quarta-feira, 13 de setembro de 2023

+ União (74): Um poder virtuoso

A Apple acaba de anunciar que o novo modelo do Iphone vai conformar-se com a obrigação imposta pela UE, de adotar o padrão comum de carregador, o USB-C, assim beneficiando os consumidores na sua liberdade de troca de aparelhos e reduzindo o impacto ambiental do desperdício de carregadores. Há algum tempo, também a Microsoft anunciou que o Windows vai deixar de incluir a plataforma Teams, que passa a ser vendida separadamente, cedendo à ameaça da Comissão Europeia de punir a empresa por "abuso de posição dominante", ao obrigar os adquirentes do Windows a adquirir e pagar outro produto, para o qual existem vários concorrentes no mercado.

Estes dois exemplos mostram mais uma vez que só a UE tem o poder económico e a vontade política para enfrentar os abusos de poder das grandes empresas tecnológicas globais, que hoje dominam a economia mundial, utilizando o enorme peso do seu mercado interno para as forçar a respeitar restrições que nenhum Estado-membro só por si estaria em condições de adotar, sendo essa uma das grandes mais-valias da integração económica europeia. 

Nenhum argumento soberanista ou nacionalista pode prevalecer contra esse poder virtuoso da União.

Adenda
Um leitor considera, com toda a pertinência, que estes dois casos, em especial o da Apple, são «manifestações do "Brussels Effect", a que a Professora Anu Bradford se refere no seu livro de 2020», que analisa o impacto global do poder regulatório da União.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Bons augúrios (2): Uma reforma estrutural

1. A expressão "reforma estrutural" tem sido abusada entre nós como aquelas reformas nas políticas económicas e sociais (impostos, pensões, sistema de saúde, etc.) que visam um impacto imediato no aumento da eficiência da economia, na redução da despesa pública, na melhoria dos serviços públicos, mesmo que os resultados venham a ser modestos.

Mas há também as reformas que conjugam diversas políticas e se traduzem em processos relativamente lentos e em grande parte invisíveis, até começarem a produzir resultados. Tal é o que ocorre com o processo de elevação das qualificações educacionais e profissionais do País, que o relatório hoje publicado pela OCDE revela, designadamente quanto ao consistente aumento da percentagem de pessoas com o ensino secundário completo e ao substancial aumento da percentagem de jovens a frequentar o ensino superior e, sobretudo, quanto a um indicador crítico, como a diminuição da percentagem de jovens "nem-nem", ou seja, sem estarem a estudar nem a trabalhar, em que o país ja está melhor do que a média da OCDE.

2. Estes resultados querem dizer que o conjunto de políticas coerentes lançadas nos últimos anos com esse objetivo - alargamento do ensino secundário obrigatório, combate ao abandono escolar, aposta no ensino profissional, ampliação da cobertura do ensino superior público, aumento das bolsas de estudo, etc.- estão a ser bem-sucedidas. 

O seu impacto continuado no bem-estar económico e social, na produtividade e competitividade da economia e na travagem da emigração de trabalhadores qualificados não pode ser negado nem desvalorizado. Trata-se de uma verdadeira e própria reforma estrutural, aliás indispensável.

Assim, não (6): O mal e a caramunha

Dois conselheiros de Estado, ambos de direita, que acumulam com a função de comentadores políticos, vieram criticar o Primeiro-Ministro por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado

Ora, eles sabem bem porque é que ele tomou, e bem, tal decisão, como expliquei AQUI: (i) porque não devia coonestar a "golpada" presidencial (política e constitucional), de tornar abusivamente o Conselho em órgao de julgamento político do PM e do Governo e num órgão de definição da política geral do País; (ii) e porque o PR anunciou antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento (o mesmo é dizer, o seu veredicto), sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada.

Ora, se se pode compreender que os dois conselheiros, ambos designados pelo próprio PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que manifestamente concordam, tendo ambos intervindo no "julgamento", por maioria de razão deveriam poupar-se a condenar publicamente o PM, por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação...

Adenda
Concordando com este post, um leitor sublinha: «Que grande descaramento!».

Adenda 2
Outor leitor observa que, por via de regra, é o PM que precisa de consultar o PR e não o contrário, pois este não goza de poderes executivos, e se precisar de ouvir aquele sobre qualquer assunto, ele não precisa de convocar o Conselho de Estado, tendo os encontros semanais ordinários entre ambos para o fazer. Tem razão.

Adenda 3
O Conselheiro Lobo Xavier escreveu-me a dizer que, contrariamente à minha acusação (baseada numa notícia do Expresso, devidamente invocada no post acima), não se pronunciou sobre o silêncio do PM: «a minha afirmação expressa [foi] a de que não me pronunciaria sobre o que se passou no Conselho de Estado, e muito menos comentaria o alegado silêncio de António Costa». Aqui fica a devida correção, repondo a verdade

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Ai, a dívida (21): A ilusão da "folga orçamental"

1. Pode parecer estranho regressar aqui aos alertas para o problema da dívida pública, quando o seu peso no PIB está a diminuir substancialmente e tudo indica que este ano haverá um excedente orçamental, e quando toda a gente, Governo e oposição, incluindo o PR, entende que há margem para reduzir os impostos. Penso, porém, que a "folga orçamental" é, em grande parte, ilusória e não tem fundamentos duradouros.

Por um lado, ela é produto de um excecional acréscimo das receitas públicas, mercê do processo inflacionista e da maciça transferência de fundos da UE no âmbito do PRR, que cobrem grande parte da despesa de investimento público e que estimulam o crescimento da economia. Por outro lado, o bom comportamento da economia e do emprego reduz a despesa social e aumenta a receita fiscal.

O que surpreende, nestas condições especialmente favoráveis, não é que haja "contas certas", mas sim que elas não sejam robustamente excedentárias, levando à redução do próprio stock da dívida pública.

2. Ora, estes ventos favoráveis não vão durar sempre. 

Por um lado, a diminuição em curso da inflação vai acabar com o empolamento artificial da receita tributária; a economia dá mostras de arrefecer, tanto mais que a economia da União está em vias de estagnação, arrastada pela Alemanha, já em recessão; e os fundos do PRR vão acabar em 2026. Por outro lado, a despesa pública permanente não cessa de aumentar: SNS, remunerações da setor público, pensões, novas prestações sociais (creches gratuitas, passes sociais gratuitos, etc.), subvenções habitacionais, sem falar nos custos da dívida pública, em consequência do aumento da taxa de juros pelo BCE.

Conjugando as duas coisas, fácil é verificar que num prazo não muito afastado pode verificar-se o regresso em força do défice orçamental e do aumento da dívida pública.

3. Neste contexto, avançar para uma redução substancial dos impostos, nomeadamente do IRS, como propõe o PSD e é aceite em parte pelo PS, pode não ser uma solução muito prudente, sobretudo por parte do segundo, quer porque o consequente aumento do poder de compra iria travar o necessário combate à inflação, quer porque seria muito penoso politicamente para o PS ter de vir depois a cortar no Estado social por razões financeiras.

Justifica-se sem dúvida a redução do peso da tributação dos rendimentos do trabalho, bastante mais elevada do que a dos rendimentos do capital, mas a dimensão de tal redução deve ser devidamente ponderada e se possível compensada com outras fontes tributárias, por exemplo recuperando a proposta do imposto sobre as sucessões e doações de elevado montante (que o PS apresentou em 2015, mas que depois deixou na gaveta), aumento dos impostos e taxas sobre os automóveis (IUC, portagens, generalização do estacionamento pago) e dos impostos e taxas ambientais.

Em suma, a redução do IRS deve ser enquadrada num exercício de reforço da equidade fiscal.

domingo, 10 de setembro de 2023

Puerta del Sol (8): "Macrogeringonça" em Madrid?

1.  A "geringonça" à espanhola que Sánchez, o líder do PSOE, está negociar em Espanha, em consequência dos inconclusivos resultados das recentes eleições parlamentares - ganhas pelo PP, mas sem maioria para governar -, promete ser ainda mais heterogénea e mais problemática do que a que sustentou o Governo cessante, por causa da necessária inclusão do partido dos independentistas catalães que desencandearam e estão incriminados pelo frustrado referendo de 2017.

Na verdade, o Junts exige um elevado preço pelo opoio a esse projeto governativo, designadamente, entre outras condições, uma amnistia sobre o caso do referendo -  incluindo do seu presidente honorário, que é  eurodeputado e se encontra exilado na Bélgica -, e o reconhecimento do direito à autodeterrminação da Catalunha.

Ora, se a amnistia poderia ser equacionada justamente a troco do abandono da proposta independentista, já a aceitação da ideia de autodeterminação por Madrid se afigura inaceitável, não somente por não ter cabimento constitucional, mas também por ela ir reforçar o centralismo "espanholista" no País, que a direita tão bem sabe explorar.

2. Tal como os socialistas espanhois, também defendo (como AQUI e AQUI) que a solução da questão plurinacional da Espanha passa por uma fórmula federal, que aliás deveria ter sido adotada logo na "transição democrática" e na Constituição de 1978, o que poderia ter evitado o desenvolvimento e cristalização de uma alternativa independentista. 

A rejeição da solução federal pela direita, que só aceitou a solução de autonomias regionais ("comunidades autónomas"), acabou por desencadear uma crescente radicalização do separatismo em algumas dessas comunidades, sobretudo na Catalunha, culminando no referido referendo ilegal.

Mas a verdade é que, estando a autodeterminação excluída pela Constituição - e assim seria, mesmo que a Espanha tivesse adotado a solução federal -, não se vê como é que vai ser possível conciliar credivelmente o radicalismo separatista com uma coligação de Governo a nivel nacional.

sábado, 9 de setembro de 2023

Campos Elíseos (14): Laicismo radical

1. Discordo, mais uma vez, deste novo passo francês no sentido de um laicismo radical, desta feita com a proibição da abaya islâmica aos alunos da escola pública, o que, a meu ver, constitui uma violação da liberdade religiosa, a qual inclui o direito a seguir os costumes da respetiva religião, salvo se ofenderem a vida, a saúde ou a dignidade humana, o que não é manifestamente o caso. 

Uma coisa é impor eventualmente a neutralidade religiosa aos agentes do Estado, o que abrange os professores, outra coisa é estendê-la aos utentes dos serviços públicos ou, pior ainda, aos cidadãos em geral. Ora, o regime de separação entre o Estado e a religião (laicidade do Estado) constitui uma garantia adicional da liberdade religiosa e do pluralismo religioso, não podendo transformar-se, contraditoriamente, num instrumento da sua restrição injustificada

2. Penso que a França demora a conformar-se com o facto de que é definitivamente uma sociedade multiétnica e multirreligiosa, que tem de admitir as respetivas consequências ao nível das diferentes expressões da religião em público.

Felizmente, essa tentação ainda não teve réplica política em Portugal, onde, de resto, não vejo como é que medidas dessas poderiam passar no teste de conformidade constitucional do TC. Numa democracia liberal, não pode haver lugar para um laicismo autoritário.

Adenda
Há muito que defendo este posicionamento sobre a matéria, por exemplo, AQUI e AQUI.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): O "mister"

1. Segundo a Constituição, o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, naturalmente quanto ao exercício dos seus poderes próprios. Por isso, deve ser a instância em que o Presidente ouve os conselheiros sobre os temas que lhe propõe.

Todavia, segundo esta notícia, o Presidente já tem escrito o discurso que vai fazer na reunião de hoje do Conselho, mesmo antes de ouvir os seus membros, incluindo o Primeiro-Ministro, que teve de se ausentar da reunião anterior. Pelos vistos, em vez de discreto local de consulta presidencial, coligindo as opiniões nele expendidas, o Conselho de Estado está a ser transformado numa câmara de eco das opiniões presidenciais, logo depois indevidamente vazadas para os media.

2. O que a ordem de trabalhos definida para a esta reunião do Conselho de Estado revela, em conclusão da anterior, é a compulsivo propósito do PR de assumir como supremo definidor da agenda política interna e externa do País, condicionando a orientação e as políticas do Governo, de acordo com o seu programa, claramente à margem da Constituição, segundo a qual é ao executivo, e só a ele, sob orientação exclusiva do Primeiro-ministro, que compete a condução da política geral (interna e externa) do País, pela qual responde perante o parlamento (e não perante o Conselho de Estado), do qual depende politicamente, apenas com a obrigação de manter o Presidente devidamente informado (a que a doutrina acrescenta um dever de consulta qualificado em matéria de política de defesa e de política externa). Manifestamente, o PR não tem um poder de superintendência política sobre o Governo.

Lamentavelmente, estamos assistir a uma deliberada tentativa presidencial de modificação do sistema de governo e de repartição de responsabilidades políticas constitucionalmente estabelecido. Importa denunciá-lo, para que não passe despercebido.

Adenda

Penso que o PM fez bem em não coonestar o exame político do Governo a que o PR abusivamente pretendeu submetê-lo no Conselho de Estado. Nem o Governo responde politicamente perante o PR (somente perante a AR), nem o Conselho é uma segunda câmara parlamentar com poderes de escrutínio político (como assinalei na altura). Era tempo de fazer prevalecer o quadro constitucional.

Adenda 2
Discordando da minha análise, um leitor argumenta que o PR goza de uma legitimidade eleitoral mais forte do que do Governo, por ser eleito por maioria absoluta dos cidadãos e não poder ser demitido, pelo que se compreende «que lhe caiba definir as orientações políticas do País». Mas não tem nenhuma razão. A principal conquista do constitucionalismo moderno, há dois séculos e meio, foi a substituição da concentração de todo o poder nas mãos do monarca (absolutismo régio) pela sua repartição por vários órgãos de poder (separação de poderes), cada um deles com a sua tarefa própria. Ora, em Portugal, o Presidente não é eleito para governar nem para mandar no Governo: não escolhe o Governo, não governa nem cogoverna, nem tem nenhuma competência para definir as orientações governativas. Consequentemente o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente. Obviamente, o leitor não tem de conhecer este quadro constitucional dos poderes presidenciais, mas o Presidente conhece, e bem!

Não concordo (44): Efeito contraproducente

Discordei da redução temporária do IVA num conjunto de bens alimentares como meio de travagem da inflação, por várias razões (beneficiar toda a gente, mesmo quem não precisa, e ser orçamentalmente muito onerosa), tendo preferido o apoio seletivo ao rendimento as famílias mais carenciadas, socialmente justo e menos dispendioso.

Por maioria de razão, discordo da sua prorrogação, que o Governo se para adotar. Se a medida poderia fazer sentido para limitar o crescimento da inflação, já o não faz quando o processo da sua diminuição está em curso. De resto, como alerta o FMI, esse aumento geral do poder de compra, induzido pela baixa do IVA, pode ter efeitos contraproducentes, alimentando a procura e travando o ritmo de redução da inflação, assim retardando a meta dos 2%.

sábado, 2 de setembro de 2023

Não concordo (43): Às avessas

Que um partido como o BE defenda, mais uma vez, a derrogação da fórmula legalmente vigente de atualização das rendas no próximo ano, compreende-se - é coerente com as suas opções doutrinárias anticapitalistas e com o habitual simplismo sectário das suas propostas políticas. Que, porém, o Governo do PS possa sufragar tal solução, já seria de todo imprudente e injustificado.

Por um lado, trata-se de uma medida de efeitos perversos. Em primeiro lugar, o Governo não pode descartar uma fórmula legalmente estabelecida, já de si limitativa, só porque num certo ano ela pode levar a um aumento mais acentuado das rendas - os senhorios também têm direito à previsibilidade dos seus contratos. Em segundo lugar, a limitação das rendas traduz-se num subsídio geral a todos os arrendatários, mesmo os que menos necessitam, à custa de todos os senhorios, mesmo os de menor poder económico - o que é um contrassenso. Por último, a restrição artificial das rendas tem por efeito necessário a redução do investimento imobiliário para arrendamento, diminuindo a oferta de casas e encarecendo as rendas - justamente o contrário do que se deve procurar.

Por outo lado, a solução para o impacto social adverso de um aumento maior das rendas deve consistir no subsídio público seletivo aos inquilinos mais afetados, e não na contenção geral das rendas à custa dos senhorios. No Estado social, a proteção social, e em especial a garantia do direito à habitação, incumbe ao Estado, e não aos particulares.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (36): Deslocado

1. Quem não entrou de férias foi o inesgotável ativismo político do atual inquilino de Belém, forçando as margens do seu estatuto constitucional, como sucedeu por estes dias, com a sua participação num evento político do PSD, seu partido de origem, num deslocado sinal de cumplicidade política. 

Julgo não incorrer em erro, ao pensar que nenhum Presidente anterior se permitiu intervir num evento partidário, num entendimento, a meu ver constitucionalmente apropriado, de separação entre a presidência da República e os partidos políticos. Infelizmente, o atual Presidente decidiu afastar-se dessa prudente e consolidada prática, desde a origem do atual sistema político-constitucional.

2. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e em alguns dos chamados sistemas semipresidencialistas, entre nós o PR não é candidato eleitoral de partidos nem tem partido, uma vez eleito, o que está de acordo com o seu papel de "poder moderador", que supõe a sua imparcialidade partidária. 

Mas parece evidente que, ao abandonar o princípio da separação, contra a lógica constitucional, o Presidente também perde em autoridade quanto ao seu papel primacial de garante do "regular funcionamento das instituições", que supõe obviamente a ausência de qualquer enviesamento partidário.

Adenda

Segundo esta notícia, o PR ter-se-á oferecido também para intervir em reuniões das juventudes partidárias do PS - que obviamente rejeitou - e do CDS, partido que nem sequer em representação parlamentar - que evidentemente aceitou, agradecido, a atenção -, sendo desconhecido o critério que excluiu outros partidos com representação parlamentar da generosidade presidencial...

Adenda 2
Um leitor observa que na sua intervenção o PR não explicitou nenhum apoio ao PSD e que se limitou a falar sobre a Ucrânia, e não sobre a política interna. Discordo. Primeiramente, o apoio ao PSD decorre desde logo da visibilidade acrescida que a visita de MRS deu à iniciativa partidária e à sua prolongada exposição nas televisões com o logótipo do partido atrás de si. Segundo, mesmo que tenha um poder de consulta qualificado em matéria de política externa, esta também é da competência decisória do Governo, que por ela responde perante a AR, e não do PR, não fazendo sentido que este vá discuti-la pessoalmente num evento político do principal partido da oposição, como se fosse o responsável por ela.


Regresso

Depois de umas prolongadas férias de verão, este blogue regressa à atividade.

Desejo agradecer aos vários leitores que ultimamente manifestaram a sua preocupação com uma eventual cessação do Causa Nossa. Sendo uma empresa individual, ele há de terminar um dia, mas não estamos na véspera disso, desde logo porque em novembro do corrente ano se completam os seus vinte anos de vida. E cá estaremos para o celebrar devidamente.

Na foto: cena de rua em S. Pedro de Atitlán, Guatemala, um destino de férias do autor, este ano.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Laicidade (11): Despautério

Parece que com a Jornada Mundial da Juventude entre nós o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas foi mandado de férias, perante a complacência geral. 

Mas quem julgava que o pico da violação da laicidade constitucional tinha sido atingido com a decisão da CM de Lisboa de mandar edificar o palco-altar, com cruz e tudo, para a principal cerimónia religiosa - caso que aqui denunciei -, eis que o Presidente da CM de Cascais, possuído de zelo confessional, resolveu levar a melhor, com o anúncio entusiasmado de que o município vai gastar meio milhão de euros para comprar paramentos para os sacerdotes e outras alfaias religiosas

E ninguém se escandaliza com este inconcebível despautério? Os partidos laicos vão deixar prevalecer cinicamente o silêncio cúmplice? O Ministério Público não vai impugnar o abusivo gasto de dinheiro público, em manifesto desvio de poder? O Tribunal de Contas vai depois aprovar as contas do município?

terça-feira, 11 de julho de 2023

Concordo (28): O ministro da Cultura excedeu-se

Tal como Adão e Silva, também tenho uma péssima opinião sobre o baixo nível de muitos momentos da CPI da Tap. Mas eu posso exprimir tal opinião, como cidadão comum que sou, para mais sem filiação partidária; mas ele, sendo ministro de um Governo que é responsável perante o AR, obviamente não pode. 

Ministro não é comentador político, pelo menos sobre assuntos alheios ao seu pelouro, e ainda menos para emitir juízos sobre outros órgãos de soberania. Ao contrário do que defende o ministro, o facto de o ser constrange necessariamente a sua liberdade de emissão de opiniões políticas, que comprometem o Governo a que pertence. É um dos custos da função!

Causa espanto que governantes cultos e com sentido de Estado possam incorrer em lapsos destes, pisando os limites da mais elementar discrição política que é de esperar deles...

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Era o que faltava (11): Uma questão de decência

1. Discordo em absoluto desta opinião que defende o regresso da subvenção orçamental à ADSE, como sucedia no passado e contra qual me manifestei há muito, até à sua abolição.

Como seguro de saúde voluntário dos funcionários públicos, a ADSE deve ser financiada exclusivamente pelos seus beneficiários e não pelos contribuintes em geral, que já financiam o SNS, a que todos têm acesso. É um sofisma a comparação com os seguros de saúde proporcionados por algumas empresas aos seus trabalhadores, os quais obviamente não são financiadas com os impostos de todos.

2. Sendo em si mesmo um privilégio da função pública, seria inadmissível que tal privilégio fosse suportado pelos contribuintes em geral, que dele não beneficiam, aumentando a despesa pública com a saúde, à margem do SNS, quando este sofre os conhecidos constrangimentos financeiros. 

Infelizmente, enquanto a ADSE se mantiver indevidamente na esfera da gestão pública - ao contrário do que defendo há muito (e o PS tambem ja defendeu) -, esta tentação de regresso ao cofinanciamento orçamental, para aliviar os encargos dos beneficiários, será recorrente. Mas espero que nenhum Ministro das Finanças pense em reequacinar a questão!

Adenda 
Um leitor pergunta se não sou beneficiário da ADSE e se não gostaria de ver aliviada a minha contribuição. Sim, sou beneficiário, mas sempre faço questão de não deixar que o meu interesse pessoal determine as minhas opiniões políticas. Se não fosse assim, várias das minhas posições no Causa Nossa, ao longo destas duas décadas, não existiriam.

domingo, 9 de julho de 2023

Pobre língua (26): "Adição" em vez de "adicção"?!

Se se diz e se escreve "adicto" e "adictivo" (devidamente registados no Vocabulário da Academia), porque é que se há de dizer e escrever "adição", em vez de "adicção", confundindo a noção de dependência (drogas, etc.) com a de soma (ato de adicionar)? 

Ao contrário do que parecem julgar distraidamente algumas pessoas, os c antes de ç só desapareceram com o Acordo Ortográfico quando não eram pronunciados (como em ação, infeção e tantas outras palavras), o que não sucede no caso acima, salvo por efeito de contaminação descuidada. Pelo que tenho visto, porém, tudo indica que se trata de um desvio fonético e ortográfico em vias de difusão acelerada.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Não concordo (39): Fundamentalismo paritário

Discordo da imposição da paridade de género no Tribunal Constitucional por via legislativa, como alguns defendem.

Em primeiro lugar, falta a necessária base constitucional para essa "ação afirmativa". A Constituição só admite a promoção do equilíbrio de género para a participação na vida política - o que permitiu as quotas eleitorais e afins -, onde não cabe manifestamente o Tribunal Constitucional.

Em segundo lugar, não dá para perceber a necessidade de impor a paridade no Tribunal Constitucional por via legislativa, quando a AR o pode fazer sem necessidade de qualquer lei.  Cabendo-lhe a designação de 10 dos 13 juízes, está nas suas mãos assegurar a paridade em cada processo de designação. Qualquer desvio por efeito da cooptação dos três restantes juízes poderia ser corrigido na designação parlamentar subsequente.

Em terceiro lugar, não se vê razão para estipular a paridade no TC, excluindo os demais tribunais superiores, onde o desequilíbrio de género é muito mais pronunciado. Uma solução manifestamente seletiva.

Por último, seria politicamente incongruente que o parlamento avançasse para uma paridade efetiva no TC, quando mantém quotas eleitorais e outras de apenas 40%, sem sequer alternância obrigatória de género nos dois primeiros lugares das listas, que é a principal razão para o desequilíbrio que se mantém na AR e demais assembleias representativas.

O fundamentalismo ideológico raramente é bom conselheiro

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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Assim vai a economia (3): O caso dos automóveis

«Automóveis com melhor semestre em quatro anos», assim titula o Jornal de Negócios a notícia sobre as estatísticas agora conhecidas sobre as vendas de automóveis. 

terça-feira, 4 de julho de 2023

Assim, não (5): Maus fígados

Depois de a Bastonária da Ordem dos Advogados - que é uma entidade pública com poderes conferidos pelo Estado - ter vindo ameaçar com a "paralisação da justiça" na sua luta contra a reforma das ordens profissionais, agora foi a vez de o Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, falando em evento oficial do município, sugerir o "corte da A1", como forma de protesto contra o prolongado impasse da A3 entre Coimbra e Viseu (o que não fica longe do incitamento ao crime).

Mesmo que os dois referidos titulares de cargos públicos tivessem razão nos seus agravos contra o Estado - como é o caso do Presidente da CMC -, é evidente que eles não gozam da liberdade de eleger formas de protesto como as referidas. Ao contrário das entidades privadas, os dirigentes das entidades públicas não têm direito a maus fígados no desempenho das suas missões.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Amanhã vou estar aqui (18): Uma homenagem devida

Amanhã vou estar no Convento de São Francisco, o espaço cultural do município de Coimbra, para fazer o elogio do Mário de Araújo Torres, juiz-conselheiro jubilado, por ocasião da atribuição da medalha de ouro de mérito cultural pela CMC, no dia da cidade.

É com grande júbilo que participo na cerimónia: primeiro, porque sou amigo e admirador de Mário Torres, de quem fui condiscípulo em Direito na UC, nos anos 60 do século passado; segundo, porque é uma homenagem inteiramente merecida, mercê do seu impressionante investimento, nos últimos anos, na meticulosa investigação e na cuidadosa edição de numerosas obras sobre a história de Coimbra, umas esquecidas, muitas praticamente inacessíveis, incluindo sobre as intervenções do "batalhão académico" da Universidade de Coimbra, em momentos cruciais da história nacional, desde a guerra da Restauração contra Castela até à Patuleia. Não é pequena a dívida de gratidão da cidade.

Na investigação e na divulgação da história da cidade do Mondego, há um antes e um depois de Mário Torres. 

Campos Elíseos (12): Uma nação fraturada

1. É impossível exagerar a gravidade da violência destrutiva nas ruas de França (incluindo incêndios, pilhagens e agressões), na sequência da morte a tiro de um jovem condutor numa operação policial. 

Depois dos "coletes amarelos" e dos protestos contra a elevação da idade da aposentação para os 64 anos, esta é a terceira vaga de protestos sociais, e a mais violenta, mostrando a profundidade das clivagens sociais e políticas em França.

2. A radicalização social e política reflete-se não apenas no crescente isolamento do Governo centrista de Macron, mas também na grande contração do apoio dos dois partidos democráticos que alternaram no poder em França nas últimas décadas, nomeadamnte o centro-direita (hoje, os Republicanos) e o centro-esquerda (o PSF), em favor da extrema-direta (Le Pen) e da extrema-esquerda (a France Insubmissa). 

Como a história mostra, a violência nas ruas e a insegurança social só revertem em favor da extrema-direita. 

domingo, 2 de julho de 2023

Stars & Stripes (11): A contrarreforma judicial

1. Acertou quem temia que a reversão do direito ao aborto, há um ano, era apenas o começo de uma contrarreforma conservadora do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. 

As recentes decisões sobre a inconstitucionalidade da política de "ação positiva" a favor dos negros no acesso às universidades, e sobre a liberdade de uma fornecedora de serviços matrimoniais de se recusar a prestar serviços a casamentos de pessoas do mesmo sexo, por razões religiosas, vêm mostrar que a maioria conservadora no Supremo, alcançada com as nomeações sectárias do Presidente Trump, não vai deixar pedra sobre pedra na proteção dos direitos das minorias, sejam étnicas ou sexuais.

2. Ora, sendo os mandatos vitalícios, há poucas perspetivas de mudança de orientação do Tribunal num futuro prevísivel. 

Como se não bastasse a deriva de direita fundamentalista do Partido Republicano desde Trump, que hoje tem a maioria na Câmara dos Deputados e governa numerosos estados da União, a orientação do Supremo Tribunal transforma-o num aríete contra as conquistas progressistas do passado nos Estados Unidos, incluindo as que o próprio Tribunal tinha assegurado.

sábado, 1 de julho de 2023

SNS em questão (25): A contradição da ADSE

Sendo óbvio que a ADSE é um dos fatores do crescimento da procura de cuidados de saúde privados, como veio recordar o antigo Ministro da Saúde, A. Correia de Campos, parece evidente que os Governos agradecem, sem o dizerem, porque essa procura alivia a pressão sobre o SNS e sobre a sua despesa.

O risco, porém, é que a consolidação da ADSE - gerida pelo próprio Estado, embora financiada  pelos próprios beneficiários - contribui para minar a legitimidade do SNS como serviço constitucionalmente universal e gratuito (financiado por impostos) e para configurar um sistema alternativo de prestação de cuidados de saúde "convencionado", que os adversários do SNS podem vir a propor como modelo geral de substituição deste.

Adenda (4/7)
Não foi preciso esperar muito para o PSD vir propor a universalização da ADSE, como acima se antecipou. Porém, para ser coerente, o PSD deveria simultaneamente propor a extinção do atual SNS, o que, aliás, decretou há quatro décadas, nessa altura sem propor nenhuma alternativa.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Assim, não (5): Cinismo político

Considero politicamente cínica a atitude dos governos que criticam o BCE (entre nós até o PR entra no coro!), por ele estar a fazer o que tem de ser feito para travar o cancro da inflação, sabendo que, se ele não desse conta da sua missão constitucional, eram os governos que a teriam de assumir, com os inerentes custos políticos, e, sabendo que, se adotarem políticas pró-inflacionistas (como orçamentos expansionistas), apenas tornam mais exigentes e duradouras as medidas para domar a inflação.

Felizmente que, sendo politicamente independentes, os bancos centrais, e em especial o BCE, têm "costas largas" para para servir de "cepo das marradas" do oportunismo político dos governos!

Unten den Linden (2): Quando a economia alemã se "constipa"...

1. Como se não bastasse a entrada da Alemanha em recessão económica, embora não muito profunda, surge agora a notícia de que a inflação nesse país voltou a subir para quase 8%!

Para um alemão comum, afeito à ideia de uma economia robusta e dinâmica e à estabilidade dos preços, uma situação de "estagflação" (estagnação económica + inflação) constitui uma espécie de pesadelo.

Entre os prováveis fatores desta insólita situação conta-se seguramente o facto de a economia alemã ser uma das principais "vítimas colaterais" da guerra da Ucrânia e das sanções à Rússia (e contrassanções desta): energia e alimentação mais caras, perda do mercado e dos investimentos na Rússia, etc. 

Resta saber por quanto tempo...

2. Para além das repercussões políticas internas - perda de popularidade do governo de "coligação semáforo", já em declínio há meses, e eventual redução do apoio à guerra na Ucrânia entre a opinião pública -, é de recear o impacto das dificuldades económicas alemãs na economia da União e dos Estados-membros. 

Por um lado, sendo a economia alemã a maior da União e sendo a Alemanha o primeiro parceiro comercial interno de muitos Estados-membros, não se pode descartar um importante reflexo negativo sobre as outras economias. Por outro lado, a retoma da pressão inflacionista na maior economia da zona Euro deixa pouca margem ao BCE para descontinuar a subida da taxa de juro, com inevitáveis reflexos no arrefecimento da economia, se se mostrar que só uma contração económica trava a inflação.

Portanto, não é apenas na Alemanha que há vários motivos de preocupação...

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Amanhã vou estar aqui (17): Mais um livro!

Eis o convite da Livraria Parlamentar (editora da AR) para o lançamento do novo livro da minha coautoria com o Prof. José Domingues (já aqui anteriormente anunciado), amanhã na feira do livro de Coimbra, com a presença dos dois autores. 
Tratando-se de uma justa homenagem intelectual a um ilustre conimbricense (José Liberato), não podia ser mais feliz a ocasião para o lançamento desde livro!

Um pouco mais de jornalismo sff (24): Um falso impedimento


1.
Mais uma manchete infeliz do Público, a de hoje, sobre a alegada impossibilidade de as pessoas que ainda têm o antigo BI votarem fora da sua freguesia nas eleições europeias do ano que vem.

Na verdade, basta que substituam o BI pelo cartão de cidadão, que agora até pode ser pedido online! Se não o fizerem e se no dia das eleições estiverem ausentes da sua área de residência, só de si se podem queixar.

2. De resto, penso que era uma boa altura de acabar definitivamente com o BI, um resquício histórico, cuja sobrevivência não se justifica e que, aliás, em muitos casos, já se encontra com dados desatualizados, o que, entre outras contrariedades, dificulta o voto das pessoas que entretanto mudaram de residência. 

Além do ganho em segurança e em disponibilidades que o CC oferece (chave móvel digital, assinatura digital, etc.), o fim do BI proporcionaria também a toda a gente esta mais-valia do voto em qualquer lugar nas eleições que não dependem de círculos eleitorais, como as eleições europeias e as eleições presidenciais.

Adenda
Um leitor diz que há o problema do custo do CC. Se isso for considerado uma barreira, o Governo, considerando a prerrogativa de que até agora usufruiram esses cidadãos, poderia equacionar a emissão gratuita do seu CC, dentro de um certo prazo

Adenda 2
Outro leitor acha que a manchete do jornal é «desproporcionada», pois a maior parte dos portadores de BI são pessoas idosas, de reduzida mobilidade, pelo que «o risco de estarem ausentes na altura das eleições é muito baixo». Concordo.

Adenda 3
Afinal, mesmo os portadores de BI vão poder votar fora da sua freguesia, embora com recurso a aditamento manual aos cadernos eleitorais. Assim se perde um bom pretexto para acabar com um documento da "idade da pedra" pré-eletrónica...

Corporativismo (48): Tal como ontem...

1. Tentando desviar a atenção da defesa protecionista de interesses corporativos, que entende serem afetados pela reforma em curso das ordens profissionais - designadamente a abertura da prestação de alguns dos atuais atos exclusivos a outros juristas -, a Ordem dos Advogados lançou uma campanha dirigida "ao cidadão", onde tenta mostrar que essa mudança reverte em desfavor dos clientes desses serviços.

Sem deixar de mencionar que o estilo e a linguagem da campanha - a começar pelo cartaz exibido na abertura do site da Ordem (acima reproduzido) - são mais próprios do agit-prop de qualquer grupo político radical do que de uma instituição pública com as responsabilidades da OA, penso que se trata de uma empresa antecipadamente votada ao fracasso, quanto ao fundo

2. À partida, as pessoas não acreditam que quem beneficia de um monopólio na prestação de um serviço esteja na melhor posiação para defender que o fim dessa coutada reverte em prejuízo de quem paga os sobrecustos de tal exclusivo. É uma óbvia contradição. 

Um cidadão racional tenderá a pensar, pelo contrário, que tal reforma - que obviamente não expropria os advogados dessa atividade -, só poderá proporcionar mais oferta desses serviços, mais liberdade de escolha, mais concorrência e melhor preço. E, em caso de dúvida, sempre podem continuar a recorrer aos advogados, que não perdem nenhuma competência, mas somente o monopólio dela. 

3. Esta situação faz-me lembrar uma similar, há quase duas décadas, quando o Governo, decidiu, em 2005, reduzir o monopólio da venda de medicamentos nas farmácias, permitindo a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM) também nos estabelecimentos que depois vieram a ser conhecidos por "parafarmácias", bastando aí a supervisão de técnicos de farmácia

Apesar de o Governo invocar a necessidade de aumentar a oferta e a concorrência, para baixar os preços, em favor dos utentes, também nessa altura a Ordem dos Farmacêuticos, acompanhando a ANF, veio opor-se a essa medida, argumentando que a venda de medicamentos sem supervisão de farmacêutico vinha pôr em causa a segurança dos cidadãos. 

Mas a reforma foi por diante, os seus objetivos concretizaram-se, os cidadãos agradecem e, hoje, aquele argumento parece pouco menos que ridículo. É o que parecerá também, daqui a poucos anos, o atual argumento similar da OA quanto aos serviços que agora, embora continuando a ser competência dos advogados, são abertos à concorrência de outros juristas, em benefício dos cidadãos...

terça-feira, 27 de junho de 2023

Assim vai a economia (2): A ficção e a realidade

1. Merece ser lido este artigo de quem sabe do que fala, onde o autor, contestando a tese de que "o crescimento da economia não está a chegar ao bolso dos portugueses" - perfilhada desde o PR à generalidade dos comentadores -, relembra os dados recentemente avançados pelo Banco de Portugal que provam o contrário, ou seja, que, tudo somado, o rendimento disponível tem aumentado sensivelmente.

De outro modo, aliás, não se compreenderiam outros indicadores conhecidos, como, por exemplo, o aumento de mais de 40% na compra de automóveis, o aumento de cerca de 10% no consumo de bens alimentares, um acréscimo de 18% nas viagens ao estrangeiro, assim como, cumulativamente, um aumento pronunciado da poupança. Ora, não se pode ter mais despesa e mais poupança sem aumento efetivo de rendimento, naturalmente provocado pelo robusto crescimento da economia e do emprego.

Apesar de difundida como verdade evidente, a referida tese é, portanto, uma ficção politicamente conveniente.

2. O que há é o risco de este aumento da procura agregada continuar a alimentar a pressão inflacionista, retardando o regresso ao padrão normal (~2%) e obrigando o BCE a continuar a puxar pela taxa de juro, encarecendo o crédito ao investimento e ao consumo, com objetivo de "morigerar" o aumento da procura e da inflação.

Como é fácil de ver, o preço de uma tal perspetiva é o efetivo "arrefecimento" da economia e o aumento do desemprego, com a consequente redução forçada do rendimento. 

Por conseguinte, sem prejuízo da necessária subvenção socialmente seletiva às famílias mais afetadas pela inflação, é mais do que tempo de terminar com todas as medidas especiais de apoio, em particular as respeitantes aos combustíveis e à energia, evitando ao mesmo tempo uma oportunista política expansionista de rendimentos (salários e pensões), por incompatível com a prioridade à luta contra a inflação.

Adenda
Entendendo que o aumento da receita do Estado e o previsível excedente das contas públicas são o resultado de um nível de fiscalidade demasiado elevado, um leitor defende que o Estado «deve devolver esse excedente à sociedade, com uma redução imediata dos impostos». Discordo em absoluto desta tese, que tem sido levianamente avançada pelo PSD, por três razões principais: (i) o saldo positivo das contas públicas não é devido sobretudo à fiscalidade elevada, mas sim à volumosa injeção dos fundos do PRR e ao excedente da conta da segurança social (mais contribuições e menos despesa), em virtude do elevado nível de emprego; (ii) neste momento, uma descida geral de impostos equivaleria a um aumento do rendimento disponível e da despesa agregada, indo ao arrepio da prioridade da luta contra a inflação; (iii) se se confirmar, o excedente das contas públicas deve ir inteiramente para o abate da elevadíssíma dívida pública, reduzindo os seus pesados custos, tanto mais que estes estão a subir, por causa do aumento dos juros. Se há momentos inoportunos e politicamente irresponsáveis para baixar impostos, este é um deles.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

Bicentenário da Revolução Liberal (47): O "direito às Cortes" de José Liberato

Eis mais uma contribuição da minha coautoria com José Domingues para um melhor conhecimento da Revolução Liberal de há dois seculos, que foi, acima de tudo, uma revolução constitucionalista, tendo por objetivo primordial a aprovação de uma constituição para o País, pondo fim à monarquia absoluta e ao seu despotismo político.

Nessa perspetiva, ninguém contribuiu doutrinariamente mais para esse empenho do que José Liberato, que, desde o seu exílio em Londres, à frente do seu periódico, O Campeão Português, procedeu a uma crítica demolidora do absolutismo e concebeu e apresentou publicamente, entre 1819 e 1821, um projeto constitucional assente na soberania da Nação, na separação de poderes, no papel essencial das Cortes e nas liberdades individuais, ou seja, as traves-mestras do moderno constitucionalismo. Até aqui pouco estudada, essa proposta do eminente conimbricense é agora objeto desta investigação aprofundada, que há muito merecia ter. 

Editado pelas publicações da AR, o livro vai ser lançado publicamente na próxima sexta-feira, na Feira do Livro de Coimbra, pelas 15:00.

Adenda
Por coincidência, além deste estudo agora publicado, que assinala no seu preâmbulo a celebração dos 250 anos do nascimento de Liberato decorridos no ano passado (1772), há um outro evento expressamente destinada a assinalar essa efeméride, que é uma exposição sobre a vida e obra do autor na Biblioteca Nacional de Lisboa, organizada pela devotada Comissão Liberato, de Coimbra. O título da exposição, "De Loreto e Spartacus", recorda, respetivamente, o nome eclesiástico e a nome maçónico do autor, e o cartaz da exposição (ao lado) reproduz o retrato do autor datado de 1821, no seu regresso a Lisboa. Merece ser visitada.


domingo, 25 de junho de 2023

Aplauso (25): Oportuna iniciativa do PR

É de aplaudir esta iniciativa do PR, associando-se publicamente ao dia nacional do cigano e recebendo proximamente os representantes da comunidade cigana. 

Se existe uma missão especialmente apropriada ao papel do PR como representante da comunidade nacional, mais do que desgastar-se quotidianamente no comentário sobre o efémero político, é justamente contribuir para a coesão étnico-cultural da República, neste caso condenando a histórica discriminação anticigana, fortemente embebida na nossa cultura popular e miseravelmente explorada pelo populismo político.

Adenda
Recomendo vivamente a leitura da pequena história dos cinco séculos dos ciganos em Portugal no Suplemento P2 do jornal Público de domingo passado, a qual, nos primeiros séculos, é também uma história de rejeição e perseguição oficial, com várias ordens de expulsão geral.

Adenda 2
Dizendo que «não gosta de ciganos», um leitor entende que «só deve haver igualdade de direitos com igualdade de obrigações, incluindo a [sua] cultura de impunidade e de incumprimento das regras que a todos obrigam». Sem deixar de conceder que o seu modo de vida tradicional à margem dos padrões vigentes tem sido um dos fundamentos da cultura anticigana, é de anotar que não é preciso gostar de uma minoria para a respeitar, enquanto pessoas,