gerais de todo o ser humano e os direitos especiais de quem procura fugir à fome ou à guerra, à falta de emprego, de educação e de cuidados de saúde, ou simplesmente quem busca melhores condições de vida.
Aliás, os direitos laborais dos migrantes estão especificamente protegidos na Convenção sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e das suas Famílias (texto AQUI), de 1990 (Nações Unidas).

2. Como Comissário das Comemorações, apraz-me registar publicamente o meu especial agradecimento ao Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e à diretora da IGAI, Margarida Blasco, pelo programa de conferências e colóquios destinados às forças e serviços de segurança, tanto mais que aquele não estava representado no grupo de trabalho especialmente constituído para preparar e coordenar a execução do programa das Comemorações.
As iniciativas do MAI permitiram atingir um dos "públicos-alvo" sensíveis de qualquer abordagem dos direitos humanos, ou seja, as forças e serviços de segurança, que - como afirmei numa dessas sessões -, se por um lado realizam o direito à segurança de toda a gente, estão sujeitos à estrita obrigação de, nessa missão, observar so direitos humanos de quem caia sob a alçada das suas operações.