sábado, 31 de outubro de 2020

Pandemia (37): Estado de emergência soft

1. É acertada a estratégia decidida pelo Governo de adotar medidas mais restritivas somente para os municípios com maiores índices de contaminação (o que, no entanto, vai abranger 70% da população), pois isso vai obrigar os respetivos moradores  e empresas a esforçarem-se por inverter a situação, ao mesmo tempo que incentiva os demais concelhos a manterem a sua situação controlada.

As novas medidas são relativamente pouco intrusivas, quando comparadas com as do primeiro surto da pandemia, na primavera, e quando comparadas com as tomadas noutros países por estes dias, não se incluindo nelas, por exemplo, o recolher obrigatório à noite, que vários outros países decretaram (visando travar os eventos sociais noturnos e o seu elevado potencial de contaminação).

2. Poucas das novas medidas se traduzem verdadeiramente em suspensão de direitos - como será a proibição de mercados de levante e a obrigação de teletrabalho -, pelo que exigem a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República. 

As demais medidas são restrições mais ou menos severas a várias liberdades (liberdade de estabelecimento, liberdade de reunião, etc.), sem porém as afetarem no seu núcleo essencial, pelo que poderiam ser estabelecidas ou autorizadas por lei fora de estado de emergência. Mas a declaração deste, para além de comprometer o Presidente da República na sua adoção, afasta eventuais dúvidas sobre a sua constitucionalidade, como as que foram (infundadamente) suscitadas a propósito da restrição da liberdade de deslocação entre municípios no corrente fim de semana.

3. Torna-se evidente, porém, que o novo estado de emergência que aí vem fica bem longe da amplitude da suspensão de direitos fundamentais do estado de emergência em março e abril, que suspendeu várias liberdades, como a liberdade de deslocação (confinamento geral), a liberdade de estabelecimento em várias atividades (cafés, restaurantes, etc.), a liberdade de culto, etc.

Esperemos que não se tenha de ir mais além nas próximas semanas.

Adenda
Para se ter uma ideia da moderação das medidas agora tomadas em Portugal, basta comparar com as que ontem foram tomadas na Bélgica, que incluem encerramento de todos os estabelcimentos não essenciais (incluido resaurantes e cafés)e a limitação das visitas em casa a uma ou duas, etc., a somar ao recolher obrigatório, que já estava em vigor há dias.

Aplauso (18): Ilegitimidade judicial do Chega

1. Merece aplauso a decisão do Supremo Tribunal Administrativo que rejeitou a providência cautelar interposta pelo Chega contra a restrição da liberdade de deslocação (entre concelhos) neste fim de semana, em razão da ilegitimidade do requerente, pois os partidos políticos não são titulares de nenhum dos direitos alegadamente violados pela referida medida, que são direitos eminentemente individuais

Ora, se o Chega não tinha legitimidade para impugnar judicialmente a legalidade da Resolução do Conselho de Ministros em causa, também não tinha legitimidade para pedir a suspensão da sua execução.

2. Fica assim clarificado que, ao contrário de algumas associações representativas de certas categorias sociais, como os sindicatos, a quem lei confere legitimidade para a defesa dos interesses dos seus membros em juízo, tal não sucede com os partidos políticos, pelo que eles só podem defender em juízo os seus próprios interesses institucionais, o que não era o caso. 

Com esta clarificação judicial, corta-se cerce a tentativa que se desenhava, de certos partidos políticos instrumentalizarem a justiça ao serviço do seu combate político.

Só é pena que, assim, o STA não tenha podido conhecer do fundo da questão, a saber, sobre a alegada inconstitucionalidade de tal medida --, que, a meu ver, não existe.

Adenda
Porque é que a decisão ainda não está disponível no website do STA? É evidente que a decisão não interessa somente às partes nesse processo!

Adenda 2
Um leitor invoca um comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados que defende a inconstitucionalidade da medida. Não é única opinião nesse sentido, o que a não torna procedente. O que é lamentável é que a Ordem dos Advogados tenha emprestado o seu peso institucional a tal opinião.

Adenda 3
A grande novidade de hoje é que noutro processo suscitado por uma advogada sobre o mesmo assunto (PROC.º Nº 122/20.1BALSB), o STA conheceu do fundo da questão e indeferiu a suspensão da execução da medida, rejeitando todos os argumentos de inconstitucionalidade, desde a alegada falta de fundamento legal à invocada falta de proporcionalidade. Ficam assim validados todos os meus argumentos neste post sobre o assunto (incluindo o lamentável comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados referido na Adenda anterior)!

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

White House 2020 (3): Anti-Trump coalition

 

Of course!

«In this election America faces a fateful choice. At stake is the nature of its democracy. One path leads to a fractious, personalised rule, dominated by a head of state who scorns decency and truth. The other leads to something better—something truer to what this newspaper sees as the values that originally made America an inspiration around the world.»

Saber quem vai ocupar a Casa Branca também interessa deste lado do Atlântico. E é notório que, pelo voto dos europeus, Trump não chegaria aos 30%!

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Lisbon first (24): Até o "Público"?!

Não é só o Estado que dá primazia a Lisboa. Na sua edição de hoje, o Público traz uma peça sobre o enquadramento jurídico das medidas antiCovid, tendo ouvido cinco constitucionalistas. Não por acaso, todos são de universidades de Lisboa.

Sucede que não se trata de um caso isolado, mas de uma prática arreigada, com que até um jornal como o Público alinha, como se não houvesse juristas nas Universidades do Minho, do Porto ou de Coimbra, só para citar as escolas públicas.

Decididamente, o atavismo centralista e o "lisboacentrismo" contaminam tudo e todos!

Pandemia (36): "Estado de crise sanitária"

[Fonte da Imagem AQUI]

1. Em relação ao post anterior, um leitor bem informado pergunta se não é «excessivo recorrer ao estado de emergência constitucional para decretar o recolher obrigatório», visto tratar-se ainda de uma restrição da liberdade de movimentos (durante a noite) e não da sua suspensão, como sucedeu na primavera, com o confinamento geral, pelo que bastaria uma lei geral a autorizar tal restrição.

Poupar-se-ia assim a intervenção do Presidente da República e o pesado e demorado procedimento de declaração do estado de emergência, dando ao Governo maior flexibilidade no recurso a restrições aos direitos fundamentais afetados. 

O problema é que tal lei não existe. Quando as leis gerais existentes não chegam (como a Lei de Bases da Proteção Civil ou a Lei de Vigilância em Saúde Pública), o Governo e a AR têm preferido recorrer a soluções legislativas ad hoc, como a recente lei sobre o uso obrigatório de máscaras. 

2. Sufrago, porém, a ideia sugerida desde o início por alguns observadores e constitucionalistas (e hoje reiterada no Público) de que a melhor solução seria introduzir na atual LVSP a figura do estado de crise sanitária (expressão que prefiro à de "estado de emergência, ou de calamidade, sanitária", como alguns propõem, que se presta a confusão com figuras já existentes).

Além de afastar as dúvidas de constitucionalidade suscitadas contra a aplicação extensiva da LBPC a estas situações de proteção sanitária, uma tal solução permitiria (i) definir mais rigorosamente essa nova figura, (ii) regular o modo e o procedimento da declaração do estado de crise (pareceres prévios, etc.), a sua duração e renovação e, sobretudo, (iii) definir o catálogo de medidas restritivas aplicáveis, incluindo restrições à liberdade de circulação, de reunião e de manifestação, cercas sanitárias, recolher obrigatório, restrição a atividades económicas, restrição à greve em serviços de saúde, vacinação obrigatória e obrigação de tratamento, uso obrigatório de meios de proteção, etc.

A segurança sanitária não se dá bem com insegurança jurídica.

É altura de equacionar essa solução, pois, com a segunda vaga, impõem-se medidas mais severas de proteção. E, como parece evidente, a pandemia veio para ficar e também não promete ser a última crise sanitária.

Adenda
Um leitor acrescenta que é necessária uma resposta integrada, e não medidas fragmentárias, ad hoc. «Fica a ideia de que os meses de verão foram perdidos sem fazer o planeamento do outono/inverno.»

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Pandemia (35): Degradação célere da situação

(Origem: Expresso)
1. É de esperar que desta reunião governamental extraordinária saiam novas medidas capazes de enfrentar a segunda vaga da pandemia, que em poucas semanas disparou, em número de infeções, de internamentos e de mortos (gráfico acima), voltando a instalar um clima de medo e de ansiedade nos setores da população mais vulneráveis.
Não vejo como é que se pode adiar muito tempo uma nova declaração de estado de emergência, para permitir, como noutros países, declarar o recolher obrigatório em algumas zonas e restrições mais duras aos ajuntamentos, à abertura de estabelecimentos e à liberdade de deslocação.
Como já escrevi noutra altura, onde a disciplina e a responsabilidade cívica falecem, resta o arrocho da proibição ou da imposição legal.

2. O SNS começa a dar sinais de esgotamento em alguns hospitais e não é a contratação apressada de mais pessoal, como pretendia o BE, que vai resolver a situação, tanto mais que as baixas por doença (real ou fictícia) estão a aumentar desmesuradamente, sem que, aliás, ninguém indague porquê. Entretanto, acumula-se o adiamento de consultas, de exames e de cirurgias relativamente a outras doenças, incluindo as mais graves, como as do foro oncológico.
É evidente que o SNS não está, nem poderia estar preparado, para picos excecionais de procura desta natureza, que tornam mais evidente o seu conhecido défice de eficiência e de produtividade, que a falta de avaliação de desempenho do pessoal, dos serviços e da gestão alimenta. A lamentável redução do horário de trabalho para as 35 horas há quatro anos, o persistente mathusianismo profissional na formação de médicos e a acumualção e conflitos de interesse entre o público e o privado, sempre em prejuízo daquele, só agravam as desvantagens do SNS.
E não é so a despejar dinheiro sobre ele que as coisas melhoram.

Adenda
No post seguinte defendo uma alternativa ao estado de emergência.

Bloquices (13): O fim de uma perigosa ilusão

O cinismo oportunista com que o Bloco decidiu votar contra o orçamento, apesar de todas as importantes concessões que obtivera do Governo do PS, não revela somente a incontornável leviandade política da agremiação esquerdista. Ao mostrar que não é "tábua de sustentar prego" e que pode convergir friamente com a direita num momento difícil do governo socialista (e do País), o Bloco desfaz num momento a ilusão, que muitos alimentaram, em 2015, do advento de uma nova era de alianças privilegiadas do PS com as forças à sua esquerda no parlamento, para além do tradicional "arco da governação".

Tudo indica que o namoro de quatro anos, em tempos de "vacas gordas", deu em divórcio litigioso e insidioso, quando a crise começou a morder a sério. Aos que, como o autor destas linhas, nunca acreditaram na metamorfose do Bloco em força política de vocação governamental, por incompatível com o seu ADN hostil à economia de mercado e à responsabilidade orçamental, só lhes resta comentar: «está-lhe na massa do sangue». QED!

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo o Bloco rejeitado qualquer acordo para viabilizar o orçamento e tendo mesmo decidido votar contra, não se impõe que o Governo retire do orçamento todas as concessões que tinha feito aos bloquistas, sob pena de benefício ao infrator. Tem, toda a razão!

Adenda (2)
Um leitor benévolo diz que ainda resta a «atitude responsável e [a] seriedade negocial» do PCP. É certo, mas há que observar que (i) os comunistas já declararam reiteradamente que excluem qualquer acordo de legislatura com os socialistas; (ii) não basta a sua abstenção para sustentar o Governo, como se verifica nesta ocorrência da votação do orçamento; e, sobretudo (iii), o PCP parece ter entrado numa fase mais acentuada de declínio, como mostra a perda do seu deputado no parlamento dos Açores e a minúscula previsão de votação no seu candidato nas eleições presidenciais. Para piorar o panorama, há indícios de que o PCP pode perder a sua posição no ranking partidário para o Chega, o que seria uma humilhação... 

Adenda (3)
Outro leitor, referindo-se à primeira adenda, acima, diz que seria uma «birra do PS», se este retirasse as concessões que já tinha feito ao BE e que até já constam da proposta de orçamento apresentada à AR. Discordo: se uma parte oferece certas vantagens a outra para chegar a um acordo e a segunda não aceita o acordo, então a primeira tem todo o direito de retirar a sua oferta. A meu ver, se o acordo proposto já era mau, manter as concessões sem acordo é péssimo.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Praça da República (39): Razões para inquietação

Parece evidente que as coisas não correm pelo melhor ao PS nos tempos políticos que correm. 

Há, desde logo, o novo surto descontrolado da pandemia e a dificuldade do Governo em responder eficazmente, fazendo ampliar o sentimento de insegurança na opinião pública; veio depois o rompimento belicoso do BE na questão do orçamento, parecendo pôr um fim precipitado ao ensaio de aliança política que durava desde 2015, no que pode ser o dobre de finados pela aposta do PS em acordos à sua esquerda; soma-se, por último, o revés eleitoral dos Açores (apesar dos 39% de votos), que pode levar à perda do poder para um governo de "geringonça" à direita, interrompendo um quarto de século de hegemonia socialista nas ilhas. 

A resiliência dos grandes partidos (e das suas lideranças) testa-se nas conjunturas difíceis. Vamos a ver como é que o PS, e António Costa, dão a volta por cima...

[O título foi substituído]

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Vontade popular (11): Equação governativa complicada

1. As eleições para o parlamento regional dos Açores de ontem traduziram-se numa vitória por maioria relativa do PS (menos de 40%), o que é um revés eleitoral, pois tem menos cinco deputados e perdeu a maioria absoluta que tinha. Aliás, também não há hipótese de uma coligação maioritária à esquerda, pois a soma do BE não atinge os 29 deputados necessários, nem com uma eventual ajuda do PAN.

Já o conjunto da direita (PSD+CDS+CHEGA+PPM+IL) perfaz uma maioria parlamentar (e mais 6pp nos votos do que as esquerdas!), a qual, porém, não se deve concretizar numa coligação de governo, dada a sua inconsistência, nomeadamente por causa do Chega.

2. Em todo o caso, estas eleições resultaram numa acentuada fragmentação do parlamento açoriano, que, apesar da saída da CDU (outro revés), passa a ter nada menos de oito partidos representados, com três novos partidos a entrar nas bancadas do parlamento da Horta (Chega, PAN e IL). 

Com efeito, dois partidos conseguem representação parlamentar com menos de 2% dos votos (PAN e IL) e outro partido (PPM) consegue dois deputados (ou seja 3,5%) com menos de 2,5% dois votos, o que não deixa de ser extraordinário em termos de "majoração" eleitoral às avessas
[Revisto]

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo sido o PS a ganhar as eleições, o representante da República pode nomear um eventual Governo do PSD com o apoio de todas as direitas. Como sempre defendi numa situação semelhante, ao contrário (em 2015), o partido que ganhou as eleições (o PS) deve ser chamado a constituir governo, mas se este for rejeitado no parlamento regional pela união das direitas, então deve ser o PSD chamado a formar governo, se conseguir o apoio parlamentar de todas as direitas. É assim que funciona a democracia parlamentar: quem ganha eleições sem maioria, arrisca-se a ir para a oposição. Divertido vai ser ver os partidos que anatemizaram a solução de 2015 como "usurpação do poder" recorrerem agora a ela.

Adenda (2)
O atual sistema eleitoral açoriano apresenta duas características que facilitam a fragmentação parlamentar e dificultam a governabilidade: (i) círculos eleitorais muitos pequenos (como o Corvo e as Flores), que permitem eleger deputados com um número de votos ínfimo e (ii) excessiva proporcionalidade permitida pelo "círculo de compensação".

Adenda (3)
Um leitor acrescenta, com razão, que também seria divertido ver agora o PS a atacar, em nome da "ilegitimidade" política, uma solução de governo de que beneficiou em 2015. Mas espero que isso não suceda...

Adenda (4)
É claro que o PSD não pode aceitar estas condições do Chega para viabilizar uma "geringonça" de Direita nos Açores. Sendo assim, se a direita votasse a rejeição de um governo minoritário do PS e depois também não conseguisse formar governo, só restaria o recurso a novas eleições. O problema é que também nos Açores existe o impedimento de dissolução do parlamento regional nos seis meses seguintes à sua eleição e não faz sentido manter o atual governo em funções de gestão durante esse tempo todo...

domingo, 25 de outubro de 2020

Pobre Língua (21): Mudar para o erro

Num programa de TV hoje sobre as eleições açorianas, uma comentadora, obviamente com educação superior, depois de ter dito, corretamente, que certo partido "teria elegido" deputados, pediu desculpa e mudou, erradamente, para "teria eleito"!

A senhora esqueceu obviamente que quando um verbo tem duas formas de particípio passado, se deve usar a forma regular ("elegido") com o verbo ter (como era o caso) e a forma irregular ("eleito") com o verbo ser.

Se as pessoas da elite falam assim, tão desmazeladamente, só resta esperar o pior..

Barbárie tauromáquica (10): É desta?


É hoje que vários partidos políticos, entre os quais o PAN, vão anunciar as suas posições quanto ao orçamento do Estado para 2021.
Tornou-se prática política, no caso de governos minoritários, como é o caso, os partidos da oposição colocarem condições para votarem a favor orçamento (ou não o rejeitarem), não somente de natureza financeira, mas também outras condições políticas. E não há nada de ilícito nisso.
Eu, se fosse o PAN, insistia desta vez na expressa proibição das transmissão de touradas em horário diurno pelas televisões de sinal aberto, fazendo aplicar explicitamente ao caso a norma geral da lei da televisão, que só admite «a emissão televisiva de quaisquer (...) programas suscetíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade de crianças e jovens» entre as 24:00 e as 6:00, exigindo também que as emissões sejam acompanhadas «da difusão permanente de um identificativo visual apropriado»
Será desta que acaba a transmissão ao vivo, urbi et orbi, desse infame espetáculo?

Adenda
Um leitor argumenta que a lei do orçamento não deve ser um "albergue espanhol", em que tudo cabe, incluindo normas que nada têm a ver com o orçamento, ou seja, com as receitas e despesas do Estado. Não posso concordar mais, podendo dizer que discordo dos chamados "cavaleiros orçamentais" desde o início, há décadas, e lamento que o Tribunal Constitucional não tenha posto cobro a esse abuso inconstitucional da lei do orçamento. Mas isso em nada prejudica a "condicionalidade política" da votação do orçamento por parte dos partidos da oposição, forçando compromissos políticos precisos e calendarizados do Governo.

Pandemia (34): É inconstitucional a proibição de circulação transmunicipal?

1. Não sufrago a opinião daqueles que entendem ser inconstitucional a proibição de circulação para além dos limites do concelho de cada um no próximo fim de semana, medida destinada a evitar os grandes movimentos e ajuntamentos do "dia de finados". 
Que a restrição da liberdade de deslocação existe, é óbvio. Já não me parece que ela seja constitucionalmente inadmissível.

2. Em primeiro lugar, a medida governamental tem cobertura legal na Lei da Proteção Civil, na interpretação ampla que dela tem prevalecido, quando estabelece que o "estado de calamidade" pode abranger a «fixação, por razões de segurança dos próprios (...), de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, (...) ou veículos»;
Em segundo lugar, a medida não parece descabida nem desproporcionada. Por um lado, não se trata da "suspensão" da liberdade de circulação (o que impediria adotá-la fora do caso de estado de exceção constitucional), visto que a restrição não é absoluta, abrangendo somente as saídas para fora do município e estando em vigor num curto período de tempo. Por outro lado, face ao ressurgimento da vaga de infeções em curso, parece-me que se justifica a medida, sendo apropriada para tentar travar aquilo que um especialista já qualificou como «uma transmissão descontrolada do vírus na comunidade»

3. Os valores constitucionais que estão em causa - controlar o risco acrescido para saúde pública e para a vida das pessoas - é muito mais importante do que o incómodo da restrição limitada e temporária da liberdade de deslocação.
É claro que a medida poderia ser mais moderada, admitindo, por exemplo, a deslocação a concelhos limítrofes. Mas é muito provável que o seu alcance ficasse assaz enfraquecido, reduzindo o seu impacto positivo.
Em situações de incerteza como as da pandemia, tem de admitir-se uma maior margem de liberdade dos decisores políticos quanto à ponderação dos bens e valores constitucionais em causa na restrição de direitos fundamentais, que os tribunais, a começar pelo Tribunal Constitucional, devem respeitar.

Adenda
Um leitor argumenta que, na falta de autorização constitucional explícita para restrição da liberdade de circulação, as restrições legais serão inconstitucionais, salvo em estado de emergência. Penso, porém, de acordo com a doutrina constitucional prevalecente (perfilhada na Constituição Anotada de que sou coautor, na nota VII ao art. 18º da CRP), que essa regra deve ser objeto de interpretação restritiva e que a autorização constitucional de restrição não pode ser exigível quando se trate de gerir conflitos entre direitos fundamentais (como neste caso entre a liberdade de circulação e o direito à saúde de outros), que só podem ser dirimidos pela restrição de um deles ou de ambos. De resto, é frequente essa situação de colisão entre direitos, como, por exemplo, entre o direito ao bom nome e reputação e a liberdade de informação e de imprensa, em relação aos quais a Constituição não prevê restrições, mas que têm de ser admitidas para solucionar o litígio entre eles.

sábado, 24 de outubro de 2020

Ai, Portugal (6): O desastre da justiça administrativa

1. O recente Relatório da Comissão de Justiça do Conselho da Europa, revela que os tribunais em Portugal apresentam agora tempos de decisão processual próximos da mediana do conjunto dos países europeus na justiça cível e penal, sendo, porém, escandalosamente mais morosos no caso da justiça administrativa

De facto, em Portugal os processos nos tribunais administrativos demoram na 1ª instância uma média de 927 dias (mais de dois anos e meio!), o que compara miseravelmente com a mediana europeia de 240 dias (mais 380%). A diferença é ainda maior no caso da 2ª instância (1015 dias contra 209!). 

Na realidade, o panorama é ainda mais preocupante do que esses números indicam, pois em Portugal, (i) uma parte dos casos do contencioso administrativo corre nos tribunais judiciais (por exemplo, as questões de regulação económica e de concorrência) e (ii) muitos casos são desviados para a arbitragem administrativa, dada justamente a demora dos tribunais.

2. Torna-se  evidente que em Portugal os cidadãos e as empresas não têm assegurado o seu direito a uma justiça em tempo útil nas suas pendências contra o Estado, com a injustiça e os custos inerentes!

A verdade é que a justiça administrativa nunca recuperou da sobrecarga trazida pela reforma dos tribunais e do processo administrativo de 2002, que aumentou os mecanismos processuais de (hiper)proteção dos particulares contra a Administração, fazendo crescer a litigância e congestionando os tribunais.

Todavia, como se vê, a proteção processual acrescida redunda em proteção judicial reduzida, levando os interessados com mais posses a optar pela arbitragem dos seus litígios administrativos, apesar da sua maior onerosidade.

Adenda
Outros dados do Relatório: Portugal tem muito mais advogados em função da população do que os demais países; as custas são muita mais elevadas; os juízes e o MP têm melhores remunerações, sobretudo nos escalões superiores; o recurso a meios de ICT está entre os melhores.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Lisbon first (22): Eles comem tudo!

1. Eis a manchete do Jornal de Notícias de ontem: dois mil milhões de euros do plano nacional de investimentos só para os metropolitanos de Lisboa e do Porto, mais para o primeiro do que para o segundo.

O Estado insiste em fazer o País todo pagar os transportes urbanos das duas principais cidades, que deviam ser de responsabilidade municipal ou intermunicipal, segundo um elementar princípio de descentralização territorial e de "federalismo fiscal". Num Estado territorialmente descentralizado, aliás por imposição constitucional,  não faz sentido que seja o Governo central a gerir e a financiar linhas de metropolitano.

Mas é evidente que é nessas duas cidades que se concentram os eleitores (somente à sua conta, elegem mais do que 80 deputados) e que no próximo ano vai haver eleições municipais.

2. Enquanto a cornucópia do orçamento despeja investimento público do Estado nas duas principais cidades em tarefas que deviam ser responsabilidade local, Coimbra, por exemplo, continua a ver adiados alguns investimentos estruturais, da responsabilidade do Estado, em alguns casos com décadasde atraso, como a nova estação ferroviária, a nova Maternidade, a nova Penitenciária e o novo tribunal. O que abunda para as cidades favoritas do poder escasseia para as demais.

O que surpreende é o gritante silêncio dos deputados por Coimbra e do próprio município de Coimbra perante esta iniquidade na repartição territorial do investimento público do Estado. A solidariedade partidária não pode justificar tudo.

[revisto]

Adenda
Um leitor argumenta que Coimbra também beneficia do financiamento do Estado para o Metrobus.  Mas não é a mesma coisa. O "Sistema de Mobilidade do Mondego" consiste essencialmente no reaproveitamento do antigo ramal ferroviário da Lousã, que era uma responsabilidade do Estado, tal como as demais linhas férreas. O unico acréscimo, que representa uma pequena fração do investimento, é uma ligação dessa linha aos Hospitais da Universidade, que, a meu ver, deveria ser financiada pela município de Coimbra, por se tratar de transporte urbano de âmbito local. Nada de comum, portanto, com o gigantesco financiamento da rede do metropolitano de Lisboa e do Porto pelo Estado.

Adenda (2) 
Um leitor menos benévolo diz que não é somente o peso eleitoral dos Lisboa e do Porto que justifica os seus privilegios quanto ao investimento público, mas também o facto de os ministros e restantes membros do Governo serem quase exclusivamente oriundos dessas duas cidades. 

Adenda (3) 
Comentário de um leitor:«O nosso País já está de facto regionalizado. O país DE PRIMEIRA tem duas regiões, a área metropolitana de Lisboa e a área metropolitana do Porto, e depois há uma terceira região, que pode designar-se apropriadamente O RESTO do país 
 Nem mais!

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Praça da República (38): Onde a democracia falha em Portugal

1. No debate em que ontem participei com Alexandre Quintanilha e com Paulo Trigo Pereira, a propósito do livro do último sobre a democracia em Portugal (um livro de leitura obrigatória para quem se interesse pelo presente e futuro do regime democrático em Portugal), defendi que, embora Portugal se encontre muito bem posicionado nos rankings internacionais de qualidade da democracia (como os do Economist e da V-Democracy), há várias falhas que importa enfrentar, porque afetam o seu futuro. 
Entre esses falhas - défice de participação política (abstenção eleitoral, pouca intervenção nos mecanismos de democracia participativa), défice de cultura cívica e política (iliteracia cívica e irresponsabilidade política) e mau desempenho económico -, sublinhei a gravidade da última, pois, a não ser enfrentada, ela põe em causa a capacidade de sustentação do Estado social e, em última instância, a estabilidade da democracia liberal.

2. Com efeito, Portugal padece de uma prolongada situação de crescimento económico medíocre, resultado de baixa eficiência económica (produtividade) e insuficiente competitividade externa, que se reflete em desemprego elevado e emprego de baixa qualidade, baixos sálarios, fraco crescimento do rendimento pessoal, insuficiência de recursos fiscais (apesar dos impostos elevados), carência no financiamento dos serviços públicos, reduzido nível de investimento privado e público, elevado endividamento público, desequilíbrio e endividamento externo,.
Não admira, portanto, que Portugal vá descendo continuamente no ranking económico dos países da União Europeia, sendo regularmente ultrapassado pelos países do Leste, que, quando entraram na União, há menos de duas décadas, estavam bastante atrás de Portugal. 
Vamos caindo, irresponsavelmente, para o fundo da tabela.

3. Este mau desempenho económico estrutural tem a ver antes de mais com políticas públicas erradas (nomeadamente políticas económicas, orçamentais e fiscais), facilitadas por fatores políticos adversos (governos minoritários, partidos politicamente inconsistentes, incapacidade de negociação e de coligação interpartidária, falta de consenso sobre estratégia de longo prazo para o país), para os quais não tem havido a necessária resposta institucional e cultural.
Mas também contam muitos as falhas culturais ao nível individual e coletivo, por exemplo na preferência do gasto sobre a poupança, do endividamento sobre a prudência financeira, do consumo sobre o investimento, do imediato sobre o futuro, da dependência do Estado sobre a iniciativa e responsabilidade individual. 
Assim não vamos lá!

Pobre Língua (20): Portenglish

Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e o palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo.

Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.

+Europa (31): Soberania económica da União

Obrigatório ler este relatório do European Council for Foreign Relations sobre a necessidade de defender a soberania económica da UE contra ações agressivas de outras potências económicas, nomeadamente os Estados Unidos e a China.

Definitivamente adquirido o conceito de soberania da União, introduzido pelo Presidente Macron e logo adotado pela Chancelerina Merkel, ele é especialmente útil no esfera da relações económicas internacionais, quer pelo facto de a União ser uma efetiva potência económica, quer por a economia da União depender muito do comércio internacional e do investimento direto estrangeiro.

Por isso, a União tem não apenas de adotar políticas assertivas nas suas relações económicas internacionais, mas também de se munir dos meios de defender, se necessário agressivamente, os seus interesses económicos no confronto com atitudes hostis de outras potências económicas

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Retratos de Portugal (2): Onde está a inspeção?

 

Estes dois contentores permanecem há anos abandonados, deixados nas obras de construção ou reparação da ponte sob a qual se encontram (sobre o Rio Cértima, no limite entre os concelhos de Águeda e de Oliveira do Bairro).

Obviamente, faltou inspeção final à obra antes da sua entrega, ou a inspeção "esqueceu-se" de ver o que ficava para trás. É um dos cancros do País: a inexistência ou ineficácia das inspeções de obras públicas.

Adenda
Ainda recentemente tive de protestar duas vezes junto da CM de Coimbra, por causa da obra de remodelação dos passeios da minha rua, cujos trabalhos tinham ficado inacabados ou com manifestas deficiências. A inspeção não tinha passado por lá.

Adenda 2
Comentário de um leitor:«O problema é que não poucas vezes a inspeção é comprada pelos empreiteiros para não ir ou não ver...». Pois, por isso é que convém fazer regularmente avaliação externa dos serviços de inspeção, o que, infelizmente, não está nos nossos hábitos administrativos. De resto, o problema não se coloca somente na inspeção de obras públicas, mas sim em todos os tipos de inspeção (obras particulares, tributária, ambiental, transportes, etc.).

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Debaixo do tapete (1): As carreiras especiais na função pública

Na sua entrevista ao Jornal de Negócios de hoje (acesso reservado a assinantes), a Ministra da Reforma do Estado anunciou a intenção de tornar mais céleres as progressões nas carreiras do regime geral da função pública, que dependem de avaliação de desempenho. O que não disse (nem sequer foi perguntada pelos jornalistas!) foi o que pretende fazer com as carreiras especiais, em que as progressões são feitas essencialmente pelo decurso do tempo, o que, além de um privilégio injustificável dentro da função pública, é insustentável a prazo em termos orçamentais, por causa do grande volume de funcionários em causa.

Mas é assim: é fatal a nossa disponibilidade para colocar debaixo do tapete as questões difíceis e de empurrá-las para diante, indefinidamente

Praça da República (37): O risco de declínio da democracia e os meios de o conjurar

 

Vai ser publicamente lançado amanhã o livro de Paulo Trigo Pereira intitulado «Democracia em Portugal: Como evitar o seu declinio»

O autor, conhecido professor universitário e militante de várias causas cívicas, reflete sobre a sua recente experiência como deputado à Assembleia da República e procura tirar lições quer quanto ao desempenho da democracia parlamentar, quer quanto aos remédios para o melhorar.

A convite do autor, vou ter o gosto de apresentar o referido livro. É amanha, no ISEG em Lisboa.

Pandemia (33): A falta de civismo e o arrocho

O  anúncio da proposta de lei do Governo para tornar obrigatória a instalação da app StayawayCovid fez disparar tanto o número de instalações (o que é bom) como as manifestações públicas contra a obrigatoriedade (o que é mau).

Mas isto permite duas conclusões, nenhuma delas positiva(i) por um lado, os portugueses ligam pouco às obrigações cívicas, mesmo quando estas são flagrantes, só as cumprindo quando elas se tornam legalmente obrigatórias - o que quer dizer que só o arrocho legal substitui o défice de civismo; (ii) por outro lado, há sempre, mesmo entre intelectuais de esquerda, aqueles que invocam a liberdade em abstrato para se furtarem ao dever de não contribuir para a morte de outros, com argumentos que vão desde a iliteracia tecnológica, passando pela (inexistente) ameaça à privacidade da aplicação em causa, até ao pedestre cabotinismo dos negacionistas da COVID.

Lamentável!

Adenda
Lamentável é também que a Ministra da Reforma do Estado se tenha recusado, numa entrevista ao Jornal de Negócios, a responder à pergunta sobre se tem app instalada, invocando a natureza "privada" da questão. Como?! Então, sendo um óbvio dever cívico, os membros do Governo não deviam dar o exemplo público? E tendo o Govemo proposto a sua obrigatoriedade, não deviam os membros do Governo mostrar que a medida é justa?

Não dá para entender (21): Escolas privadas financiadas pelo Estado

Apesar da forte redução do número de escolas privadas financiadas pelo Estado desde 2015 (como mostra o gráfico junto, retirado Público de hoje), mercê das medidas então tomadas - que pararam a vasta  parasitagem à custa do orçamento vinda do passado -, ainda há um número significativo de escolas privadas que beneficiam de financiamento público, no montante de cerca de 42 milhões de euros por ano.

Ora, a obrigação do Estado de dispor dos estabelecimentos de ensino públicos necessários para cobrir toda a população escolar está inscrita na Cosntituição desde 1976, ou seja, vai para meio século. Como se compreende então que, passado este tempo todo e o enorme aumento de dotações orçamentais e do número de professores, ainda haja tantas turmas (mais de 500) sem frequência em escola pública?!

Há um nome para isso no Direito constitucional: inconstitucionalidade por omisssão, ou seja, falta ou insuficiência das medidas necessárias para cumprir as "obrigações de resultado" inscritas na Constituição.

domingo, 18 de outubro de 2020

Retratos de Portugal (1): A pegada de plástico

Eis o que muitas vezes fica de pique-niques ao ar livre no nosso País (foto de hoje numa mata da zona da Pateira de Fermentelos, concelho de Águeda). 

Infelizmente, não é uma imagem insólita, pelo contrário. A falta que faz o ensino de educação cívica em pequenos e a responsabilidade cívica em adultos!...

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Corporativismo (17): Usurpação de funçoes

1. Há uma manifesta confusão nesta peça sobre o poder de fiscalização das ordens profissionais.  

Começando pelo equivocado título da peça, é inquestionável que o Estado goza do poder de fiscalização sobre as ordens, sendo a lei das ordens explícita em reconhecer-lhe uma tutela inspetiva geral, para além de uma tutela preventiva sobre alguns poderes específicos das ordens. 

Nem podia deixar de ser assim, dado que as ordens exercem poderes públicos de regulação e disciplina profissional conferidos pelo Estado, que podem afetar a liberdade profissional e a concorrência nos serviços profissionais, além dos direitos dos utentes, pelo que aquele deve ter o poder de velar por que elas não se desviem do exercício ds suas funções legais.

2. Quanto ao poder de fiscalização das ordens, é igualmente evidente que, como instituições oficiais de autorregulação e de autodisciplina profissional, elas têm, em substituição do Estado, o poder (e a obrigação) de fiscalizar e sancionar, se for caso disso, a violação dos deveres legais e deontológicos dos seus membros, que em geral lesa os utentes dos serviços profissionais. Isso inclui também um poder de inspeção sobre os escritórios e consultórios dos profissionais liberais.

Infelizmente várias ordens não exercem, ou exercem muito mal, tal poder/obrigação de fiscalização e de disciplina profissional.

A lei geral das ordens profissionais de 2103 confere-lhes o poder de designar um provedor dos utentes, com a missão a examinar e avaliar as queixas dos utentes dos serviços prossisdinais, podendo recomendar soluções e acionar a ação disciplinar. Mas, muito sigiticativemente, a maior parte das ordens preferiram não ter provedor e algumas que o previram nos seus estatutos não o nomearam.

Assim se vê que as ordens não conferem qualquer prioridade à defesa dos utentes contra os abusos deontológicos dos seus membros.


3. Diferente é o caso de um pretenso poder de fiscalização das ordens sobre as instituições (públicas ou privadas) que empregam ou onde atuam os seus membros, poder que vários dos bastonários reivindicam na referida peça jornalística, citando a recente auditoria ao lar de Monsaraz pela Ordem dos Médicos. 

Mas trata-se de uma pretensão sem qualquer fundamento. É certo que as ordens têm por missão a defesa do "interesse geral da profissão", sobretudo no plano político e legislativo, mas não lhes compete defender os interesse setoriais de grupos dos seus membros, muito menos no aspeto laboral, que cabe aos sindicatos, e não às ordens.

Em qualquer caso, como entidades públicas que são, as ordens só têm os poderes conferidos por lei, e tal poder não consta da lei. Não consta nem devia constar, pois não faz sentido que, por exemplo, a Ordem dos Advogados faça auditorias aos tribunais ou aos serviços judiciais ou que as ordens do setor da saúde façam auditorias aos serviços públicos e privados de saúde ou que a Ordem dos Arquitetos faça autorias aos serviços municipais de urbanismo. Para isso há as auditorias e inspeções públicas e, no plano laboral, a competente fiscalização da respetiva Autoridade.

Não é para isso que as Ordens existem. Tratar-se-ia de uma manifesta usurpação de funções.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Pandemia (32): Vale mesmo a pena?

1. Uma eventual obrigação de instalação da app StayawayCovid - tal como o Governo anunciou que vai propor à AR - tem suscitado objeções de constitucionalidade, por uma tal medida se revelar uma excessiva invasão da privacidade, não passando, portanto, o teste constitucional da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. 

Não me parece, porém, um argumento convincente, visto que, se tal medida se mostrasse eficaz para levar as pessoas dos grupos críticos selecionados a instalá-la e assim combater eficazmente a difusão da pandemia, então seria de considerar que o elevado fim coletivo em vista bem pode justificar o moderado sacrifício do valor pessoal em causa.

2. O problema que se pode sucitar é de saber se essa medida passa o teste constitucional da sua adequação ao fim em vista, tendo em conta especialmente a previsível dificuldade da sua implementação e do seu enforcement. Para além de que a obrigação só vincularia obviamente quem tem smartphone, não se vê como é que ela poderia ser implementada eficazmente em relação a estes. 

Como é que seria? A polícia teria o poder de exigir às pessoas a exibição dos seus aparelhos e a prova de instalação da app? E teria também o poder de consultar as listas de infetados e exigir-lhes a prova de que registaram a infeção na app? E a fiscalização policial seria feita na rua, nos cafés e noutros lugares públicos? Poderia entrar nas escolas e locais de trabalho para esse efeito? E quantos efetivos seriam precisos para uma fiscalização razoavelmente ampla?

Tudo indica, portanto, ser altamente improvável - por demasiado intrusivo e oneroso - um enforcement minimamente relevante dessa obrigação, suscitando além do mais acusações de seletividade e de discriminação por parte das pessoas apanhadas em falta. Ora, não havendo meios de fazer cumprir essa obrigação em larga escala nos grupos-alvo, ela deixa de satisfazer o critério da adequação ao fim em vista, pelo que deixa de se justificar a restrição à liberdade pessoal que ela impõe.

sábado, 10 de outubro de 2020

Aplauso (17): Travar a fragmentação do território


(Número de freguesias; fonte Pordata)

1. Ainda bem que, segundo o Expresso (que se tornou um canal de comunicação suplementar do PR...), o Presidente da República vai vetar a eventual lei de recriação de centenas de freguesias, que aqui denunciei como uma manobra de oportunismo político de grosso calibre, em vista das eleições locais do próximo ano.

A confirmar-se este anúncio, oxalá esta travagem da lei por Belém consiga o mesmo efeito que há mais de 20 anos o Presidente Jorge Sampaio conseguiu, ao parar a irresponsável deriva demagógica para a criação de dezenas de novos municípios, nessa altura também apoiada pelo PS (a que naturalmente me opus decididamente). 

Eis um campo privilegiado para o exercício do poder de veto presidencial, no cerne do poder moderador dos excessos das maiorias parlamentares: evitar as derivas políticas que ameaçam desestruturar o território.

2. Só comparavel, como erro político, com a promessa  de 2015 de repor as 35 horas de trabalho semanal na função pública (que foi levada a cabo, com enormes custos orçamentais e alargando o fosso entre a função pública e o trabalho no setor privado), esta proposta de fragmentação do território (que MRS teria qualificado, justamente, como "loucura" política), iria inutilizar em grande parte uma reforma do território que era necessária e é globalmente digna de aplauso, conferindo dimensão crítica a muitas freguesias que a não tinham.

Para além dos seus custos orçamentais, a fragmentação da freguesias é um atentado qualificado à racionalidade e eficiência da administração local.

3. Se o veto do Presidente merece todo o aplauso, já é puramente farisaica a resposta do Ministério da Reforma do Estado, argumentando que a proposta de lei se limita a estabelecer o quadro geral de criação de freguesias e que sua criação efetiva dependerá dos interessados, das assembleias municipais e da AR, .

Torna-se evidente que a lei é feita para a "desbunda" e que, logo que ela fosse aprovada, haveria uma corrida à criação de todas as freguesias possíveis, sem que ninguém tivesse a coragem para travar a vaga populista, limitando-se a  AR no final a carimbar as propostas. 

Como se mostrou no caso dos municípios há um quarto de século, o mal nestas coisas de fragmentar o território é abrir uma brecha no dique de contenção. Depois, é "fartar vilanagem".

4. Se a proposta de lei do Governo só merece ser rejeitada, o PCP ainda a acha pouco ambiciosa, defendendo que todas as freguesias extintas por agregação em 2013 devem ser restauradas, se tal for a vontade das populações interessadas. Mas esta proposta do PCP só pode qualificar-se como aquilo que é: irresponsabilidade política de primeiro grau. 

Por vontade do PCP, voltaríamos às mais de 4 000 freguesias do antigo regime! Que importa que muitas delas não tivessem o mínimo de população e de recursos para sobreviverem, se isso significasse mais umas dezenas de freguesias sob gestão comunista? 

Cada vez mais confinado na gestão municipal, o PCP aposta num último reduto de gestão paroquial. E o Governo serve de prestimoso comissário...

Não com os meus impostos (3): Haja decência!

Um dirigente sindical queixa-se de que o Governo não avança com nenhuma proposta de aumento das remunerações na função pública. Mas só pode lamentar-se a insistência dos sindicatos nesse aumento e louvar-se a sensatez política e orçamental do Governo em recusá-lo. 

Quando o défice orçamental dispara sob o impacto financeiro da pandemia e da crise económica e quando a generalidade dos portugueses fora do Estado sofrem perda de rendimentos, seria um verdadeiro escândalo político e social que houvesse aumento das remunerações do setor público, à custa dos impostos de todos e de mais endividamento público.

Haja decência!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Antologia do nonsense político (13): Moeda açoriana!

O porta-voz do Livre nos Açores e candidato às próximas eleições regionais propõe nada menos que a criação de uma moeda regional nos Açores, paralela ao Euro, invocando os seus efeitos positivos sobre o emprego, o crescimento económico e o desenvolvimento verde! 

Proposta original, pode ser; tonteria política, de certeza que é! 

Resta saber se este milagre de engenharia monetária e de afirmação da soberania monetária regional é subscrito pela direção nacional do Partido, que nas eleições legislativas nacionais do ano passado conseguiu eleger uma deputada, entretanto perdida.

Assim se vão descredibilizando, pelo ridículo, os partidos políticos...

Um pouco mais de jornalismo, sff (17): Comparação disparatada


Nesta notícia diz-se que o apoio do Estado ao lay off das empresas durante a pandemia - que permitiu manter centenas de milhares de empregos e salvar muitas empresas - é muito inferior ao montante da ajuda pública ao Novo Banco. 
A notícia, porém, não se limita a comparar dimensões incomparáveis, pois, no primeiro caso, só estão contabilizadas as despesas até junho, enquanto no segundo trata-se do montante da ajuda ao novo banco durante o ano. O mais grave é que a notícia, induzindo deliberadamente os leitores em erro, se "esquece" de dizer que, enquanto o primeiro valor é despesa efetiva do Estado, o segundo é um empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, que vence juros e que terá de ser reembolsado, logo que o Fundo tenha recursos suficientes através das contribuições dos bancos. 
Trata-se, portanto,  de uma comparação disparatada, imprópria de um jornalismo responsável.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Est modus in rebus (1): O caso do Presidente do Tribunal de Contas

1. Confesso que me irrita cada vez mais, como cidadão, o excesso verbal, o sectarismo ideológico, os ataques pessoais e a leviandade de juízos no debate político entre nós, de que é caso exemplar o debate sobre a nomeação do novo presidente do Tribunal de Contas, onde valeu tudo e onde não faltaram as acusações de "despotismo governamental", de "conspiração" entre o PM e o PR contra o regime, sem falar na tentativa de enlameamento pessoal do novo Presidente. Um comentador mais incontido foi ao ponto de ver neste episódio a prova da "podridão" do regime! 

Mas nada disto tem qualquer fundamento.

2. É certo que a Constituição não estabelece explicitamente nenhuma limitação dos mandatos do presidente do TdC - mas devia fazê-lo. O princípio essencial do Estado de Direito é o da independência dos juízes face ao poder político (ou qualquer poder externo), o que exige que um juiz não possa sentir-se pressionado na sua atuação para obter a recondução no cargo por parte dos órgãos políticos competentes.

Tal é de resto a regra constitucional em relação aos demais juízes, que ou são de nomeação vitalícia, como sucede com os dos tribunais judiciais e administrativos, ou têm um único mandato, como sucede com os do Tribunal Constitucional.

Por consequência, a solução do mandato único é a mais conforme aos princípios constitucionais.

3. Não havendo nenhuma norma explícita a proibir a recondução, nada impede, porém, o Primeiro-Ministro - a quem cabe a indigitação ao Presidente da República - de adotar esse critério, desde que o anuncie publicamente e se comprometa a respeitá-lo. 

Foi, aliás, o que sucedeu. O facto de até agora não ter sido assim é irrelevante. Nunca é tarde para mudar para melhor. Só há que elogiar o PM pela decisão a favor de um mandato único, esperando que ela inaugure uma prática política mais consentânea com os princípios constitucionais.

A alternativa ao mandato único é a indefinição quanto ao número de mandatos, que convida ao cambalacho político ou pessoal ou à inércia e à manutenção em funções de quem lá esteja, indefinidamente, até o titular se decidir a sair, como já sucedeu. Mesmo que não houvesse o referido princípio da independência dos juízes, há sempre o princípio republicano que afasta a ocupação de cargos públicos por tempo indeterminado.

4. Todavia, uma vez adotado, e bem, o princípio do mandato único, torna-se conveniente alargar a sua duração, atualmente limitada a quatro anos, talvez por equiparação ao mandato-regra dos governos. A referência pode ser a da duração do mandato do PR (cinco anos), do das autoridades reguladoras independentes (6 anos) ou do dos juízes do TC (nove anos).

Por isso, justifica-se incluir esse tema na próxima revisão constitucional, no sentido de : (i) estabelecer explicitamente o mandato único; (ii) ampliar a duração do mandato; (iii) acabar com a atual possibilidade de exoneração do cargo por proposta do PM e decisão do PR (hipótese nunca verificada), que contraria o essencial princípio constitucional da irremovibilidade dos juízes.

Adenda

Um leitor irritado com a expressão latina pergunta porque não utilizo um equivalente em Português. A expressão latina significa literalmente "haja moderação nas coisas!" e o melhor equivalente poderia ser algo como "um pouco de moderação, por favor!". Mas não é a mesma coisa!

Adenda 2

Outro leitor defende que o anterior Presidente do TdC só não deveria ter sido reconduzido se tivesse desempenhado mal o cargo, o que não é manifestamente o caso. Mas isso só seria assim, se se entendesse, erradamente, que quem ocupa um cargo público tem direito à recondução após terminar o mandato (o que poderia levar à sua permanência vitalícia no cargo...). Quando muito pode ter essa expectativa pessoal, mas não há nenhuma obrigação de recondução. Se a Constituição não proíbe a recondução (apesar de ser inconsistente com o princípio da independência judicial), muito menos a impõe.