terça-feira, 11 de abril de 2023

Não concordo (42): Sem fundamento

Não vejo fundamento para a proposta de aumento extraordinário das pensões, adiantada por Marques Mendes no seu comentário de ontem, invocando o recente aumento adicional de 1% dado aos funcionários públicos, por causa da elevada inflação.

Em primeiro lugar, enquanto as remunerações da função pública dependem do orçamento geral do Estado e são uma política relativamente discricionária do Governo, a atualização das pensões é paga pelo orçamento da segurança social, financiado pelas contribuições dos trabalhadores no ativo, e segue uma fórmula pré-estabelecida na lei; em segundo lugar, desde o início do surto inflacionista, as pensões subiram muito mais do que as remunerações da função pública, pelo que o paralelismo acima invocado é descabido; por último, não faz sentido haver uma subida em função da inflação esperada para o corrente ano, pois a referida fórmula legal de cálculo das pensões incorpora justamente o fator da inflação verificada, a qual só se pode apurar no final do ano. 

Propostas orçamentalmente "pesadas" como estas deveriam assentar numa fundamentação sólida -, o que não é manifestamente o caso.

Adenda
Um leitor observa que a fórmula legal de atualização das pensões, que toma em conta o crescimento do PIB e da inflação (como se pode ver AQUI), estabelece critérios diferentes conforme o valor das pensões, desfavorecendo as de valor mais elevado. Em todo o caso, considerando o grande crescimento do PIB em 2022, todas as pensões (salvo as de valor superior a 5765 euros) beneficiaram em 2023 de uma atualização bem superior à dos funcionários públicos (como se pode ver AQUI). 

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Não é bem assim (14): PR não pode demitir livremente o Governo

1. Ao contrário do que frequentemente se ouve e lê - por exemplo, AQUI -, em 2004, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, não demitiu o Governo de Santana Lopes, tendo, sim, dissolvido a AR e convocado eleições antecipadas, invocando a evidente degradação da situação política. O Primeiro-ministro é que decidiu apresentar a sua demissão, passando a "governo de gestão" -, o que não estava obrigado a fazer.

Com efeito, salvo o caso excecional de estar em causa o "regular funcionamento das instituições" - situação até agora nunca invocada -, o Presidente da República não pode demitir diretamente o Governo, que não depende da sua confiança política e que só responde politicamente perante a AR

2. O que o PR pode fazer, quando o julgue politicamente justificado, é dissolver a AR e convocar eleições antecipadas, o que vai acarretar automaticamente a demissão do Governo em funções, com o início da nova legislatura.

Todavia, é fácil ver que, embora seja uma decisão presidencial relativamente discricionária - mas que carece sempre de fundamentação adequada -, o PR só a tomará normalmente se puder antecipar, com forte probabilidade, que as novas eleições e a nova composição parlamentar providenciarão uma solução governativa alternativa à existente. Em 2004, tal era praticamente garantido, dado o manifesto esgotamento da maioria governamental, sob a liderança de Santana Lopes, e a sólida afimação do PS de José Sócrates nas sondagens eleitorais; nas circunstâncias presentes, ninguém o pode assegurar, pelo contrário. 

Arriscar uma situação de impasse ou de fragilidade governativa nas atuais circunstâncias - guerra na Ucrânia sem fim à vista, surto inflacionista por dominar, prazo de implementação do PRR a correr - relevaria do aventureirismo político. 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Revisão constitucional (4): Uma solução problemática

1. Parece que a proposta do PS de incluir na Constituição um direito à alimentação apresenta boas hipóteses de vir a ser aprovada. Embora defensor desde sempre da consagração constitucional do Estado social e dos direitos sociais - capítulo em que a CRP foi além de todas as constituições ocidentais -, não me parece, porém, uma boa solução acrescentar mais este direito em particular.

Em primeiro lugar, salvo o Brasil, desde 2010, não conheço nenhum outro precedente constitucional relevante. No plano do direito internacional dos direitos humanos, o art. 11º do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (PIDESC), de 1966, menciona-o, mas somente como uma das componentes do «direito a um nível de vida adequado», a par do vestuário e do alojamento, e não como um direito autónomo

2. Entre nós, tal como em vários outros países, está legalmente consagrado desde 1996 (I Governo Guterres) o direito a um rendimento mínimo, destinado a assegurar a todos um nível de vida decente - mais tarde renomeado como "Rendimento Social de Inserção" -, o qual inclui obviamente a cobertura das necessidades alimentares, entre outras. 

O que se justificaria, portanto, era constitucionalizar explicitamente esse direito geral, em vez de particularizar somente uma das suas manifestações.

3. A constitucionalização autónoma de um direito à alimentação, a assegurar pelo Estado, suscitaria não poucos problemas de construção jurídica e de implementação prática. Sendo um direito separado do direito ao rendimento mínimo, seriam, porém, os mesmos os seus beneficiários? Como deveria o Estado satisfazê-lo: em espécie, através de uma rede de cantinas públicas ou de cantinas sociais subsidiadas, ou por via financeira ("vales" alimentares ou um subsídio adicional para compras alimentares)?

Quando o Estado revela crescentes dificuldades em assegurar adequadamente alguns direitos sociais constitucionais originários, como o direito à saúde e o direito à habitação, cabe perguntar se se justifica abrir mais uma frente particular de fácil litigiosidade política e ideológica.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guerra na Ucrânia (54): "Agressão não provocada"?

1. De vez em quando, ousando desafinar do coro a uma só voz orquestrado a partir de Washington e de Bruxelas (sede da Nato) sobre a guerra na Ucrânia, há autores ocidentais, como Jeffrey D. Sachs, que têm a coragem de lembrar as origens da guerra e de contestar a versão ocidental da "invasão não provocada".

Que houve invasão da Rússia, é óbvio, por mais que Moscovo insista na abstrusa designação de "operação militar especial". Mas é igualmente indesmentível que Moscovo foi continuadamente provocada desde 2014 por Washington, com a cumplicidade europeia, mediante a deliberada alteração do estatuto da Ucrânia como "Estado-tampão" neutro, através da sua integração na Nato, ameaçando diretamente a segurança da Rússia e, depois, pelo incumprimento por Kiev dos acordos de Minsk sobre a autonomia dos territórios russófonos do Leste da Ucrânia, os quais, em vez disso, foram continuamente flagelados pela artilharia ucraniana. 

Evidentemente, as provocações ocidentais não desculpabilizam a Rússia pela invasão, em patente violação do direito internacional, mas descredibilizam manifestamente a retaliação em todas as frentes de Washington e de Bruxelas, especialmente no "Sul global" (desde o Brasil à Índia), que se recusa a alinhar na cruzada ocidental contra a Rússia.

2. Dadas as origens da guerra, não se vê como ela pode vir a acabar um dia sem a renúncia à integração da Ucrânia na Nato, regressando ao seu estatuto de neutralidade, em troca da retirada da Rússia dos territórios ocupados e anexados, que ficariam transitoriamente sujeitos a administração das Nações Unidas, até à organização de um referendo local sobre o respetivo estatuto político, sob a égide da ONU.

Mas, tendo em conta as posições absolutistas de ambas as partes, tudo indica que o desenlace do conflito está mais longe do que perto. Entretanto, além dos beligerantes, a União Europeia paga a principal fatura da guerra que se trava nas suas fronteiras entre Washington e Moscovo, por interposta Ucrânia.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Não dá para entender (41): Jogar dinheiro fora

1. Pelas razões AQUI expostas, discordo inteiramente da isenção de IVA de um vasto cabaz de compras, que o Governo adotou à pressa, desdizendo repetidas posições anteriores contra essa política, que, aliás, contraria também as recomendações do BCE e da Comissão Europeia contra medidas de contenção de preços de natureza transversal, socialmente indiferenciadas.

Mesmo assumindo que ela se vai repercutir inteiramente em correspondente descida de preços - que, aliás, já estão em curva descendente - , sucede que, contraditoriamente, essa isenção de IVA vai obviamente beneficiar quem menos precisa de ser subsidiado, ou seja, os titulares de mais elevados rendimentos, porque consomem mais. Custando esta medida cerca de 600 milhões de euros aos cofres públicos (incluindo subsídios agrícolas), e resultando num escasso desconto médio mensal de uns doze euros, aqueles milhões teriam melhor serventia se destinados a subvencionar mais o poder de compra de quem mais precisa.

Não podendo ser socialmente seletiva, a isenção de IVA traduz-se em deitar dinheiro público fora.

2. Aliás, esta medida de subvenção fiscal universal vêm somar-se a outras tomadas logo no início do surto inflacionista e que não foram, entretanto, revertidas - como a redução do ISP e das portagens nas autoestradas -, cuja despesa fiscal se traduz também em centenas de milhões de euros e que, beneficiando especialmente os automobilistas, não têm como destinatários as camadas sociais de menores rendimentos. 

Não dá para entender que filosofia é que justifica esta política socialmente "neutra" de contenção dos preços.

Adenda
«Estranho país este onde se come o dobro do recomendado, pelo que, obviamente, mais de metade dos adultos tem excesso de peso, mais de 1/5 é mesmo obeso — e onde esta situação é ainda mais grave nas classes socioeconómicas mais desfavorecidas — e que também, para agravar, consome quatro vezes mais carne do que o recomendado, o Governo tenha decidido eliminar o IVA dos “produtos mais consumidos”, incluindo a carne e a manteiga. (...) Da lista não faz parte o siso, provavelmente por não ser dos “produtos mais consumidos”». H. Carmona da Mota, Coimbra, nas Cartas dos Leitores do Público de hoje. Subscrevo!

Adenda 2
Um leitor argumenta que o Governo só avançou para esta medida porque a inflação já está a diminuir e tudo indica que continue a baixar, mesmo sem IVA zero, para no fim dizer que "o investimeto valeu a pena".  É, de facto, uma boa jogada política, mas talvez demasiado cara, nao é?

terça-feira, 28 de março de 2023

Este País não tem emenda (35): Privatize-se!

1. Mais uma greve na CP. Nos últimos meses têm sido quase contínuas. Os utentes desesperam e as finanças da empresa degradam-se, para satisfazer os caprichos sindicais desta "aristocracia operária" (dados os salários e outras regalias), com óbvias motivações políticas, por ser uma empresa estatal.

Assim não dá. Este País não pode continuar a suportar a recorrente chantagem sindical, à custa da inoperacionalidade do transporte ferroviário. Impõe-se a privatização da empresa, continuando o Estado a assegurar e financiar o cumprimento das obrigações de serviço público inerentes ao "serviço de interesse económico geral" (SIEG), que o transporte ferroviário é. O Estado deve manter somente a gestão da infraestrutura ferroviária, que é um "monopólio natural", que  já foi separada há décadas das operações de transporte, entretanto abertas à concorrência.

O privatização de outros serviços públicos tradicionais (telecomunicações, eletricidade, etc.) comprova que eles não são incompatíveis com a gestão privada.

2. A evidência mostra que, além de menos eficientes (em geral), as empresas e serviços públicos são muito mais atreitos a greves do que as empresas privadas. 

Primeiramente, nas empresas privadas, os sindicatos sabem que o abuso da greve pode pôr em causa a sobrevivência das empresas e os postos de trabalho, pelo que têm de se conter, o que não sucede nas empresas públicas; em segundo lugar, nos serviços públicos, onde as greves afetam sobretudo os seus utentes, os sindicatos tornam-nos reféns do seu combate contra o patrão Estado; por último, as greves nas empresas e serviços públicos tendem a ser instrumentalizadas pelos partidos políticos com maior implantação sindical, tornando-as um instrumento de luta política.

Por isso, contraditoriamente, além da questão da eficiência, a gestão privada dos SIEG pode assegurar melhor do que a gestão pública os tradicionais princípios da continuidade do serviço público e da "orientação para o utente".  

Adenda
A compensação financeira do Estado pelas obrigações de serviço público da CP está prevista na lei e a sua fórmula de cálculo consta do contrato entre o Estado e a empresa. O que penso é que, sob gestão privada, com menos greves e melhor gestão, o dinheiro dos contribuintes seria mais bem utilizado e o serviço público seria bem melhor. 

Adenda 2
Concordando com a minha análise sobre a maior vulnerabilidade dos serviços públicos à conflitualidade sindical, apesar das melhores condições de trabalho, um leitor lembra as frequentes greves no SNS e na escola pública, sendo, porém, praticamente inexistentes as greves nos setores privados da saúde e do ensino. Tem razão.

Adenda 3 (30/3)
Um leitor pergunta «porque é que a gestão pública tem de ser menos eficiente do que gestão privada». Não tem de ser, mas tende a ser. Essencialmente, por duas razões: primeiro, porque, estando as empresas públicas sujeitas a controlo governamental, os interesses políticos podem prevalecer sobre os critérios de eficiência empresarial; segundo, enquanto os gestores das empresas privadas respondem todos os anos, quanto ao desempenho empresarial, diretamente perante os acionistas, cujo capital está em causa, tal não sucede nas empresas públicas, cujos gestores respondem perante o Governo, que responde perante o parlamento, que só responde perante os eleitores-contribuintes, pelo desempnho geral do Governo, nas eleições seguintes - o que equivale a irresponsabilidade.

Terra Brasilis (11): A inflação não é de esquerda

Desrespeitando a autonomia do Banco Central do Brasil na condução da política monetária e no controlo da inflação, o Presidente Lula - que, de acordo com o cânone presidencialista, é chefe de Estado e chefe de governo - tem criticado insistentemente a política de "juros altos" do BCB, tendo chegado ao ponto de pedir ao Senado que pressione o Presidente do Banco para corrigir a sua política.

Ora, o controlo da inflação constitui o mandato legal prioritário do Banco Central, e a inflação chegou aos 5,75% no ano passado, quase o dobro da meta fixada pelo Banco, de 3% (mais permissiva do que a da Reserva Federal dos Estados Unidos e do que a do BCE, que é de 2%). Por isso, não há nenhuma razão para a autoridade monetária aliviar a taxa de juro, pelo contrário, tanto mais que a política orçamental expansionista do Governo Lula pressiona ainda mais os preços. 

Ao contrário do que por vezes parece, tendo em conta posições como as de Lula (mas com ecos outras geografias mais próximas...), a inflação não é de esquerda.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Privilégios (23): Um equívoco "socialista"

1. É lamentável ver um ex-ministro e vários deputados socialistas a juntarem-se a deputados do Bloco e do PCP para, contrariando a recente recomendação da OCDE, reivindicarem, mais uma vez, a abolição das propinas no ensino superior público, que, aliás, têm um valor hoje muito baixo, depois das reduções no tempo da "Geringonça".

A abolição das propinas seria, antes de mais, uma solução socialmente injusta. Por um lado, embora o ensino superior tenha uma "externalidade" pública positiva - o aumento do nível tecnológico do País, que deve ser paga pela coletividade -, a sua frequência é acima de tudo um investimento pessoal num melhor futuro profissional, devendo, portanto, ser maioritariamente pago pelos seus beneficiários, de acordo com o princípio beneficiário-pagador. Por outro lado, estando longe de ser de acesso universal - dada a grande percentagem dos que o não frequentam -, não é aceitável que o ensino superior público seja pago por todos, incluindo por aqueles que não chegam lá ou que têm de frequentar o ensino superior privado, por falta de vagas nas escolas públicas.

Tal como, por exemplo, as antigas autoestradas SCUT, o ensino superior gratuito é o contrário do socialismo: é fazer pagar por toda a coletividade o privilégio de uma parte dela.

2. Política de esquerda no ensino superior é, por um lado, aumentar a oferta pública e a sua qualidade, para reduzir a dependência dos estudantes menos abastados em relação ao ensino privado, obviamente dispendioso e, por um lado, multiplicar as bolsas de estudo e o apoio ao alojamento estudantil para os estudantes oriundos de meios economicamente mais carenciados, atenuando as desigualdades sociais. 

Ora, além de reduzir a autonomia financeira das universidades, a abolição das propinas só iria diminuir os recursos públicos para aqueles dois objetivos, tornando o ensino superior público refém da dificuldades orçamentais do Estado, agravando o crónico subfinanciamento do ensino superior público e frustrando uma aposta mais determinada na promoção da igualdade de oportunidades. 

Os resultados da benesse do ensino superior gratuito não seriam propriamente socialistas, no sentido nobre da palavra. Pelo contrário!

Adenda
Um eleitor acha um «escandaloso privilégio de classe» que os alunos de medicina, que custam individualmente mais de 15 000 euros por ano às universidades públicas, paguem menos de 700 euros de propina, por mais abastadas que sejam as suas famílias, sendo o resto pago pelos contribuintes em geral, incluindo aqueles que não conseguiram entrada em qualquer curso superior, muito menos nas faculdades de medicina. Tem toda a razão!

Adenda 2 (28/3)
Na esperança de dividir o PS, o Bloco apressou-se a avançar de novo com o seu velho projeto de lei a abolir as propinas. Como a "Geringonça" felizmente já acabou, espero que os ministros da Finanças e do Ensino Superior façam ver ao grupo parlamentar do PS o disparate político e doutrinário desta questão e que, pelo contrário, defendam a reversão dos cortes feitos entre 2015 e 2019 por pressão do BE e do PCP.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Campos Elísios (12): Elogio da coragem política

1. Aplauso para a coragem e resiliência política do Presidente Macron, fazendo valer a reforma sobre a subida da idade de aposentação, de 62 anos para 64 anos (mesmo assim abaixo da média na generalidade  dos países), enfrentando a oposição coligada das esquerdas e da extrema-direita e contra a agressiva agitação social que a acompanhou. 
Além de ser uma reforma imprescindível para assegurar a solvabilidade financeira do sistema de pensões e melhorar a competitividade da economia francesa, tratava-se de cumprir um compromisso do seu programa eleitoral, que a sua eleição sufragou.

É  bom saber que há governantes para quem a democracia representativa prima sobre o "plebiscito da rua" e que estão dispostos a sacrificar a sua popularidade política para levar a cabo as reformas em que acreditam e com que se comprometeram. Chapeau!

Não concordo (40): Apoios universais não fazem sentido

1. Não vejo que sentido faz reduzir o IVA sobre produtos alimentares, tornando-os supostamente mais baratos para toda a gente, incluindo aqueles que, pelo seu elevado rendimento, não precisam desse alívio fiscal. Mantenho que mais vale manter o IVA e destinar a receita adicional para subsidiar especialmente aqueles que, pelos seu baixos rendimentos, são mais atingidos pelo surto inflacionista em curso. 

Descidas gerais dos impostos correm o risco de continuar a alimentar a procura e a inflação, por causa do aumento transversal do poder de compra.

2. Julgo, aliás, que vão nesse sentido as recomendações tanto do BCE como da Comissão Europeia, para fazer cessar a contradição entre a política monetária contracionista do BCE (subida dos juros para travar a inflação) e uma política fiscal e/ou orçamental expansionista dos governos nacionais, através de subsídios ou reduções fiscais socialmente indiferenciadas, o que só pode obrigar aquela a ser ainda mais dura.

Para política orçamental expansionista, a fomentar a procura agregada e a puxar pelos preços, já basta o "maná" do PRR da UE.

Adenda
Pelo acima exposto, não posso subscrever a crítica de AC à continuada subida dos juros pelo BCE,  porque este está simplesmente a cumprir o seu mandato constitucional de fazer descer a elevada inflação, que é um cancro que corrói o tecido económico e social. Aliás, as medidas governamentais de apoio socialmente indiferenciadas ao poder de compra só tornam mais árdua a tarefa do BCE.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Corporativismo (43): O que falta fazer quanto às ordens profissionais

1. Com a promulgação da nova lei-quadro das ordens profissionais, consuma-se uma etapa essencial na reforma da regulação das profissões "ordenadas", numa perspectiva menos corporativista e mais aberta ao escrutínio público, incluindo a participação de personalidades externas na respetiva supervisão e disciplina profissional e um mecanismo de queixa dos clientes dos referidos serviços contra falhas e abusos na sua prestação.

Mas para concluir esta reforma torna-se obviamente necessário proceder à adaptação das leis orgânicas de todas as ordens existentes e, depois, fazê-las implementar no terreno, sendo de esperar que, desta vez, nenhuma das ordens consiga obter importantes derrogações singulares da nova lei-quadro, como sucedeu em relação à lei que ainda está em vigor, aprovada em 2013, com a conivência do Governo e da maioria parlamentar da altura.

2. Mas, embora resolvendo alguns dos graves problemas da regulação profissional entre nós - nomeadamente o défice de supervisão e de disciplina, a pulsão malthusiana na restrição do acesso às profissões e a falha na proteção dos direitos dos clientes -, esta substancial revisão legislativa dos poderes e da organização das ordens profissionais não enfrenta outro dos grandes vícios do regime vigente, que é o âmbito excessivo dos chamados "atos próprios" de cada profissão, vedados a outros profissionais, que as principais ordens conseguiram alargar a atividades fora do núcleo duro das respetivas profissões. 

Como restrições que são à liberdade de exercício profisssional de categorias profisssionais confinantes, os exclusivos profissionais têm de limitar-se ao minimo necessário, o que manifestamente não acontece desigadamente no que respeita aos advogados e aos médicos.

Ora, enquanto se mantiverem esses amplos monopólios profissionais, mantém-se plenamente válida a crítica da OCDE e da Comissão Europeia contra a indevida restrição à concorrência na prestação de serviços profissionais entre nós.  Por isso, impõe-se aproveitar a reforma das ordens profissionais para rever também tais exclusivos profissionais.

3. Acresce que nenhuma reforma legislativa vingará, se não houver uma mudança de atitude política quer da AR, quanto à contenção na criação de novas ordens sem nenhuma justificação, quer do Governo, no que respeita aos seus poderes de tutela sobre os abusos das ordens.  

Por um lado, não se compreende que as ordens profissionais - que representam um casamento "contra natura" entre  associações profissionais e regulação pública, com as contradições inerentes - tenham proliferado entre nós desde a implantação da democracia liberal (que convive mal com associações obrigatórias e com a representação oficial de interesses profissionais) e da economia de mercado (que assenta na liberdade e na concorrência profissional). Por outro lado, não se percebe como é que, ao longo destes anos todos, apesar da evidência generalizada das omissões e dos abusos das ordens profissionais (que fui denunciando neste blogue), os sucessivos Governos só tenham visto motivo para abrir uma inspeção a uma delas num único caso (à Ordem dos Enfermeiros).

A continuar esta "captura" estrutural do Estado pelas corporações profissionais, nenhuma reforma legislativa nos vale, por mais bem-intencionada que se apresente à partida.

terça-feira, 21 de março de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (20): Uma acusação infundada

1. O Diário de Notícias acusa hoje o Presidente do Tribunal Constitucional, que acaba de terminar o seu mandato mas não foi substituído até à data, de se «recusar sair pelo próprio pé», como se ele tivesse uma obrigação de sair e estivesse indevidamente agarrado ao lugar, juntando-se assim a dois outros juízes que já terminaram o seu mandato há muito mais tempo e também não foram atempadamente substituídos.

Trata-se, porém, de uma acusação totalmente infundada, baseada num manifesto erro de análise, que põe em causa injustificadamente a honorabilidade pessoal e cívica do Presidente e dos demais juízes.

2. Com efeito, ao abrigo de um princípio constitucional aplicável aos titulares de cargos públicos em geral, a começar pelo Presidente da República, os juízes do Tribunal Constitucional, chegados ao fim do seu mandato sem serem devidamente substituídos, não só não têm de deixar os cargos, como têm, pelo contrário, a obrigação institucional de se manterem no exercício de funções, em prorrogação do mandato, até serem efetivamente substituídos. Trata-se, obviamente, de não afetar o funcionamento regular do Tribunal. 

Sucede, aliás, que no caso específico dos juízes do Tribunal Constitucional, tal princípio está explicitamente consagrado num preceito legal, segundo o qual eles «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar» (art. 21º da Lei do TC), não podendo, portanto, abandonar o cargo antes disso, por sua livre decisão. Por isso, nessas situações, a renúncia, embora possível, deve ser uma ocorrência excecional, por indisponibilidade, mas não por capricho, pessoal.

Ora, embora o Presidente do TC tenha invocado explicitamente esse preceito legal, que o jornalista transcreve, este preferiu ignorá-lo, apesar de ele destruir todo o seu "caso".

3.  A lamentável conclusão a retirar deste episódio é que estes "passos em falso" podem ocorrer mesmo em "jornais de referência", quando o zelo e a isenção jornalística entram em pausa, cedendo à fácil tentação jornalística de "arrasar" um membro proemiente da "elite do poder".

Não é costume os titulares de cargos públicos recorrerem ao direito de resposta, aliás constitucionalmente protegido, mesmo quando ele se justifica, como seria manifestamente o caso. Mas não ficaria mal a um jornal com os pergaminhos do DN, voltar ao caso e corrigir oficiosamente o erro e a ofensa

[Texto pontualmente revisto]

Adenda
Um leitor argumenta que, se os juízes que estão em prorrogação do mandato renunciassem, libertar-se-iam da obrigação de continuarem em funções e forçariam o preenchimento das vagas. Duvido que isso servisse de alguma coisa, salvo libertá-los de encargos e criar dificuldades ao funcionamento do Tribunal, o que não se afigura intitucionalmente muito responsável por parte dos seus juízes, em especial do Presidente.

Adenda
Outro leitor diz ter lido que os juízes do TC querem continuar em funções para além do termo do seu mandato, para assim «obterem o direito a aposentarem-se com uma pensão igual à sua elevada remuneração». Sim, essa acusação contra a prorrogação dos mandatos já foi veiculada em alguns jornais, mas não passa de uma atoarda, sem nenhum fundamento. Como mostrei AQUI, o direito a pedir a aposentação com tal pensão "majorada" - regalia de que, aliás, discordo - obtém-se com a simples conclusão do mandato, sem necessidade de nenhum prologamento, pelos que os juízes que ficam em prorrogação, continuando em funções, apenas adiam o momento de a requererem, sem nenhuma vantagem adicional.

domingo, 19 de março de 2023

No bicentenário da Revolução Liberal (47): O debate sobre as eleições parlamentares há dois séculos

Eis a última produção do projeto de investigação sobre a Revolução Liberal de 1820 e a Constituição de 1822, que tenho desenvolvido na Universidade Lusíada do Porto em parceria com o meu colega José Domingues, desta vez com a colaboração dos doutorandos em Direito do ano letivo passsado. 
O livro, financiado pela FCT no âmbito daquele projeto, pode ser lido online AQUI.
Além dos trabalhos dos doutorandos sobre os vários capítulos do sistema eleitoral do parlamento vintista, a obra compreende também uma abrangente bibliografia e uma coletânea de textos coevos, alguns deles absolutamente inéditos, testemunhando o vivo debate público extraparlamentar sobre o tema, numa demonstração viva da cidadania política recém-conquistada

sábado, 18 de março de 2023

Praça da República (74): Pior do que no "Estado Novo"

1. Na vaga de nacionalizações de 1975, não foram poupadas as empresas concessionárias dos transportes locais de Lisboa (a Carris, o metropolitano e os transportes fluviais) e do Porto (o STCP), o que se traduziu na sua estatização e numa enorme restrição da autonomia local, que até o Estado Novo tinha respeitado.

Pior do que isso, passadas várias décadas de reversão das nacionalizações (desde a revisão constitucional de 1989), tal não abrangeu as referidas empresas de transportes, as quais, salvo a Carris e o STCP, desde há poucos anos, continuaram nas mãos do Estado, sob gestão governamental, privando os respetivos municípios da respetiva gestão (embora com a sua interesseira conivência...), em flagrante violação dos princípios constitucionais da descentralização e da subsidiariedade territorial.

2. Surge agora a notícia de que o Governo pretende fundir as duas empresas estatais de transportes fluviais de Lisboa e transferir esse serviço público para a esfera intermunicipal ou metropolitana, de onde, aliás nunca deveria ter saído.

Confiando que essa medida de descentralização territorial, que só peca por tardia, não venha a ser boicotada pelos sindicatos do setor - que, por razões políticas, preferem ter por patrão o Governo -, saudemos o afastamento, embora com décadas de atraso, de um mau legado da precipitada nacionalização geral dos transportes em 1975.

3. Há, porém, que registar a continuação da gestão estatal do metropolitano, não tendo havido concretização da abertura do então Ministro Matos Fernandes, no anterior Governo, em outubro de 2019, para desestatizar e transferir para a gestão metropolitana também esse serviço público.

Em 2016, celebrando a devolução da Carris ao município de Lisboa, o Primeiro-Ministro já tinha declarado que «quem gere a cidade deve gerir os seus transportes»Pelos vistos, porém, esse salutar credo descentralizador não tinha alcance geral...

É evidente que os muncípios beneficiários são os primeiros a não querer mexer no statu quo, já que assim é o orçamento do Estado - ou seja, os contribuintes nacionais em geral - a pagar os encargos desse dispendioso meio de transporte urbano. Mas não deixa de ser bizarro que as decisões sobre a rede de metro de Lisboa caibam a um ministro, e não ao governo da cidade ou da área metropolitana.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Antologia do nonsense (25): Acabar com a política de justiça?!

1. Parece-me francamente disparatada este proposta da SEDES, uma organização que se julgava imune a radicalismos políticos ou doutrinários, de extinção do ministério da Justiça, em alegada homenagem à separação de poderes.

Não faz nenhum sentido. Primeiro, a separação entre o poder executivo e poder judicial não é posta em causa pela existência do MdJ, havendo uma óbvia separação entre, por um lado, a atividade judicial e a gestão judicial, que constitucionalmente cabem exclusivamente aos tribunais e respetivos conselhos, e, por outro lado, a política da Justiça (cobertura judicial do território, equipamentos e pessoal, política criminal, custas judiciais, assistência judiciária, tutela das ordens profisssionais do setor, etc.), que cabe Governo, e pela qual ele responde politicamente perante a AR. Segundo, como mostra a lei orgânica do Governo, as competências do MdJ vão muito além da esfera dos tribunais e dos juízes (prisões, registos e notariado, Polícia Judiciária, reinserção social, etc.), sem esquecer a participação nacional na "formação" JAI do Conselho da UE. 

Em suma, uma proposta manifestamente irrefletida.

2. O que, pelo contrário, seria uma enorme violação da separação de poderes (desde logo entre o público e o privado) e da independência judicial (incluindo entre a judicatura e o Ministério Público) seria entregar a definição e execução da política de justiça, como propõe a SEDES, a um todo-poderoso "Conselho Superior Judiciário" centralizado, com representação conjunta de juízes, Ministério Público, advogados e oficiais de justiça... Só falta a Polícia Judiciária!

Uma verdadeira e despropositada salsada institucional.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Corporativismo (42): Alhos e bugalhos

1. Não tem nenhuma razão o advogado João Correia, quando acusa de inconstitucional a nova lei das ordens profissionais, no que respeita à Ordem dos Advogados, por alegadamente ofender o preceito constitucional sobre a proteção do patrocínio forense.

A verdade, porém, é que a nova lei não afeta em nada as imunidades do mandato forense, que existem independentemente de os adogados estarem, ou não, organizados em corporação pública, o que, aliás, sucede em muitos países. O tal preceito constitucional é totalmente irrelevante para a reforma da OA, em consequência da nova lei, pelo que decidiu bem o Tribunal Constitucional ao ignorar essa questão.

Trata-se, pura e simplesmente, de misturar alhos com bugalhos.

2. Enquanto ordem profissional, com funções de representação oficial da profissão e de regulação e disciplina profissional (por delegação do Estado), a OA em nada se distingue das demais, incluindo compartilhar, e de forma agravada, dos três grandes vícios de todas elas, designadamente: 

   - privilegiar descaramente a sua função sindical de defesa de interesses profissionais, em prejuízo da sua missão pública de supervisão e disciplina profissional, claramente negligenciada; 

   - cultivar aplicadamente a tradicional pulsão "malthusiana", restringindo abusivamente a liberdade de entrada na profissão (como se mostrou recentemente com a notícia de reprovação de mais de 80% dos candidatos no exame de acesso à profissão!); 

   -  defender ciosamente o amplo monopólio profissional para a prática de "atos próprios dos advogados", que nada justifica sejam exclusivos deles e vedados a outros profissionais (salvo o patrocínio judiciário), sendo uma forma privilegiada de restrição da concorrência na prestação de serviços profissionais.

Por conseguinte, não existe o mínimo fundamento para excecionar a AO da reforma da lei-quadro das ordens profissionais (aliás, modesta). Pelo contrário!

Adenda
Seguindo uma regra comum na profissão, também João Correia tenta desligar a Ordem dos Advogados do corporativismo do chamado Estado Novo, invocando que ela foi criada antes da instituição do regime corporativo. Mas é tarefa votada ao fracasso: ela foi criada logo em 1926 pela Ditadura militar que deu origem ao Estado Novo e foi inequivocamente integrada na organização corporativa desde o seu início, em setembro de 1933, através do diploma sobre os "sindicatos nacionais" (que abrangia os trabalhadores por conta de outrem e as "profissões livres"), o qual estabelecia explicitamente que «os sindicatos nacionais dos advogados, dos médicos e dos engenheiros podem adotar a denominação de "Ordens"». A função de representação e defesa profissional das ordens é de origem incontornavelmente corporativista. É feio tentar rever oportunisticamente a história.

Adenda 2
Acresce que os advogados (junto com os solicitadores) constituem o único caso de manutenção de um sistema privativo de segurança social de base profissional (a CPAS), aliás sem base constitucional, que é outro traço inequívoco do corporativismo "estado-novista".

Adenda 3
Nem de propósito para confirmar a persistência da memória corporativista na OA, vem a notícia de hoje, segundo a qual a respetiva Bastonária vai propor ao Governo a alteração do regime de segurança social dos advogados. Quando é que a OA se convence de que, como entidade pública administrativa que é, só pode atuar no âmbito das suas específicas atribuições legais e que entre elas não se conta, nem pode contar, a segurança social dos seus membros?

quarta-feira, 15 de março de 2023

Barbárie tauromáquica (14): Menos uma!

Eis que há mais uma praça de touros desativada e destinada a outro fim bem mais civilizado, ou seja, a hotel. Bela ideia!

Só é pena ser tão lento o ritmo de reforma dessas arenas de tortura animal para gáudio público...

terça-feira, 14 de março de 2023

Bloquices (25): Nem as pensam

O Bloco de Esqueda vai propor à AR que os advogados passem a ter opção entre manterem-se no seu regime privativo de segurança social (CPAS), ou migrarem para o sistema geral de segurança social - o que é um disparate.

Para além de os critérios de atribuição e de cálculo das pensões não ser idêntica nos dois regimes, essa opção não faz nenhum sentido em "sistemas de repartição", em que as pensões dos aposentados são pagas pelas contribuições de quem está no ativo. De facto: por um lado, as pensões de quem migrasse para o regime geral seriam pagas por este (ou seja, pelos trabalhadores em geral), apesar de as suas contribuições terem sido feitos para a CPAS? E como seriam financiadas as atuais e futuras pensões a cargo da CPAS, se uma percentagem importante dos advogados migrasse para o regime geral, deixando de contribuir para o fundo de pensões daquela?

falsas soluções fáceis...

sábado, 11 de março de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): Desvio de poder

1. Acentuando a sua compulsiva vertente de comentador político nesta entrevista dada à RTP e ao Público - em que, mais uma vez, falou sobre tudo e mais alguma coisa -, o Presidente da República permitiu-se fazer publicamente um balanço assaz crítico do primeiro ano do atual mandato governativo, assumindo o papel da oposição, o que manifestamente não cabe na sua função constitucional de "poder moderador", ou seja, de garante do regular funcionamento das instituições, de prevenção de abusos da maioria governamental e de proteção dos direitos da oposição. 

No nosso sistema político-constitucional, o julgamento político do Governo não cabe ao PR, mas sim ao parlamento, perante o qual aquele é politicamente responsável. Por maior que seja a liberdade de expressão política do PR, ela deve ser instrumental em relação às suas funções constitucionais, não devendo servir para usurpar ilegitimamente o papel da oposição e da Assembleia da República, afrontando a separação de poderes.

2. Mais grave ainda, sob o ponto de vista institucional, é a insistência de MRS no apoio à greve dos professores, cuja luta se permitiu qualificar explicitamente como «justa», alimentando a continuação da greve e indo ao ponto de "convidar" o Governo a passar a sua "linha vermelha" nas negociações em curso com os sindicatos, no que respeita à recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período de intervenção financeira externa.

Tudo é negativo nesta abusiva intervenção presidencial neste litígio sobre uma política sectorial: é incompreensível que ele intervenha publicamente num conflito entre o Governo e os sindicatos e tome partido pelos segundos contra aquele e é péssimo que, em vez de chamar a atenção para o privilégio profissional dos professores - uma carreira plana, sem verdadeira avaliação de desempenho, em que virtualmente todos podem chegar ao topo da carreira -, opte por intimar o Governo a abrir os cordões à bolsa, agravando a despesa corrente permanente e pondo em causa o equilíbrio das contas públicas.

Acontece, que, segundo a Constituição, é ao Governo, em exclusivo, que cabe a condução das políticas públicas, pelas quais é politicamente responsável perante a AR e os eleitores, bem como, no que respeita à responsabilidade orçamental, perante a União Europeia. É este quadro institucional de competência e de responsabilidade política que a indevida ingerência do PR lamentavelmente subverte.

Adenda
Compreende-se bem que o PS não queira abrir um litígio político com o PR, apesar da provocação deste. Mas bastava uma protocolar declaração de que "por princípio, o PS não comenta os comentários do PR". Ir ao ponto de considerar a entrevista presidencial como uma «análise equilibrada» é puro cinismo político (para dizer o menos...). 

Adenda 2
Os dirigentes do PSD que rejubilaram com a ingerência presidencial na área governativa considerá-la-iam aceitável, se fossem eles Governo?!

 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Não concordo (39): Contra a irresponsabilidade da ICAR

Discordo deste texto de Luís Aguiar-Conraria no Expresso de hoje, a propósito dos abusos de menores por padres

Apesar de, tal como ele, não ser crente, penso ter direito, não somente exigir ao Estado que não confira à Igreja e seus sacerdotes uma imunidade penal e civil, de que não podem gozar no Estado de direito constitucional que somos, mas também exigir algo à própria ICAR, como organização beneficiária de inúmeras "ajudas de Estado", também financiadas com os meus impostos - que ela assuma a responsabilidade institucional pelos danos físicos e morais causados às vítimas pelos seus clérigos, prevalecendo-se dessa qualidade, e que colabore lealmente na investigação e julgamento dos casos reportados pela comissão independente, em vez de tentar "lavar as mãos" do processo, como tem ensaiado fazer até agora.

Seria intolerável juntar a irresponsabilidade ao continuado encobrimento.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Aplauso (28): Levar a sério a independência dos juízes

Defendo desde sempre que os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência dos juízes não consentem que os juízes desempenham cargos políticos ou equiparados. 

Por isso, embora menos drástica, considero ser de apoiar esta proposta do CSM, no sentido de só admitir essa "migração política" dos juízes mediante uma licença sem vencimento e um período de "nojo" de três anos antes de retomar funções judiciais.

Quando a Constituição se aproxima do meio século de vida, é tempo de levar a sério a independência política dos juízes, pondo fim a esse reiterado desvio constitucional, em que irresponsavelmente governos e juízes têm incorrido.

Adenda
Só me parece que a proposta deveria igualmente proibir a nomeação de titulares de cargos políticos para funções judiciais, como sucedeu há anos quando a ministra da justiça de então, que era magistrada do MP, foi nomeada e tomou posse como juíza do STJ!


domingo, 5 de março de 2023

Não com os meus impostos (11): A habitação para todos a cargo do Estado?

1. A ministra da Habitação - que já como secretária de Estado se fizera notar, ao afirmar que o Estado devia garantir a todos o direito a habitar nas zonas mais ricas -, veio agora dizer que a habitação é um «direito de todos, cuja responsabilidade deve ser assumida pelo Estado» e que a política da habitação em curso «deve ficar no País (...) como o SNS ou a escola pública».

Trata-se, porém, de uma comparação despropositada, pois, enquanto o SNS e a escola pública (ambos previstos na Constituição com meios de assegurar os correspondentes direitos sociais) são serviços públicos prestacionais universais e gratuitos, a Constituição não prevê obviamente nenhum "serviço nacional de habitação", e a obrigação pública de garantir o direito à habitação é necessariamente supletiva, em relação a quem não consiga arranjar habitação decente pelos próprios meios. 
Trata-se, portanto, de misturar alhos com bugalhos, comparando arbitrariamente coisas não comparáveis.

2. A comparação é tanto mais infeliz, quanto é certo que tanto o SNS como a escola pública, além do seu crescente custo orçamental, encontram-se em processo de acentuada perda de cobertura social, mercê da fuga para o setor privado, o que já se não limita às camadas sociais de mais elevado rendimento, correndo ambos o risco de se virem a tornar, a prazo, reserva de quem não dispõe de meios de acesso à saúde e à escola privadas.

A pergunta que precisa de resposta é a de saber como é que vai ser financiada a pesada fatura orçamental permanente de uma política de habitação não estritamente supletiva. Aumentar a despesa pública estrutural não é seguramente uma boa ideia, quando se acabar o maná do PRR e quando a entrada dos países do leste (incluindo a Ucrânia) na UE fizer "secar" os próprios fundos de coesão para Portugal.

quinta-feira, 2 de março de 2023

SNS em questão (24): Os erros custam caro

1. O estudo em que se baseia esta notícia do Jornal de Notícias de ontem mostra como a redução do horário de trabalho na função pública das 40 para as 35 horas custou vários milhões de horas de trabalho por ano ao SNS e como as numerosas contratações posteriores mal deram para tapar esse enorme rombo. 

Nada que não tivesse podido ser antecipado na altura, bastando fazer contas elementares. Mas o facilitismo político e o peso da "constituency" eleitoral da função pública levaram a melhor.

2. Sabemos agora o impacto negativo dessa desafortunada decisão sobre o SNS. Não é dificil estimar também o seu elevado custo orçamental continuado em mais despesa pública.

Parece evidente que, em vez de gastar muitos milhões de euros a mais para compensar a perda de horário de trabalho, pagando mais pelo mesmo serviço, mais valera tê-los investido na subida da remuneração dos profissionais e na melhoria dos serviços, atenuando a baixa atratividade do SNS.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Corporativismo (41): A Intersindical das Ordens

1. Como AQUI se defendeu, o Tribunal Constitucional rejeitou as acusações de inconstitucionalidade contra a nova lei-quadro das ordens profissionais. É de saudar esta decisão, que vai permitir pôr alguma ordem na deriva corporativista e no crescente abuso e desvio de poder das ordens profissionais.

Mas a reação das ordens, que - em vez de acatarem e respeitarem o veredicto judicial, como autoridades públicas que são - ameaçam com uma rebelião e tranformam o CNOP numa espécie de Intersindical corporativa, mostra que o Governo vai precisar de um módico de coragem política para fazer cumprir a lei, desde já quanto à revisão dos estatutos das ordens.

2. Infelizmente, nem a nova lei nem o Presidente da República questionaram a raiz de todos os problemas, que é a impossível coabitação da defesa do interesse público na regulação e disciplina das profissões com a representação e defesa de interesses de grupo. A autorregulação e a autodisciplina profissional não impõem essa fatal promiscuidade, que acaba sempre por subjugar o primeiro aos segundos. 

Vai sendo tempo de pensar em separar as duas coisas. As autoridades públicas, entre as quais as ordens se contam, só devem servir para defender o interesse público, tal como definido pelo Estado, e não para representar e defender interesses profissionais, tarefa que, numa democracia liberal, só pode relevar da liberdade de associação e de ação coletiva privada.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Lisbon first (28): O Governo da capital

 

Benificiando de cerca de 2300 milhões de euros de fundos, o PRR é um maná para Lisboa.

Como se não bastasse ter as vantagens de alojar as instituições centrais do Estado - ministérios, tribunais centrais, institutos públicos, empresas públicas, museus, teatro nacional, ópera, etc. -, a capital beneficia também da generosidade do Estado no que respeita a despesas que, segundo normais regras de descentralização territorial, não lhe deviam caber, como o metropolitano, as ajudas aos transportes públicos urbanos, a habitação, etc. etc. Por isso, já não surpreende mais este privilégio na repartição do PRR.

Visto de longe, o Governo da República parece ser, antes de mais, o Governo da capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não dá para entender (30): Deriva corporativista

1. Depois de, ao longo destas décadas, ter sido campeão na proliferação e banalização das ordens profissionais (até há uma Ordem dos Economistas!), o PS vai mais longe, propondo de novo ressuscitar a Casa do Douro como "associação pública", ou seja, como entidade de representação profissional oficial, unicitária e obrigatória da viticultura da região demarcada do Douro, regressando a 1932, nos primórdios do corporativismo do Estado Novo, e ao arrepio do modelo de autorregulação interprofissioal vigente, com base em associações profissionais livres, aliás comum a todas as regiões demarcadas.

É evidente que, para ser congruente e respeitar o princípio da igualdade, o PS deveria propor também a recriação do antigo Grémio dos Exportadores e restaurar o modelo corporativo nas demais regiões vinícolas. Como o não faz, torna-se evidente que a recriação da Casa do Douro como organismo oficial obedece a uma motivação puramente regionalista e oportunista.

2. Aprofundando a minha posição anticorporativista, venho defendendo nos últimos anos (por exempo, AQUI e AQUI) que a representação oficial de certas profissões não é compatível com a democracia liberal, baseada na liberdade e no pluralismo de associação, na separação entre interesse público e interesses privados e na exclusiva dedicação da Administração pública à defesa do interesse público.

Mesmo não indo tão longe, creio ser consensual a ideia de que o monopólio de representação profissonal oficial só se pode justificar, caso ela seja imprescindível ou pelo menos necessária para o desempenho das tarefas públicas confiadas pelo Estado às entidades profissionais, no quadro da autorregulação e autodisciplina profissional, como se tem entendido, até agora, ser o caso das ordens profissionais.

É certo que, para tentar contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a uma anterior tentativa de  recriação da Casa do Douro como entidade pública associativa, a projeto do PS entrega-lhe agora o desempenho de algumas tarefas públicas, como o registo oficial dos viticultores e o respetivo cadastro predial, expropriadas ao Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro (IVDP), mas não se vê em que é a execução de tais tarefas puramente burocráticas exige a representação oficial, unicitária e obrigatória dos viticultores do Douro. Não existe nenhuma correlação orgânica entre as duas coisas.

A suposta causa não justifica a consequência.

3. Independentemente da questão constitucional, não vejo como é que politicamente esta deriva corporativista do PS pode ser compatível com as suas próprias fontes doutrinárias como partido social-democrata, designadamente o liberalismo, o republicanismo, a democracia e os direitos sociais. 

Nenhuma dessas fontes legitima a opção corporativista e várias delas a contrariam. Numa democracia liberal e republicana, a representação profissional releva da liberdade de associação e o Estado cuida exclusivamente do interesse público e não de interesses de grupo, por mais politicamente relevantes que estes sejam.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Não concordo (42): O Estado senhorio

1. Um aspeto negativo no pacote governamental de medidas para a habitação, que não tem merecido a devida atenção, consiste em fazer impender sobre o Estado central - e não sobre os municípios, como deveria ser -, as dimensões "prestacionais" do direito à habitação, incluindo a disponibilização de terrenos para construção, a oferta pública de casas para arrendamento, ou a tomada de arrendamento de casas privadas para subarrendamento. 

Com tais medidas, além de regulador do setor e da utilização de instrumentos fiscais e financeiros, o Estado torna-se também um grande senhorio nacional, arrendando, reparando casas, exigindo a cobrança de rendas, entrando em litígios judiciais, etc., etc.

Trata-se de uma visão hipercentralista e governamentalista, que contraria a solução municipalista que é adotada em geral noutros países.

2. Sucede, porém, que a Constituição não se limita a consagrar o princípio da descentralização territorial do poder público, mas também o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado só deve assumir as tarefas públicas que não possam ser bem desempenhadas pelas coletividades infraestaduais, designadamnte os municípios.

Ora, não existe nenhuma razão para pensar - aliás, tendo em conta os exemplos alheios - que os municípios, se dotados dos meios financeiros apropriados, não estariam em melhores condições, desde logo, a proximidade, para inventariar e responder às carências habitacionais nos seus munícipes.

Aparentemente, o Governo quis tirar rápido partido da "cornucópia" do PRR para fazer um "brilharete político", cooptando essa tarefa em susbtituição dos municípios. Além do princípio constitucional da subsidiariedade, escandalosamente ignorado, a outra vítima é a consistência do discurso do Governo e do PS em prol da descentralização

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (53): A guerra também é nossa

Nesta entrevista de hoje ao Público sobre a Guerra da Ucrânia, em que se mostrou inteiramente alinhado com o discurso bélico ocidental, o Primeiro-Ministro subscreveu também a posição de que só Kiev «tem legitimidade para definir qual é o momento e quais são os termos e as condições para negociar a paz», pelo que os aliados devem abster-se de interferir nesse processo.

Permito-me discordar desssa posição. Um ano depois de iniciado, o conflito é, cada vez mais, uma guerra também dos Estados Unidos e, especialmente, da UE: no fornecimento de armas e no treino da sua utilização, no acolhimento dos refugiados, no financiamento maciço do orçamento e da economia da Ucrânia, sem falar no custo astronómico da sua reconstrução pós-bélica. Quanto mais a guerra se prolonga, mais esses custos se elevam, à custa dos orçamentos e dos contribuintes europeus.

Ora, se a guerra também é nossa, porque a pagamos, não podemos deixar de ter uma palavra sobre o momento e as condições para lhe tentar pôr termo.

Adenda
Um leitor entende que a Europa está "tramada", porque o Presidente dos EUA «vai querer prolongar a guerra até às eleições presidenciais do próximo ano», utilizando-a como trunfo eleitoral; desta vez na guerra de Washington contra o velho inimigo do século passado, «não há soldados americanos a morrer» e os Estados Unidos até estão a ganhar economicamente com ela. Penso que tem razão.

Não concordo (41): O caso do arrendamento compulsivo

1. Independentemente da questão da sua desconformidade constitucional (sobre que me pronuncio abaixo), considero um erro político a proposta de arrendamento compulsivo das habitações "devolutas" ao Estado no novo "pacote" de políticas de habitação.

Por um lado, os custos da sua implementação - dificuldades práticas de aplicação e, previsivelmente, um elevado contencioso entre proprietários e Estado - podem vir a superar as suas discutíveis vantagens. Por outro lado, sendo a falta de confiança no Estado por parte de investidores e proprietários um dos principais fatores do défice de construção e de oferta no mercado de arrendamento, uma medida tão intrusiva e tão "ideológica" como esta só pode agravar essa desconfiança. Desde há muito se sabe que a insegurança e a imprevisibilidade quanto aos direitos de propriedade são fatais para o investimento.

Um provável tiro pela culatra, portanto.

2. Quanto à questão constitucional, não concordo nem com quem entende que se trata de uma «medida equiparada à expropriação» (e, logo, inconstitucional à partida, por falta de previsão na CRP), nem com quem defende, inversamente, que não há nenhum problema, em virtude da «função social da propriedade».

Não tenha dúvidas de que, embora o direito à habitação (tal como os demais direitos sociais) seja exigível apenas ao Estado (em sentido amplo) e não aos proprietários privados, a sua realização por aquele pode, porém, justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias de terceiros, como é o direito de propriedade e a liberdade contratual. Ponto é que se preencham os requisitos cosntitucionais da necessidade e da proporcionalidade das restrições em causa.

Ora, o que pode justamente questionar-se é saber se o mesmo objetivo - ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento - não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento.

Tendo a pensar que sim.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Economia social de mercado (5): Cogestão, porque não?

1. Estive hoje no lançamento deste livro em Coimbra por duas boas razões: porque prezo muito o autor e porque o tema me interessa, académica e politicamente.

Trata-se de uma abordagem acessível de um tema pouco debatido entre nós, a saber, a representação dos vários stakeholders, e não somente dos stockholders (acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades. A questão tem a ver sobretudo com a participação de representantes dos trabalhadores da empresa, como sucede há muitas décadas na Alemanha ("cogestão"), solução que entretanto se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos.

Em Portugal, porém, apesar de a própria Constituição impor a participação dos trabalhadores no governo das empresas públicas - o que, aliás, não é, em geral, cumprido -, o tema não tem entrado na agenda política nem sindical.

2. Desde há muito que defendo a participação dos trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão (por exemplo, AQUI, AQUI, AQUI e AQUI), considerando que essa solução faz todo o sentido no âmbito de uma "economia social de mercado", onde as empresas não podem limitar-se a "criar valor" para os acionistas. 
Tenho de constatar, porém, que o partido político que deveria lutar por essa reforma, que é o PS, não tem pegado nessa bandeira da social-democracia europeia - sendo essa uma das falhas que apontei no programa eleitoral do PS de 2022 -, e nem sequer a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos pelo partido ou a submeter à consideração do Conselho Económico e Social.
O facto é que não vejo explicação para tal opção política!

Adenda
Verifico que no seu projeto de revisão constitucional o PS propõe o alargamento do direito à representação dos trabalhadores aos órgãos sociais das empresas privadas, nos termos a definir por lei, embora sem adiantar nenhuma explicação para esta pequena revolução político-doutrinária. Resta saber se esta importante inovação vai merecer o investimento político necessário para recolher o apoio do PSD.