terça-feira, 7 de junho de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (38): Um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo liberal

1. Ontem intervim nesta sessão pública de lançamento do livro de um investigador brasileiro (L. F. Munaro) sobre a imprensa da emigração portuguesa em Londres entre 1808 e 1822, que, através da crítica da monarquia absoluta, ajudou a preparar o terreno para a Revolução Liberal (1820). 

Promovida pela Comissão Liberato - que visa resgatar a obra de José Liberato Freire de Carvalho, o mais proeminente dos jornalistas emigrados, que ficou conhecido simplesmente por José Liberato (aliás, um apelido adotivo) -, a sessão permitiu pôr em relevo justamente o fundador do Campeão Português em Inglaterra (1819-1821), o mais influente dos jonais da emigração, quando passam 250 anos sobre o seu nascimento.

2. Pela minha parte, centrei-me na doutrina político-constitucional de Liberato, tal como exposta nesse jornal, que considero não somente a mais bem informada crítica do absolutismo, mas também a mais completa formulação de um projeto de constitucionalismo liberal, baseado na soberania da nação, num sistema político representativo (por intermédio das Cortes), na separação de poderes e nas liberdade individuais.

Nessa perspetiva, considerei Liberato como um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo moderno em Portugal e o primeiro deputado constituinte avant la lettre.

Em alguns aspetos menos radical do que veio a ser o vintismo constitucional (por exemplo, quanto a um parlamento bicamaral e à atribução ao rei de um "poder moderador" próprio, incluindo um poder de veto legislativo), Liberato antecipou alguns traços do futuro "cartismo" constitucional (Carta Constitucional de 1826), por sinal o mais duradouro período na nossa história constitucional.

domingo, 29 de maio de 2022

Praça da República (68): Uma questão constitucional

1. Aparentemente, uma das razões que levou o Governo a afastar a via de uma revisão ad hoc da Constituição, para resolver o problema suscitado pela declaração de inconstitucionalidade da lei  sobre o registo dos metadados das comunicações pessoais para efeitos de investigação ciminal, foi a ideia de que a abertura do processo de revisão constitucional abriria uma "caixa da Pandora", sem possibilidade de limitar o objeto da reforma constitucional a esse tema

Não tenho por convincente esse argumento. Julgo que, mesmo passados os cinco anos sobre a última revisão constitucional ordinária (que ocorreu em 2004), a AR pode em qualquer momento abrir um processo de revisão extraordinária, com objeto previamente limitado, prescindindo de uma revisão ordinária, sem objeto previamente circunscrito, desde que tal seja decidido por maioria de 4/5 dos deputados. A Constituição diz que a AR pode assumir poderes de revisão extraordinária «em qualquer momento», e não somente para antecipar a revisão, quando ainda não tenham passado cinco anos desde a última revisão ordinária.

2. Resta, obviamente, saber se haveria essa maioria de 4/5 (184 deputados) para desencadear uma revisão extraordinária. 

Bastando o apoio do PS e do PSD, que somam 197 deputados, só por irresponsável caprichismo político é que o PSD poderia opor-se a uma tal revisão limitada da Constituição, tanto mais que as revisões extraordinárias não afetam o calendário da revisão ordinária, que se manteria em aberto.

O único problema é que, a meu ver, existem outras mudanças pontuais da Constituição tão necessárias quanto essa, cuja inclusão poderia complicar a definição da agenda da revisão constitucional.

sábado, 28 de maio de 2022

Ética republicana: Custos públicos, vantagens privadas

A confimar-se, esta notícia de que deputados utilizaram carros e motoristas da AR para deslocação e a um evento partidário é muito grave e não pode ficar impune. Impõe-se um inquérito da AR e a aplicação das devidas sanções financeiras e políticas.

Antes de ser ilegal, esse abuso de funções políticas constitui uma miserável violação de um dos mais elementares princípios da ética republicana, a que todos os titulares de cargos políticos devem sentir-se moralmente vinculados: não utilizar os recursos públicos postos à sua disposição para o exercício do mandato público para fins alheios a esse mandato.

É lamentável que os responsáveis por estas inadmissíveis condutas não se deem conta do prejuízo que causam à dignidade e prestígio da política junto dos cidadãos, alimentando a alienação política e a revolta populista contra a elite política.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Eleições (5): Adicionar a representação do território?

1. Nesta conferência sobre reforma do sistema eleitoral foi apresentado um estudo para a hipótese de, seguindo o exemplo norueguês, repartir o número de deputados pelos círculos eleitorais, tendo em conta não somente o número de eleitores, como hoje sucede, mas também a respetiva dimensão territorial -, o que permitiria beneficiar os círculos de baixa densidade populacional, como, por exemplo, Beja e Bragança, à custa dos de maior densidade, como Lisboa e Porto.

Por mais generosa que a ideia pareça, entendo que ela não tem pés para andar entre nós. 

2. São as seguintes as principais objeções:

   - a teoria do "governo representativo" e do parlamento nasceu para representar os cidadãos e não os territórios, como sucedia nas Cortes do Antigo regime;

   -  a CRP define a AR como "assembleia representativa de todos os cidadãos portgueses», não falando em territórios;

   - um dos princípios essenciais das eleições democráticas é o da igualdade de voto, o que seria contrariado ao dar-se aos cidadãos daqueles círculos o direito de eleger mais deputados do que os que lhes cabem em função do número de eleitores;

   - a CRP é explícita ao determinar que a repartição dos deputados pelos círculos eleitorais é feita exclusivamente em função do número de eleitores;

  - se se quer dar representação política própria aos territórios, a solução clássica é a instituição de uma segunda câmara no parlamento para esse efeito, como sucede nos Estados federais e em vários Estados unitários.

Em conclusão, uma tal solução iria contra os princípios da democracia representativa.

Adenda
A idea de "discriminação positiva" dos círculos eleitorais do interior foi há algum tempo avançada pelo então líder do PSD, Rui Rio, mas não se chegou a conhecer a sua formulação concreta. Todavia, parece que ela assentava em dar à partida dois deputados a cada círculo e repartir os demais proporcionalmente ao número de eleitores, como sucede em Espanha. Mas também esta ideia carece de cabimento constitucional.

Adenda 2
Uma pequena reforma que poderia melhorar a distribuição territorial dos deputados, embora marginalmente, consistiria em abandonar o método de Hondt na repartição dos deputados pelos círculos eleitorais, que a Constituição não impõe e que favorece os grandes círculos, substituindo-o por outro método mais amigo dos pequenos circulos.


terça-feira, 24 de maio de 2022

Amanhã vou estar aqui (9): Reforma do sistema eleitoral?

Eis o programa desta conferência internacional na Universidade Lusíada (Lisboa), sobre as eleições parlamentares deste ano e as perspetivas de reforma do sistema eleitoral, com a participação de alguns dos melhores especialistas nacionais e alguns estrangeiros.

Era o que faltava (2): Uma questão civilizacional

1. Só me faltava mesmo, por conta deste meu post sobre a indigitação de um fundamentalista antidespenalização do aborto para juiz do Tribunal Constitucional, ser acusado cumulativamente de «desonestidade intelectual, fundamentalismo político e insensatez institucional», junto com outros conspiradores numa "operação de manipulação do Tribunal Constitucional"! 

Há quem, nos média, à falta de argumentos contra as opiniões de que discordam, não hesite no recurso à injúria pessoal. Uma aleivosia! Como mostra este blogue, peço meças em matéria de honestidade intelectual, moderação política e respeito institucional no debate público. E faço questão de não insultar, nem chamar nomes feios, nem imputar cavilosas intenções às pessoas de quem discordo

2. J. M. Tavares argumenta que a crítica ao referido candidato se baseia numa passagem de texto académico antigo. Para além de a posição defendida ser inequívoca, aliás em mais de um texto, o que o colunista do Público omite, em manifesta manipulação argumentativa, é que, perguntado por Fernanda Câncio, o visado não só não declarou que deixou de susbcrever aquela tese, como assumiu mantê-la, ao dizer que «a matriz jurídico-cultural é a mesma».
Não está obviamente em causa a liberdade de opinião da pessoa em questão sobre a condenação geral do aborto, como é próprio do fundamentalismo religioso. O que, a meu ver, não faz sentido é facultar o acesso ao Tribunal Constitucional (que tem de velar pelos valores cosntitucionais) a alguém que, em 2022, ponha assim em causa uma questão-chave para a liberdade, a autodeterminação e a dignidade das mulheres. 
Já outros indigitados foram rejeitados em anteriores cooptações por motivo idêntico. Além de uma questão constitucional, é uma questão civilizacional.

Adenda
Como observa um leitor, não está em causa somente a questão da despenalização do aborto, mas sim outras questões de liberdade individual, como a eutanásia, sem esquecer outros valores constitucionais fundamentais, como a laicidade, que o fundamentalismo religioso rejeita.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Praça da República (68): Irracionalidade política

1. O litígio entre a maioria da Câmara Municipal de Lisboa e o presidente da mesma, Carlos Moedas, a propósito da decisão de reduzir a velocidade automóvel em Lisboa em 10km e proibir o trânsito automóvel na Avª da Liberdade aos domingos e feriados, que o segundo se recusa a implementar (!), mostra a irracionalidade do sistema de governo autárquico em vigor entre nós.

Não faz sentido um sistema de governo em que um órgão colegial executivo é diretamente eleito segundo uma regra de proporcionalidade, sendo presidente automaticamente o primeiro candidato da lista mais votada, o que permite que, como sucede em Lisboa e noutros municípios, o presidente seja confrontado com uma maioria das oposições, com a possibilidade de choques como o que agora se regista em Lisboa, vendo-se o presidente obrigado a executar decisões a que se opõe.

Sucede que este sistema de governo municipal - que diverge do sistema de governo das freguesias -deixou de ser obrigatório desde a revisão constitucional de 1997, mas o PS e o PS não cuidaram de o substituir por outro politicamente mais coerente e sensato.

2. A alternativa mais evidente seria o atual sistema de governo das freguesias: a câmara municipal deixaria de ser diretamente eleita, o presidente seria o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia municipal e os vereadores seriam eleitos pela assembleia, sob proposta do presidente.

No caso de o partido vencedor não ter maioria absoluta na assembleia municipal, o presidente teria de buscar uma coligação de governo capaz de lhe garantir a constituição da CM. Não sendo capaz disso dentro de certo prazo, haveria novas eleições.

Em qualquer caso, deixaria de se verificar a possibilidade de o presidente semidiretamente eleito ser vencido na própria CM por uma coligação das oposições, como se verifica agora em Lisboa.

3. Esta solução permitiria recuperar a responsabilidade política da câmara municipal perante a assembleia municipal, como se impõe, que hoje não existe, apesar de estatuída pela Constituição, dada a legitimidade eleitoral direta da CM. Assim, em caso de moção de censura, a CM cairia e o presidente seria obrigado a apresentar uma nova equipa à aprovação da AM, sob pena de novas eleições, caso o não consiga.

Por conseguinte, este novo sistema, embora mantendo a ideia da "personalização" da eleição do presidente da CM, pois os eleitores, ao votarem para a AM, votariam também para a presidência da CM - o que excluiria governos contra o partido vencedor -, adotaria, porém, a lógica parlamentar do sistema de governo a nível nacional e das regiões autónomas, em que o poder executivo é responsável perante a assembleia representativa, assim terminando o exótico e irracional sistema de governo municipal que perdura desde 1976.

Guerra da Ucrânia (39): Porque falham as sanções?

1. Ao contrário do pretendido, as sanções comerciais à Rússia não conseguiram arruinar as suas exportações nem muito menos afundar o rublo, levando a economia russa "à falência", como uma vez anunciou a presidente da Comissão Europeia. Pelo contrário, como mostra o recorte de imprensa de ontem (no Jornal de Negócios), o excedente comercial aumentou e a cotação do rublo recuperou.

A razão está, por um lado, em que, tirando a UE e os Estados Unidos e seus aliados mais chegados, os demais países não decretaram sanções comerciais, incluindo grandes economias como a Índia, a África do Sul e o Brasil; e, por outro lado, a própria UE não tem sido capaz de implementar o boicote à importação de crude e, muito menos, de gás natural, que importa pesadamente da Rússia. Ora, como a insegurança dos mercados tem levado a um aumento das cotações, Moscovo acaba por cobrar mais caro e receber mais dinheiro -, daí o aumento do excedente comercial.

Até agora, um verdadeiro tiro pela culatra, o das sanções...

2.  Compreensivelmente, a economia que se está a efetivamente a afundar, em consequência da guerra, é a da Ucrânia, não somente pela redução da atividade económica nos territórios onde decorrem os combates, mas sobretudo pela impossibilidade de utilizar a tradicional via marítima para as principais exportações ucranianas - que são as da fileira agrícola -, dada a ocupação russa de alguns portos e a ameaça sobre outros, incluindo Odessa, e dadas as limitações da via terrestre. 

Por isso, é de recear, como analisa o The Economist, que o prolongamento indefinido da guerra, mesmo que sem uma clara vitória militar russa, imponha incomportáveis custos económicos, em termos de recessão, défice comercial, inflação, etc. 

A ajuda financeira ocidental, sobretudo dos EUA, pode atenuar esses custos, mas não constitui uma solução duradoura nem infinita.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Concordo (22): O FMI tem razão

Ao criticar a redução da tributação dos combustíveis, o FMI vem agora dar-me razão, quando há algumas semanas me manifestei contra a redução da tributação dos combustíveis, defendendo que a majoração da receita fiscal resultante da subida do preço do crude deveria servir sobretudo para subsidiar as famílias de menores rendimentos, mais atingidas pela inflação do preço do "cabaz de compras".

A contenção dos preços dos combustíveis por via de redução tributária apresenta-se como triplamente nociva: (i) é socialmente regressiva, beneficiando quem tem automóvel e as viaturas que mais gastam; (ii) é manifestamente contrária à descarbonização da economia, por via da redução do consumo e da substituição do automóvel particular pelo transporte coletivo; (iii) sendo os combustíveis importados, subsidiar o seu consumo apenas agrava o défice da balança comercial nacional e o endividamento externo do País. Nada disto me parece propriamente conforme a um programa de governo socialista...

A meu ver, nas atuais circunstâncias, os impostos sobre os combustíveis nunca são excessivos

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Social-democracia (9): Cogestão empresarial?

1. Em França, onde a social-democracia representada pelo Partido Socialista está pelas ruas da amargura e se viu forçada a uma humilhante aliança política sob a égide do líder da esquerda radical, Mélenchon, para as próximas eleições parlamentares, um grupo de socialistas acaba de lançar um manifesto pelo "renascimento da social-democracia" francesa.

Entre as principais ideias desse manifesto consta a da cogestão empresarial, envolvendo a representação dos trabalhadores no "conselho representativo" das empresas de maior dimensão, junto com os acionistas, um modelo que tem tradição na Alemanha e noutros países nórdicos, permitindo superar a lógica confrontacional típica do velho sindicalismo nas "relações industriais", e sendo um elemento essencial da noção de "economia social de mercado"

2. Tenho pessoalmente defendido esse modelo entre nós desde há anos (por exemplo, AQUI), junto com a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas resultantes de aumentos da produtividade, não deixando de estranhar porque é que o PS continua a descartá-lo, sem o fazer aplicar mesmo nas empresas públicas, onde é constitucionalmente obrigatório. 

Claramente, apesar do seu empenho (a meu ver, excessivo) na "concertação social" ao nível macro das políticas sociais, o PS mantém-se fiel ao modelo tradicional das relações entre o capital e o trabalho ao nível das empresas, que continuam a ser coutadas dos seus acionistas de referência, longe das modernas preocupações sobre o "stakeholder capitalism" (que não envolve somente os trabalhadores).

domingo, 15 de maio de 2022

Praça da República (67): Reacionarismo constitucional

Como mostra a terrível hipótese de o Supremo Tribunal dos EUA, na peugada da direita evangélica  "trumpiana", vir a revogar a decisão Roe v Wade, que desde há décadas reconhece às mulheres norte-americanas o direito à interrupção da gravidez, tornando inconstitucional a sua penalização, a força das Constituições depende essencialmente do entendimento do respetivo juiz constitucional sobre elas. 

Por isso, é inquietante a hipótese de ver cooptado para o nosso TC um jurista que deixa entender que não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa, de condenação geral do aborto e da sua despenalização. Não vejo como é que uma nomeação tão radical pode ser coonestada, não somente pela esquerda constitucional, mas também pela direita constitucional que defende posições de humanismo penal, nomeadamente contra o excesso da repressão penal, sobretudo quando estão em causa questões de dignidade humana, como a autodeterminação da mulher. 

Reabrir entre nós, tal como nos Estados Unidos, uma questão constitucional sobre a despenalização geral do aborto seria um retrocesso civilizacional.

Adenda
Um leitor objeta que «o aborto em Portugal não é um assunto constitucional, mas sim legal, pelo que, as posições que em 1984 alguém exprimiu sobre o aborto não têm qualquer relevância atual». Discordo, em absoluto. A despenalização legal do aborto sempre teve opositores, em nome da Constituição, tendo sido submetida ao TC várias vezes, e nada impede que a questão seja recolocada, se houver a ideia de que a oposição à legalização do aborto pode ter mais apoio agora, como sucedeu nos Estados Unidos. Por isso, as antigas declarações de Almeida Costa têm toda a relevância, se ele as mantém, como parece.
 
Adenda 2
Outro leitor questiona a minha legitimidade para discutir o assunto, por entender que «a escolha dos juízes cooptados é uma questão interna do TC, que não deveria vir para a praça pública». Mais uma vez, discordo de todo em todo. Primeiro, num Estado constitucional, entendo que a nomeação dos juízes do TC, que têm o poder de "dizer a Constituição", interessa a qualquer cidadão, e que os nomes propostos deveriam ser objeto do mesmo escrutínio curricular dos juízes eleitos pela AR. Não é por acaso que, tanto quanto me é dado saber, já mais do que uma vez nomes sugeridos vieram a ser rejeitados. Em segundo lugar, a questão da despenalização do aborto não é uma questão de lana caprina, tendo sido objeto de várias decisões do TC, tendo eu próprio sido relator numa delas, pelo que sou especialmente sensível a este tema e ao risco da reversão da jurisprudência do TC.

sábado, 14 de maio de 2022

Barbárie tauromáquica (12): Lamentável declaração ministerial

Não fica bem a um ministro socialista justificar as touradas com o respeito pelas "práticas culturais"

É de todo despropositado, em pleno século XXI, qualificar como cultura a tortura sangrenta dos bichos na arena para gáudio público. Citando António Vitorino de Almeida, "se a tourada é cultura, a antropofagia é gastronomia". Se a tourada não pode ser condenada, por ser uma "prática cultural", então como se pode condenar a mutilação genital feminina na Guiné ou a lapidação pública das mulheres adúlteras em sociedades muçulmanas mais tradicionais, fenómenos que também pertencem à "cultura" desses países?

É tempo de afastar as touradas da noção de cultura, que elas conspurcam. Nenhuma conceção humanista da cultura pode ser complacente com o sacrifício de seres sensíveis para satisfazer o atávico sadismo da populaça

Adenda
Aplaudindo este post, um leitor sublinha que a declaração do novo Ministro se afasta substancialmente da posição da anterior Ministra, Graça Fonseca, a qual, quando acusada de "censurar os gostos" dos portugueses, ao recusar-se a descer o IVA sobre as touradas, ripostou secamente, que não era «uma questão de gosto, mas de civilização» - posição que aplaudi AQUI. O que mudou - acrescenta - foi que, com a maioria absoluta, o PS deixou de precisar do PAN e o poderoso lobby taurino recuperou toda sua influência. Não vejo como contestar esta análise...

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Assim vai a política (11): O Bloco da direita

1. É evidente que, se o PSD fosse Governo, NUNCA se proporia atualizar as remunerações da função pública em função da inflação prevista, por ser uma medida supinamente irresponsável, quer pelo seu enorme custo orçamental, quer sobretudo porque o pior que se pode fazer numa situação inflacionista é fomentar a procura, gerando mais pressão inflacionista. 

Não ter proposto igual aumento para as pensões, também elas vítimas da inflação, deve ter sido esquecimento. Mas a incoerência e a discriminação são óbvias. De resto, para não privilegiar a função publica (mais do que já é...), o PSD deveria propor também uma atualização automática equivalente dos salários do setor privado...

2. Sempre defendi que os partidos de vocação governamental, como o PS e o PSD, devem defender na oposição as posições que adotariam se estivessem no Governo, sob pena de perderem credibilidade e ajudarem à desconfiança dos cidadãos na política. 

Pelos vistos, porém, em vez de trabalhar para vir a regressar ao Governo a seu tempo, o PSD decidiu comportar-se como partido de protesto, uma espécie de Bloco da direita. Deve ser por isso que as sondagens lhe dão o humilhante resultado que dão. 

Os genuínos partidos de protesto, como o Bloco e o PCP, são mais credíveis nesse papel. Na competição com eles, o PSD perde.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Ai o défice: Contas da saúde

Um especialista que sabe do que fala afirma que o SNS não precisa de mais milhões de euros, mas sim de melhor gestão do muito dinheiro que já recebe do orçamento. Mas quando o Governo decide acabar quase integralmente com as taxas moderadoras - de que estavam isentas todas as pessoas de menores rendimentos -, que valem mais de 30 milhões de euros, então é evidente que o orçamento tem de continuar a abrir os cordões à bolsa...

Quando os ricos deixam de pagar taxas (no SNS, nas autoestradas, no ensino superior...), são os contribuintes, incluindo os de menores rendimentos, que têm de pagar a diferença.

Adenda
Embora favorável às taxas moderadoras, um leitor observa que, contabilizando os atuais custos de sua cobrança (pagamento em dinheiro, falta de trocos nos serviços, etc.), elas causam provavelmente prejuízo. Observo que não há nenhuma razão para toda essa ineficiência no processo de cobrança, salvo o atavismo burocrático dos serviços, e que, independentemente da receita financeira, as taxas moderadoras se justificam por duas razões não financeiras: (i) pelo efeito dissuasor que possam ter contra o abuso no recurso aos cuidados de saúde e (ii) pelo efeito simbólico de significar aos utentes que o SNS custa dinheiro. O que é grátis tende a ser banalizado. Por isso, defendo há muito que o SNS deveria informar os utentes sobre o custo efetivo de cada serviço recebido.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Amanhã vou estar aqui (8): Novos desafios da regulação dos média

Amanhã, na Faculdade de Direito da UC, Colégio da Trindade, mesa redonda com os jornalistas Jorge Castilho, Carlos Magno e Henrique Monteiro.

Adenda
Pode ver-se AQUI o registo em vídeo da conferência, por sinal bem animada.

O que o Presidente não deve fazer (30): Tagarelices presidenciais

Mesmo que haja algum exagero jornalístico neste relato da audiência do PR com os partidos da oposição, MRS não fica bem na fotografia.

Em primeiro lugar, esta informal e especulativa "conversa de café" no relacionamento oficial com os partidos da oposição não condiz com a natureza do cargo. É surpreendente como MRS pode alternar o mais exigente e bem construído discurso de Estado - como normalmente sucede - com esta maledicente tagarelice política. Em segundo lugar, não fica bem ao PR fazer queixas do Governo em audiências privadas com partidos da oposição, como se fosse o seu coach. O Presidente recebe os partidos para os ouvir e não para se fazer ouvir. Tendo queixas contra o Governo, deve transmiti-las ao próprio Primeiro-Ministro ou expô-las publicamente. E uma questão de "lealdade institucional", que Presidente e Governo devem observar nas suas relações.

Não era de esperar que MRS, atenta sua conhecida idiossincrasia pessoal, mantivesse o estilo de distanciamento e reserva, e mesmo de "majestade" institucional, dos seus antecessores. Mas era bom que observasse a contenção e a discrição institucional que a magistratura presidencial requer.

terça-feira, 10 de maio de 2022

Guerra na Ucrânia (38): Muito longo, o caminho de Kiev para Bruxelas

1. Quando António Costa afirma, sem poupar nas palavras, que a adesão da Ucrânia à UE será um «processo "longo, difícil e exigente"», é evidente que ele vem opor-se frontalmente à precipitada proposta dos países do Leste europeu - interessados em puxar a União geograficamente mais para Leste e politicamente mais para direita, como AQUI assinalei - de instituir um fast track para Kiev, proposta a que a Presidente da Comissão levianamente emprestou credibilidade.

Aliás, o chefe do Governo português não está só nessa posição, como revela o discurso do Presidente francês no dia 9 em Estrasburgo, onde Macron chegou a falar em "décadas", antes de a Ucrânia poder entrar na União. 

Não é crível que os dois líderes políticos não tenham concertado posições.

2. Felizmente, não foram precisas muitas semanas para que alguém responsável viesse denunciar a irresponsabilidade política de prometer à Ucrânia uma entrada expedita na União, quando esse país está longe de cumprir os critérios mínimos de adesão, nem está em condições de os vir a cumprir a curto prazo, e não pode esquecer-se a má experiência de deixar entrar prematuramente as países do Leste europeu em 2004, entre os quais a Polónia e a Hungria, com os graves problemas que tais países hoje colocam.

A verdade é que a entrada na União não pode ser um lenitivo pelos custos da invasão e que, uma vez obtida a entrada, não há meio de fazer sair um país, por mais impreparado que ele se revele depois.

Adenda
Também o Governo alemão fez saber que não há "atalhos" para a adesão da Ucrânia à União.

Adenda 2
Sobre este tema vale a pena ler este bem informado texto.

Guerra na Ucrânia (37): Há vozes sensatas

«Presidente francês diz que a paz terá de ser construída sem "humilhar" a Rússia».
O problema é que desde o colapso da União Soviética, há três décadas, o desporto preferido de alguns líderes ocidentais, designadamente do lado dos Estados Unidos, tem sido a humilhação política da Rússia, com a complacência da Europa, transformada, neste dossier, em "apêndice" da política externa norte-americana (exceção feita à Alemanha e à França), apesar de principal interessada em integrar Moscovo num quadro de cooperação política pacífica pan-europeia.
Eis o que, com a invasão da Ucrânia, transformada numa guerra entre a Rússia e a Nato por interposta Ucrânia, parece afastado por longos anos. A Rússia parece definitivamente perdida para a Europa - e não é pequena perda...

segunda-feira, 9 de maio de 2022

+ Europa (62): Uma iniciativa para repetir


1. "Parlamento Europeu à sua porta" - eis uma maneira original de celebrar o dia da União (9 de maio), por iniciativa da delegação nacional do Parlamento Europeu, a instituição mais expressiva da democracia europeia. 

O bem-conseguido evento em Coimbra - que foi precedido de iniciativas semelhantes noutras cidades - incluiu um debate entre três eurodeputadas, todas conimbricenses, em representação de três diferentes grupos políticos no Parlamento Europeu (PPE, S&D e Esquerda). Os temas introduzidos no animado debate entre as três europutadas pelo moderador (um jornalista do Expresso) e pela assistência versaram em geral sobre temas concretos de interesse para os cidadãos europeus, e não somente sobre a guerra da Ucrânia e suas implicações para a UE. 

São realizações destas que podem ajudar a aproximar os cidadãos europeus das instituições da União, designadamente daquela que os representa politicamente.

2. Curiosa foi a unanimidade das três eurodeputadas - que a nível partidário nacional integram o PS, o PSD e o BE - na rejeição da ideia "ultrafederalista" de um círculo eleitoral pan-UE nas eleições do PE, com listas transnacionais, sobreposto aos atuais círculos nacionais ou infranacionais, tema que agora ressurgiu num relatório sobre a reforma eleitoral aprovado no Parlamento Europeu e no relatório final da Conferência sobre o Futuro da Europa, hoje apresentado em Estrasburgo.

Essa posição consensual permite antecipar que, mesmo que essa ideia passe no Parlamento Europeu, o Governo português deve ser um dos que se lhe vão opor no Conselho da União, inviabilizando-a, visto que a lei eleitoral carece da unanimidade dos Estados-membros. Ainda bem que fica na gaveta, como AQUI defendi!

Este País não tem emenda (28): Não ao estacionamento gratuito

1. Esta manhã, pretendendo assistir a um evento na Praça da República, em pleno centro urbano de Coimbra, só à segunda e lenta volta ao perímetro de ruas circundantes é que consegui encontrar um lugar de estacionamento regular. 

A verdade que os numerosos lugares de estacionamento disponíveis em todas essas ruas são de utilização gratuita, o que permite a sua ocupação por tempo indefinido, reduzindo a sua rotatividade. E tanbém não existem na zona parques de estacionamento pago.

Há muito que defendo que uma cidade que queira reduzir o congestionamento automóvel e aumentar a qualidade de vida urbana não pode ter estacionamento gratuito, muito menos nas zonas centrais. De resto, ao contrário do que muita gente pressupõe, entre os direitos fundamentais não consta o direito à ocupação automóvel gratuita do espaço público.

2. Hoje em dia, passo uma parte do tempo em Bruxelas, onde não existe estacionamento gratuito e onde, portanto, quem não disponha de estacionamento privativo tem de incorporar o custo do estacionamento no preço de ter carro, o que constitui um forte desincentivo à aquisição e à utlização de automóvel. 

Em Portugal, pelo contrário, as pessoas julgam que a aquisição de um automóvel lhes dá direito automático a estacionamento gratuito e mobilizam-se ativamente contra a introdução de estacionamento oneroso, como alguns municípios têm vindo, arrastadamente, a fazer. Ao desmazelo da generalidade dos municípios junta-se a irresponsabilidade cívica e a prevalência do interesse individual sobre o interesse coletivo.

3. É por isso que vejo com tristeza que entre os motivos da moção de censura apresentada pelo PS de Setúbal à respetiva câmara municipal se conta, ao lado do caso dos refugiados ucranianos, também a acusação contra o «estacionamento tarifado em grande parte da cidade».

Como resulta do que acima digo, a referida atuação da CM de Setúbal não é de censurar, como lamentavelmente entende o PS local, mas sim de louvar. Prouvera que a CM de Coimbra, e outras cidades do País, seguissem o mesmo caminho.

Adenda 
Um leitor de Setúbal argumenta que o que se passou recentemente foi a colocação de parquímetros em locais onde não existia falta de lugares de estacionamento nem estacionamento abusivo, tratando-se, no entender de muitos deputados municipais e dele próprio, apenas de criar mais uma «fonte de financiamento bastante injusta para os cidadãos». Na minha resposta argumentei que, hoje em dia, o pagamento do estacionamento deve ser uma regra geral, para reduzir o tráfego automóvel nas cidades, por razões urbanísticas e ambientais, e que os municípios têm toda a legitimidade para rentabilizar a utilização particular do espaço público, como sucede com outros usos, fortalecendo o orçamento municipal.

domingo, 8 de maio de 2022

Livro de reclamações (25): Onde o Simplex não entrou

1. Foi assim:

    a) Há tempos dirigi-me à delegação de Coimbra do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) para recuperar o livrete de um atrelado automóvel emprestado por um familiar, documento que me fora retido pela GNR, por eu não ter feito prova do competente seguro. Tendo exibido a prova do seguro e sendo confirmado que o documento se encontrava ali, fui porém informado que não podia reavê-lo, por não ser o proprietário do veículo, de nada me valendo argumentar que o livrete tinha sido apreendido a mim e que não era por acaso que ele tinha sido remetido pelo próprio IMT para Coimbra, minha residência.

    b) Eis-me de novo no serviço, devidamente munido de uma procuração do proprietário, residente no Porto. Mas continmuei sem poder recuperar o livrete, desta vez por falta de um requerimento do próprio a pedi-lo, sendo em vão que me propus fazer eu o dito requerimento, no uso de "todos poderes necessários", que a procuração me oferecia. Era "o regulamento" - argumentava a zelosa funcionária em frio burocratez!

    c) E foi só à terceira deslocação, somando horas perdidas e respetiva despesa, que consegui resgatar o miserável e oneroso livrete!

Julguei que o programa Simplex tinha chegado a todos os serviços na Administração Pública, mas, pelos vistos, estava enganado. 

3. Que em 2022, muitos anos depois do arranque dos programa Simplex, visando a simplificação dos serviços administrativos em prol da comodidade dos cidadãos, seja necessário passar por estas barreiras para recuperar um simples documento de identificação automóvel, quando tudo se tornou fácil e expedito no caso dos documentos de identificação pessoal (cartão de cidadão e  passaporte), mostra que, em contracorrente, há silos na Administração imunes a qualquer modernização administrativa.

De resto, com os atuais meios tecnológicos, não existe nenhuma razão para que os documentos automóveis não revistam forma digital, com acesso direto da polícia de trânsito aos mesmos, e que os assuntos a eles respeitantes não passem por um procedimento digital, sem necessidade de deslocação física dos interessados aos serviços. Infelizmente, há lugares onde os velhos procedimentos burocráticos e a desconsideração pelos utentes dos serviços públicos prevalecem. Até quando?

sábado, 7 de maio de 2022

Era o que faltava!: A "estupefação" de Rui Rio

Não tem razão de ser a "profunda estupefação" do ainda Presidente em exercício do PSD contra o facto de o PS ter obstado na AR a uma audição do Presidente da CM de Setúbal sobre o polémico caso da receção aos refugiados ucranianos.

Na verdade, os chefes de governo municipal, tal como os chefes de governo regional, não podem ser chamados a dar explicações na AR, pela simples razão de que não são responsáveis perante ela, só respondendo politicamente perante as respetivas assembleias municipais e os respetivos eleitores locais. É fácil ver que uma tal possibilidade daria ao partido maioritário na AR a possibilidade de "chamar a capítulo" e de "chatear" politicamente as câmaras municipais dos partidos da oposição.

Não estando obviamente prevista na Cosntuiação, uma tal eventualidade representaria, em qualquer caso, uma subversão do regime constitucional de autonomia municipal e do sistema de responsabilidade política entre nós.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Regionalização (7): Com conceitos errados não vamos lá

1. Que na linguagem corrente haja uma descabida distinção entre "descentralização" e "regionalização", reduzindo a primeira à transferência de tarefas do Estados para os muncípios, é mau. Que a própria Ministra competente perfilhe essa errada perspetiva, é péssimo para o processo de regionalização, ou seja, de instituição das autarquias regionais em falta desde 1976, cuja retoma o PS e Governo assumiram explicitamente para esta legislatura.

Com efeito, quer sob o ponto de vista teórico, quer constitucional, a descentralização territorial abrange, ao mesmo título, tanto a transferência de competências do Estado para os municípios e CIM (descentralização municipal) como para as autarquias regionais (descentralização regional). A diferença está em que para haver a segunda é preciso criar as competentes autarquias regionais.

2. Essa falta de rigor conceptual só ajuda os adversários da regionalização, que reduzem a verdadeira e própria descentralização à autonomia municipal, tornando dispensável ou supérflua a regionalização.

Um discurso pró-regionalização deve, pelo contrário, sublinhar que as autarquias regionais (designação preferível à anódina noção constitucional de "regiões administrativas") são uma forma de descentralização e que sem elas continuará incompleto o programa de descentralização territorial no Continente previsto na Constituição, prestes a completar meio século.

Adenda
É pena que Ramalho Eanes, normalmente tão ponderado nas suas declarações públicas, se tenha vindo alistar entre os adversários da regionalização, com o velho e relho argumento de que o debate pode dividir o País, num momento como o atual, em que se impõe a unidade nacional. Primeiro, não existe ainda nenhum calendário político para reabrir o processo legislativo, nem muito menos para o referendo constitucionalmente previsto, que só pode avançar depois daquele; segundo, o que divide mais o País, sem que Lisboa queira ver, é o contínuo processo de concentração de recursos na capital e de definhamento do resto do território. Vai-se tornando cada vez mais óbvio que a decentralização regional terá de vencer a oposição de Lisboa. Quando se tem o monopólio do poder, ninguém gosta de o partilhar.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Bloquices (20): De acordo

Por vezes, embora poucas, acontece estar de acordo com o Bloco de Esquerda, como no que respeita à orientação estratégica definida no seu conclave partidário de há dias: «Aqui estamos, pois, na oposição. Não poderia ser de outra forma». 

Sendo um "partido de protesto" por natureza, que não "suja as mãos" nas coisas de governo - que é um negócio de cedências à realidade -, a "Geringonça" só podia ter sido um equívoco capítulo transitório, que o BE encerrou com alívio.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

+Europa (60): Federalismo, mas nem tanto!

1. Por culpa da pandemia e, ultimamente, da guerra na Ucrânia, a Conferência sobre o Futuro da Europa - que mobilizou durante um ano representantes das instituições europeias, dos parlamentos nacionais e de painéis de cidadãos -, não teve infelizmente a visibilidade nem a cobertura mediática, e não só em Portugal, que os seus trabalhos mereciam.

Prestes a terminar a sua agenda, a comissão executiva vai apresentar o relatório final às instituições europeias no próximo dia 9 de maio, dia da União, no Parlamento Europeu em Estrasburgo. No entanto, as conclusões não devem afastar-se das muitas propostas aprovadas na sessão plenária, no mesmo local, na semana passada, em geral no sentido de aprofundar a integração e a democracia europeia.

Não é por falta de propostas que a CFE poderá ser criticada.

2. Embora a Conferência não tenha sido consensual, pois as conclusões tiveram a oposição da direita antieuropeia e mais eurocética, ela colheu um amplo apoio, incluindo, surpreendentemente, o grupo da Esquerda Europeia, cujos partidos integrantes em alguns países, incluindo Portugal, são bem pouco favoráveis, se não mesmo hostis à integração europeia.

Ora, entre as conclusões aprovadas - muitas das quais requerem alteração dos Tratados - contam-se algumas bem ousadas, de teor "ultrafederalista", como a proposta de um círculo eleitoral pan-UE, sobreposto aos atuais círculos nacionais (ou infranacionais), que se manteriam, ou a de convocação de referendos ao nível da União. Resta saber se tais propostas conseguem vir a figurar num projeto de revisão dos Tratados e passar, primeiro, na necessária "Convenção" a convocar para o efeito e, depois, na "conferência intergovernamental", que as tem de aprovar por unanimidade, antes da sua ratificação nacional.

Um longo caminho para alterar o atual configuração constitucional da UE.

3. No final do plenário da Conferência, em entusiasmado membro terá saudado o advento do "Estado federal" europeu, o que me parece excessivamente temerário, apesar de convictamente adepto de um aprofundamento federalista da União (que, a meu ver, aliás, já só pode ser corretamente lida numa "chave" federal).

De facto, a ideia de um Estado federal supõe a passagem de toda a soberania para o nível federal, privando dela as unidades federadas (os atuais Estados-membros), o que não parece viável, enquanto vigorar a regra básica de que a União não tem competência para definir a sua própria competência - que depende das atribuições conferidas pelos Estados-membros.

Federalismo europeu, sim, mas nem tanto!

Adenda
Um leitor pergunta se se justifica entrar num complexo e demorado debate sobre a revisão dos Tratados no atual clima de incerteza política criado pela guerra da Ucrânia e pelo contencioso acerca do Estado de direito entre a União e Polónia e Hungria, que tenderão a ameaçar vetar qualquer revisão. Penso que tem razão e que valeria a pena aguardar.

sábado, 30 de abril de 2022

Eleições (3): "Morte" do método de Hondt?

1. Há quem defenda a supressão do método de Hondt como regra de atribuição de mandatos parlamentares no nosso sistema eleitoral proporcional, por alegadamente produzir resultados insuficientemente proporcionais, favorecendo os partidos mais votados e sendo responsável por em muitos círculos eleitorais somente os dois maiores partidos conseguirem eleger deputados, fazendo desperdiçar os votos nos demais partidos.

Sem contestar que outros métodos eleitorais poderiam melhorar o "índice de proporcionalidade" do sistema eleitoral, entendo, porém, que ele não é o principal responsável, nem pela "majoração" da representação parlamentar de que beneficiam os partidos mais votados, nem pela elevada percentagem de votos "desperdiçados", por não chegarem a contar para eleger deputados, prejudicando sobretudo os pequenos e médios partidos com representação parlamentar.

Como já anteriormente referi, a principal responsabilidade por ambos esses dados do nosso sistema eleitoral está nos círculos eleitorais de pequeno tamanho, em que o partido vencedor obtém sempre uma percentagem de deputados muito superior à sua percentagem de votos. Com o atual mapa territorial dos círculos eleitorais, a eventual substituição do método de Hondt por outro pouco alteraria em geral.

2. Há vários fatores que aconselham especial cautela quanto a antecipar um próximo fim do reinado do método do matemático belga do século XIX entre nós: (i) não se trata propriamente de uma exceção nacional, vigorando em vários outros países democráticos (Espanha, Bélgica, Países Baixos, Áustria, Finlândia, etc.); (ii) foi estabelecido logo nas eleições constituintes de 1975 e está consagrado na Constituição, desde o princípio do regime democrático, o que torna a sua substituição pouco fácil; (iii) convém aos partidos de governo, ao moderar uma proporcionalidade excessiva, pelo que não é provável que eles prescindam desse pequeno fator de governabilidade.

Em suma, parafraseando Mark Twain, a notícia da próxima "morte do método de Hondt" é seguramente muito exagerada.

Adenda
Onde a lei poderia substituir o método de Hondt é na repartição dos 226 deputados pelos 20 círculos eleitorais do território nacional, visto que a Constituição não o impõe, e outro método poderia eventualmente favorecer, ainda que marginalmente, os círculos com menos população, atenuando a concentração nos círculos mais populosos (a começar por Lisboa e Porto).

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Eleições (2): Proposta imprestável

1. A proposta de revisão eleitoral que a IL quer apresentar no Parlamento, tal como exposta no seu programa eleitoral, não tem condições para vingar, desde logo por ser desconforme com a Constituição.

É incompatível com a Constituição quanto a dois pontos cruciais: (i) quando suprime os atuais círculos eleitorais subnacionais, que são constitucionalmente obrigatórios, como base principal de eleição e repartição proporcional dos deputados; (ii) quando admite que os partidos mais votados elejam nos círculos uninominais mais deputados do que os que lhe cabem na repartição proporcional nacional, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente imposto.

Esta última incompatibilidade constitucional é especialmente grave, pois não pode ser superada por via de revisão constitucional, por lesar um limite material de revisão - a proporcionalidade eleitoral -, que integra o núcleo essencial da CRP.

2.  Esta proposta de revisão do sistema eleitoral também é de rejeitar sob o ponto de vista político, pelas seguintes razões: (i) por prever a eleição de 150 deputados em microcírculos uninominais, por maioria simples, os quais, além do impraticável desenho geográfico, criariam o risco de os deputados passarem a considerar-se  representantes dos seus microterritórios, e não dos cidadãos em geral, como requer a teoria da democracia representativa; (ii) por criar duas categorias de deputados, os deputados eleitos em círculos uninominais, dotados de legitimidade eleitoral pessoal, e os deputados eleitos por via das listas nacionais dos respetivos partidos; (iii) por prever um chamado "círculo de compensação", de nível nacional, o que baixaria o limiar de eleição de deputados para cerca de 1%, o que iria multiplicar o número de partidos com representação parlamentar, estimulando uma ulterior proliferação partidária, dada a facilidade em entrar no Parlamento. 

Seria uma excelente receita para a instabilidade política, para facilitar as cisões partidárias e para a corrida de qualquer grupo de interesse para obter representação parlamentar.

Só se o PS e o PSD tivessem ensandecido politicamente é que poderiam sufragar esta bizarra reforma eleitoral.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

+ Europa (60): Nem pensar!

1. Segundo este inquérito de opinião em vários países europeus, uma grande maioria dos inquiridos manifestou-se a favor da eleição direta do presidente da Comissão Europeia, substituindo, portanto, a sua atual eleição pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu.

A sondagem não deixa de ser surpreendente, primeiro, porque a eleição direta do chefe de governo, típica do presidencialismo, só se verifica em dois dos Estados-membros da UE (Chipre e França) e, segundo, porque essa ideia colheu apoio em vários países, incluindo Portugal, em que, dada a sua pequena dimensão populacional, os respetivos cidadãos pouco peso teriam em tal eleição direta.  

É evidente que, felizmente, tal opção não tem a mínima viabilidade na UE, pois a necessária revisão dos Tratados nunca passaria, por exigir a unanimidade dos Estados-membros. 

2. Na verdade, a opção presidencialista daria a centralidade política na União a essas eleições e à Comissão, em prejuízo da atual diarquia representativa, assente no Parlamento Europeu (que representa diretamente os cidadãos europeus, na sua pluralidade política) e no Conselho (que representa os governos dos Estados-membros) e entregaria a escolha do Presidente aos maiores países da União (Alemanha, França, Itália), dado o seu peso populacional.

Se o presidencialismo em geral não encontra muito eco na Europa, muito menos o tem nos Estados federais europeus (com exceção da... Rússia). Não é por acaso que no único presidencialismo federal historicamente bem-sucedido, os Estados Unidos, o Presidente não é eleito diretamente pelo conjunto dos cidadãos federais, mas sim por um colégio composto por membros eleitos ao nível da cada estado federado, e cuja composição não reproduz a repartição populacional da federação, favorecendo relativamente os pequenos estados.

Seria lamentável que, mesmo que viesse a optar serodiamente por um presidencialismo governativo, a União esquecesse a lúcida lição dos pais-fundadores dos Estados Unidos.

3. Note-se que, embora pareça conduzir também a uma "eleição direta" do Presidente da Comissão, tal não sucede efetivamente com a proposta dos Spitzenkandidaten ("cabeças de lista") defendida pelo PE nas últimas legislaturas, segundo a qual o presidente da Comissão seria, em princípio, o candidato previamente indicado pelo partido europeu que vença as eleições para o Parlamento Europeu, como sucede na prática a nível nacional na generalidade das democracias parlamentares europeias.

Continuando a ser eleito pelo PE, o Presidente da Comissão teria também a legitimidade própria da sua eleição como eurodeputado, enquanto candidato do partido vencedor (ou do partido em melhores condições para formar uma coligação de governo).  Por conseguinte, ao contrário da eleição direta em sentido próprio, do que se trata aqui é de aumentar a centralidade das eleições parlamentares e de reforçar a natureza parlamentar do sistema de governo da União

Guerra na Ucrânia (35): Investigue-se!

Só pode merecer todo o apoio esta exigência do SG das Nações Unidas de uma investigação independente aos possíveis crimes de guerra cometidos na guerra da Ucrânia

Por um lado, só assim se fundamentam devidamente as várias acusações, sobretudo da parte ucraniana contra as forças russas, distinguindo as que merecem crédito das que fazem parte da eficaz "guerra mediática" ucraniana, paralela à guerra no terreno; por outro lado, mesmo que tais crimes não possam a ser submetidos à julgamento e condenação do TPI, como deviam, sempre resta a punição política e moral, e o registo para memória futura, não menos importante.

Que essa exigência do Guterres não se fique por um voto sem eco nem consequências.

Adenda
Um leitor observa que as vítimas civis e a destruição de edifícios civis não são necessariamente prova de crimes de guerra, visto que a Ucrânia decretou o armamento generalizados dos civis, o que os torna "combatentes" à face das leis da guerra, assim como os edifícios em que se encontrem. Eis o que só uma investigação independente pode deslindar.