domingo, 17 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (26): O desafio do novo líder do PS

 1. Com a eleição do novo líder socialista está definido o quadro da disputa eleitoral de março do ano que vem: o PS de Pedro Nuno Santos versus o PSD de Luís Montenegro (provavelmente em coligação com o CDS). Os mesmos partidos de sempre, dois líderes estreantes.

É certo que as eleições não dependem somente dos líderes partidários; há também as listas de candidatos, os programas eleitorais, a política de alianças pós-eleitorais, as campanhas eleitorais. Mas, tal como noutras democracias parlamentares, em que a solução governativa depende do quadro parlamentar, a figura do candidato a primeiro-ministro assume um relevo destacado nas eleições, tanto mais que a eleição direta dos líderes partidários reforça poderosamente a tendência para a presidencialização dos partidos e para a pessoalização da vida política.

Para o bem e para o mal, é do desempenho do novo líder e candidato a primeiro-ministro do PS que vai depender em grande parte o resultado eleitoral do partido.

2. O desafio político do novo líder do PS é especialmente exigente, por uma razão fundamental: desde Cavaco Silva, em 1987 e 1991, e Guterres, em 1999, nenhum partido no poder parte para eleições em condições tão propícias como o PS agora.

Primeiro, há a situação globalmente favorável do País: crescimento económico, emprego elevado, convergência com a UE, aumento de rendimentos (salários e pensões, salário mínino, prestações sociais),  "contas certas", surto inflacionista em vias de findar. Depois, há as importantes reformas empreendidas ou em vias de execução: descentralização territorial, ordens profissionais, SNS, política de habitação, lançamento do TGV, creches gratuitas, redução do IRS. Por último, quanto à competição, há, de um lado, o descrédito do radicalismo de esquerda e, do outro lado, a falta de "chama" na liderança do PSD e a grande divisão à direita, fragilizando a alternativa política.

Acresce que tudo indica que a operação de lawfare do Ministério Público contra o Governo e o PS vai falhar, mais cedo do que tarde. Pelo contrário, a perceção de perseguição política pode reverter a favor do PS.

Neste quadro, como já defendi anteriormenteo PS tem obrigação de vencer folgadamente estas eleições.


sábado, 16 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (25): Um "flop"!

Esta lista de 100 apoiantes do PSD para as próximas eleições parlamentares revela que Montenegro não consegue atrair ninguém fora do círculo conhecido de personalidades na órbita do partido. Não há nenhuma surpresa de tomo, nenhum indício de ampliação da sua esfera de atração política. 

Eu, se fosse votante do PSD, ficaria muito preocupado com esta pobreza. Não é com abaixo-assinados destes que vai mobilizar quem quer que seja.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O que outros pensam (3): Ativismo político das ordens profissionais

1. Da coluna de Francisco Mendes Silva no Público de hoje, sobre a absurda iniciativa da Ordem dos Médicos para investigar disciplinarmente o ex-secretário de Estado da Saúde:

«Há anos que as ordens [profissionais], outrora guildas recatadas de auto-regulação das respectivas profissões, começaram a ser meios ao serviço do protagonismo social e político dos seus líderes.»

Concordo em absoluto, como tenho vindo a alertar há muitos anos, por último na série deste blogue dedicada ao "corporativismo", o último dos quais justamente sobre este caso.  

2. A pressão dos grupos de interesse organizados sobre o poder político faz parte da vida política contemporânea nas democracias liberais. 

O que há de insólito entre nós está no facto de alguns, como as ordens, muito influentes, estarem instalados dentro do próprio Estado, violando a separação entre o interesse público e os interesses de grupo privados.

Causa palestina (5): Um único Estado binacional?

 1. Em relação ao post anterior, sobre o reconhecimento do Estado da Palestina, um leitor comentou, discordando:

«Primeiro, não faz qualquer sentido reconhecer um Estado que, de facto, não existe, não tem um mínimo de independência nem controle efetivo sobre o seu putativo território. Não faz sentido reconhecer ficções, coisas que não correspondem à realidade no terreno. Depois, a solução de dois Estados é, atualmente, totalmente inexequível. Porque, tanto o Estado israelita tem imensos palestinos, como o putativo Estado palestino teria imensos israelitas. 
No momento atual, a luta pelos direitos dos palestinos passa por exigir que Israel os aceite como seus cidadãos, passa pela solução de um único Estado, do rio até ao mar, com cidadãos árabes e judeus com os mesmos direitos.»
2. Não concordo com esta tese. 

Primeiro, nos territórios palestinos existe Governo (da OLP na Cisjordânia, do Hamas em Gaza), administração pública, serviços públicos (escolas e hospitais, etc.). A OLP tem um serviço de representação externa. Muitos Estados soberanos atuais começaram com muito menos. 

Quanto à população, Israel, como Estado de natureza étnica que é (uma aberração...), nunca vai aceitar os árabes israelitas como cidadãos de pleno direito; e nos territórios palestinos não há civis israelitas, salvo nos colonatos, ilegais. O reconhecimento do Estado da Palestina é o único meio que resta para extinguir a tutela israelita dos territórios palestinos, para parar a continuada anexação territorial e para reivindicar a devolução  dos territórios já anexados. 

Quanto à ideia utópica de um único Estado pluri-étnico e plurirreligioso, parece-me logicamente impossível agregar sob a mesma bandeira dois povos profundamente hostis entre si

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Aplauso (31): Obviamente, demita-se!

Não surpreende esta frontal posição do ex-líder do PSD, por duas razões: primeiro, porque foi dos primeiros dirigentes políticos a alertar para a deriva persecutória do Ministério Público contra os políticos e a propor reformas para a contrariar; segundo, porque foi ele próprio vítima especial dos abusos do MP, em manifesta retaliação corporativa, aquando das buscas à sua casa no Porto, acompanhadas pelas televisões na rua, previamente informadas.

Por minha parte, defendi idêntica posição há um mês, logo após o golpe de Estado "a frio" do MP que fez demitir António Costa. Desde então - sem nenhum esclarecimento adicional prestado sobre o assunto, continuando sem se saber sequer que suspeita impende sobre o PM demitido -, só há razões para reforçar a exigência de demissão

Lucília Gago não é digna das responsabilidades institucionais que inadvertidamente lhe foram confiadas.

Adenda

Se isto for verdade, o caso torna-se mesmo bem sujo, mostrando que no MP não existem as mínimas garantias de imparcialidade contra a perseguição política.

O que o Presidente não deve fazer (42): Instrumentalização do poder de veto

1. Depois de ter suscitado a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei-quadro da reforma das ordens profissionais - que o Tribunal Constitucional, porém, veio convalidar, sem problemas -, o PR decidiu entrar agora numa verdadeira caça aos estatutos de cada uma das muitas ordens, vetando políticamente grande parte deles, incluindo os das mais importantes, como a dos advogados e a dos médicos.

Sucede que, tal como na contestação preventiva da constitucionalidade da lei-quadro, o PR fundamenta ostensivamente os sucessivos vetos com recurso às objeções das próprias ordens, cujos bastonários fez questão de ouvir antes de decidir (mas não ouvindo a Autoridade da Concorrência, principal inspiradora da reforma). 

Provavelmente, para além da banalização daquilo que deveria ser excecional (por efeito da separação de poderes), não há precedente entre nós de um caso de lobbying político tão bem-sucedido como este das corporações profissionais, em que o decisor político faz suas por inteiro as posições destas.

2. Ora,  depois de ter promulgado a lei-quadro - de que os estatutos de cada ordem são pouco mais do que uma concretização -, não se vê como é que o PR pode apostar convincentemente nos mesmos argumentos, ou afins.

De facto, os fundamentos mais relevantes dos vetos, ou põem em causa a própria razão-de-ser política, liberalizadora e pró-conconrrencial, da reforma (como é o caso das objeções relativas à duração dos estágios ou aos "atos exclusivos" de cada profissão) ou recuperam o argumento de um suposto direito à "autorregulação" das ordens, que o Tribunal Cosntitucional se encarregou de denegar.

Além de baseado em argumentos inconsistentes, o recurso maciço ao veto das leis da AR também é politicamente inconsequente, pois não pode duvidar-se de que a mesma maioria parlamentar que aprovou a referida legislação a vai confirmar de plano, sem qualquer reconsideração, antes da dissolução da AR, obrigando o PR a promulgá-la, assim  completando a reforma, quanto mais não seja porque sem ela ficaria em causa o desembolso do PRR da UE. 

Por isso, para além de uma enventual "vingança" da desfeita sofrida quanto à lei-quadro, a que justifica então este insólito massacre legislativo de Belém?

3. Inventariadas as possíveis explicações para este "frete" político às corporações profissionais, vejo três hipóteses, aliás cumulativas: (i) dar às ordens mais umas semanas de "justa luta" pública contra a revisão; (ii) reivindicar para o Presidente o prémio de melhor e mais persistente "amigo das ordens", na  luta destas pela defesa dos seus privilégios corporativos, postos em causa pela reforma; (iii) alimentar a esperança das ordens numa futura revisão/reversão da reforma, caso haja mudança de maioria parlamentar nas próximas eleições.

Resta saber se tais motivações bastam para justificar a abrangente ofensiva presidencial contra o poder legislativo da AR, numa imprescindível reforma estrutural do mercado de serviços profissionais entre nós (ainda que assaz moderada), ou se não estamos perante um caso qualificado de "desvio do poder" presidencial, instrumentalizando o poder de veto para fins alheios à sua justificação constitucional.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Causa palestina (4): Reconhecimento do Estado da Palestina, já!

1. Com despudorado cinismo, o Presidente dos EUA vem dizer, como se fosse novidade, que Israel não quer solução de dois Estados, ou seja, não quer o Estado da Palestina, e isto pela simples razão de que continua a anexar o resto do seu território e a expulsar os seus habitantes, como vem fazendo há décadas.

O que também é novidade é que, não querendo Israel os dois Estados, os EUA também não querem, porque nesta matéria abdicaram de qualquer autonomia política, dado o peso esmagador do lobby político-financeiro israelita em Washington, como ficou demonstrado no Conselho de Segurança da Onu, com o seu vergonhoso veto à moderada proposta de cessar fogo humanitário em Gaza.

2. Ora, perante o óbvio desafio israelita nos territórios ocupados, anexando-os, e perante a horrenda destruição física e a inominável chacina humana em Gaza - que o SG das Nações Unidas, António Guterres, tem denunciado com coragem -, é altura de a comunidade internacional - a começar pela UE -, perceber que o único modo de fazer valer o direito internacional e o direito dos palestinos à autodeterminação, é o reconhecimento generalizado do Estado palestino, nas suas fronteiras acordadas, isto é, sem aceitação da ilegal anexação territorial israelita em Jerusalém e na Cisjordânia nas últimas décadas.

Basta de hipocrisia: cumpre saber se, tal como os EUA, a UE também aceita não passar de um "fantoche político" de Israel na questão palestina.

Corporativismo (55): A incontinência da Ordem dos Médicos

1. O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, tem toda a razão quando qualifica de «inqualificável intromissão» na esfera governativa o facto de de Ordem dos Médicos ter aberto um inquérito para efeitos disciplinares contra si, por suspeita de conduta indevida no chamado "caso das gémeas luso-brasileiras", alegadamente por ele também ser médico.

Ora, é evidente que a OM só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa qualidade, por atos da profissão médica, o que não é manifestamente o caso dos atos natureza político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde, que, por coincidência, acontece ser médico. Por isso, o referido governante deve, pura e simplesmente, recusar-se a submeter-se a este inaceitável abuso de poder.

2. A ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política, nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM. Trata-se, portanto, de mais um gritante caso de usurpação de funções por parte da Ordem, na sua obsessão geral de se intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e, em especial, de cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à AR e à oposição, o que lhe não cabe nem pode caber.

Não fora o Governo estar demitido, justificava-se de todo em todo desencadear a tutela governamental sobre a OM e ordenar uma inspeção, por reiterada atuação à margem dos seus poderes, que só são os que a lei explicitamente lhe deu. O que é demais é demais!

Adenda
Um leitor sugere que Sales pode continuar inscrito na Ordem e que esta «não sabe distinguir entre os atos profissionais e os outros». Clarificando: (i) o facto de ele estar inscrito na Ordem é irrelevante aqui, pois tal não a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao exercício da profissão (como é o caso); (ii) a distinção entre os atos de um médico nessa qualidade e os atos da mesma pessoa noutra qualidade (político, gestor, dirigente desportivo, etc.) é óbvia e intuitiva, e se a direção da OM não percebe tal diferença, um assessor jurídico ajuda. O problema está em que a Ordem "dispara" antes de pensar...

Adenda 2
Esta notícia de agora, sobre um pedido de indemnização à Ordem, regista outro caso de flagrante abuso de poder da OM, quando, no início da pandemia, mandou abrir um inquérito a uma IPSS - para o que, desde logo, não tinha competência, por não ter base legal - e tirou conclusões altamente lesivas para a instituição, que depois vierem a ser infirmadas pelo Ministério Público. Julgo que a OM deve ser devidamente responsabilizada.

Adenda 3
O bastonário da OM veio agora dizer que não instaurou nem tinha intenção de instaurar «nenhum prodecimento disciplinar» contra o antigo SE da Saúde, António Sales. Mas, esta afirmação é uma pura vigarice, pois, como lembra o Expresso de hoje, no seu pedido ao conselho disciplinar da Ordem, o bastonário mencionava expressamante como pessoas a investigar «tanto o secretário de Estado, enfim, tanto da parte governativa, como da parte da gestão do próprio hospital, a direção clínica, como da parte dos médicos diretamente envolvidos no serviço do hospital ou noutros locais onde possa ter havido aqui intervenção médica». Já não dá para aturar tanto farisaísmo!

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Laicidade (15): Regresso ao "Estado Novo"?

Ao ler a notícia da bênção de uma obra pública do município de Lisboa pelo Cardeal Patriarca, julguei que tinha regressado inadvertidamente ao "Estado Novo", quando tais cerimónias eram comuns no feliz "concubinato" entre o Estado e a Igreja Católica. 

Passado, porém, meio século, está em vigor, desde 1976, um regime de separação entre o Estado e a religião, cujo  "núcleo duro" mais elementar inclui a proibição de encomenda ou promoção de atos religiosos (missas, bênçãos, etc.) pelas entidades públicas. Tal princípio constitucional tem de prevalecer contra atos de proselitismo religioso de autoridades públicas, que, sem escrúpulos políticos ou religiosos, humilham os que não são crentes da religião "oficial", desprezam o pluralismo religioso e pisoteiam a Constituição da República, ao abrigo da qual desempenham o seu mandato.

A meu ver, quem assim abusa do seu poder público, instrumentalizando mesquinhamente a religião para efeitos políticos, torna-se indigno do poder político na República e perde o direito a qualquer respeito democrático.

Adenda
Um leitor pergunta aos partidos representados na autarquia da capital e às organizações da sociedade civil lisboeta «se não veem que é pelo silêncio e pela indiferença generalizada que pequenos grupos ativistas conseguem  "normalizar" o regresso a práticas do antigo regime como estas». Boa pergunta, que faço minha.

Adenda 2
Um leitor lamenta que eu ande «distraído» e que não tenha notado que «igual benção religiosa teve lugar nas obras do Metropolitano de Lisboa, que são do Estado, isto é, do governo», dando-me o link para o evento. De facto, tenho de admitir que a "minagem" de um dos fundamentos constitucionais do regime vai mais avançada do que admitia. Uma vergonha! Tal como a CML, o Governo deve uma explicação pública ao País.

Adenda 3
Um leitor do PS estranha o "silêncio do partido na CM Lisboa". Eu também! A celebre frase de Mário Soares - "laico, republicano e socialista" - não o definia somente a ele, mas também o partido que ele fundou. Pelos vistos, o PS vai deixando "prescrever", por silêncios comprometedores como este, o primeiro dos pilares do "credo" socialista originário.

Gostaria de ter escrito isto (33): A condição económica do Estado social

Coluna do economista João Costa Pinto no Público de hoje, intitulada «Políticas distributivas e “contas certas”»:
«Passadas cinco décadas, temos de reconhecer que, apesar de avanços qualitativos em áreas críticas, fomos mais eficazes a implantar um Estado social do que a desenvolver e a fazer crescer a economia que o tem de financiar.»

A mensagem é clara, e certeira: sem economia robusta não pode haver Estado social forte. Há muita gente à esquerda que não entende esta equação...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O que outros pensam (2): A "cunha" de Belém

Marques Mendes no seu comentário de ontem na SIC, sobre o chamado caso das "gémeas luso-brasileiras":
«O filho do PR teve um comportamento inaceitável. Tentou meter uma cunha ao pai. Sendo filho do PR, devia ter-se abstido de qualquer intervenção. Não podia nem devia comprometer a imagem do PR. (...) Claro que Marcelo podia ter arquivado o caso. (...) Mesmo assim, não arquivando, não meteu qualquer cunha: tratou o filho como qualquer cidadão, enviando a documentação para o PM, como faz em todos os casos. (...) Meter uma cunha é fazer um pedido. Ora, Marcelo não fez qualquer pedido. Nem ao primeiro-ministro. Nem ao Ministério da Saúde. Nem ao Hospital. (...).»
Mas o comentador - que é membro do Conselho de Estado indicado pelo PR - não tem razão, como mostrei aqui. Primeiro, MRS deu seguimento à "cunha" do filho, não podendo ignorar que o nome familiar lhe daria um peso especial; em segundo lugar (ponto omitido por MM), MRS ordenou aos serviços da Presidência para contactarem o Hospital de Santa Maria, o que, além da violação clara da separação de poderes, só podia ser entendido como "apadrinhamento" da "cunha" filial.

Adenda
Um leitor escreve: «Uma coisa é o Presidente endereçar ao Governo uma queixa geral sobre alguma disfunção administrativa ou legal, outra coisa é endereçar uma chamada de atenção para o caso de uma pessoa em particular; a este último procedimento chama-se, precisamente, "meter uma cunha". Ou seja: [neste caso,] o filho meteu uma cunha ao pai; e o pai meteu uma cunha ao Governo. MRS é tão culpado quanto o seu filho. Ele não tem nada que estar a fazer "forward" de cunhas para o Governo, venham elas de quem venham, qualquer que seja o apelido que tragam.» No entanto, mesmo a adotar esta posição de princípio mais geral, continuo a entender que, neste caso, a relação familiar  constitui uma agravante.

domingo, 10 de dezembro de 2023

O que outros pensam (1): Areias na engrenagem democrática

Conhecendo-o pessoalmente e tendo convivido politicamente alguns anos com o ex-governante e ex-deputado socialista Jorge Lacão, com quem nem sempre estive de acordo, apraz-me destacar este seu artigo de hoje no Público, intitulado «O deslassar da democracia», que justamente enuncia um conjunto de "desfuncionalidades" da nossa prática política, e com o qual estou inteiramente de acordo, até porque também tenho abordado criticamente os mesmos pontos neste blogue, desde a conduta "desviante" do PR aos abusos do Ministério Público. 

Ora, estando o PS em disputa eleitoral para eleger um novo líder, depois da inesperada saída forçada de António Costa - vítima de um desses abusos -, seria interessante saber o que pensam os candidatos à liderança de um "partido de governo" como o PS sobre as questões suscitadas e os meios de as resolver.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (14): O "ciclo de empobrecimento" do país

No seu recente congresso, o PSD definiu como seu lema político para as próximas eleições parlamentares o objetivo de pôr termo ao suposto "ciclo de empobrecimento" do País, gerado pelos governos do PS.

Eis mais umn contributo para a óbvia justeza desse lema: «Portugal é o país da OCDE onde menos alunos ficam sem comer por falta de dinheiro».

Nem as pensam!

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Alma mater (3): Uma afronta gratuita

[Fonte da imagem: AQUI]

1. Sendo uma universidade pública, e por isso obrigada a respeitar o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião - que obviamente proíbe as instituições públicas de praticar ou apoiar atos religiosos -, a Universidade de Coimbra persiste, porém, em afrontá-lo todos os anos, ao organizar oficialmente duas missas, uma pela "padroeira", em 8 de dezembro, e outra pela dia solene da Universidade, a 22 de fevereiro.

Ora, tal como o Estado, a UC só pode ser neutra em matéria religiosa, não podendo adotar nem privilegiar qualquer religião.

2. Além de um inaceitável abuso de poder, estes atos religiosos oficiais associam indevidamente toda a comunidade académica a essa reiterada violação da neutralidade religiosa do Estado, afrontando não somente os professores, investigadores, funcionários e estudantes que não são crentes católicos, mas também todos aqueles que, independentemente da sua crença, ou falta dela, não querem ver a sua universidade identificada com nenhuma religião.

A poucos anos do cinquentenário do 25 de Abril de 1974 e da Constituição de 1976, que restaurou o princípio republicano da laicidade do Estado - que o "Estado Novo" reduzira a nada -, é inadmíssivel que a UC continue a colocar-se ostensivamente à margem da Constituição da República.

Adenda
Neste meu prefácio a um recente livro sobre o tema, onde o caso da UC é obviamente referido, enuncio as principais implicações da separação constitucional entre o Estado e a religião.

Adenda 2
Um amigo, a quem remeti este post, com um amargo comentário de que «qualquer dia, anuncio publicamente a minha renúncia à condição de antigo estudante e de professor jubilado da UC», respondeu-me assim: «Não pode fazê-lo; o seu Reitor, em vez de ficar incomodado, rejubilaria ver-se livre de si; é como antigo estudante e como professor jubilado que o seu combate por uma UC laica conta mais.» Tem razão!

Razões para inquietação (5): Carga fiscal

1. No quadro acima, colhido AQUI, Portugal fica na primeira metade da grandeza da carga fiscal, em percentagem do PIB, dos países da OCDE (15º lugar em 36 paises).

A verdade, porém, é que não faz muito sentido comparar países com estrutura de despesa pública muito distintos. Com efeito, se retirarmos da lista os onze países não-europeus da OCDE, que, em geral, têm baixo nível de despesa social (prestações sociais e pensões), Portugal não fica assim tão mal colocado, pelo contrário, passando a ser a sexta carga fiscal mais baixa nos 21 países europeus. 

O Estado social, que é uma opção político-constitucional europeia, custa muito dinheiro.

2. Todavia, mesmo com essa "reclassificação", há vários motivos pelos quais o nível da carga fiscal em Portugal deve suscitar preocupação, mesmo fora de uma perspetiva neoliberal. 

Primeiro, Portugal tem uma carga fiscal mais elevada do que vários países de PIB aproximado, ou até mais elevado; segundo, enquanto em muitos países da OCDE a carga fiscal está a ser reduzida, entre nós ela continua a subir; por último, mas não menos importante, há razões para pensar que há vários serviços publicos em que o elevado nível de despesa pública não produz os resultados devidos, como é manifestamente o caso da saúde.

Com um Estado mais eficiente, os mesmos ou melhores resultados poderiam ser obtidos com menor despesa pública e, logo, com menor carga fiscal.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Novo aeroporto (12): Captura (consentida) do Estado

1. É lastimável que o Governo se tenha apressado a ratificar politicamente o revoltante relatório sobre a localização do novo aeroporto, que conseguiu o prodígio, não somente de dar prioridade a Alcochete - apesar do seu elevado custo para os contribuintes (quanto mais não seja quanto aos acessos), do abate de uma norme quantidade de sobreiros e dos custos acrescidos de transporte para grande parte dos seus futuros utentes a norte do Tejo -, mas também de desqualificar Santarém - que não padecia de nenhuma dessas pechas e que libertava o novo aeroporto do explorador monopólio da Vinci -, com o fútil argumento da incompatibilidade com a base aérea de Monte Real.

A decisão da CNI é, antes do mais, económica e socialmente irracional.

2. Como desde o início aqui fui denunciando (AQUI, AQUI e AQUI), a chamada CN"I" não passou de uma delegação formal do poderoso lobby pró-Alcochete, com uma liderança há muito comprometida com essa solução, selecionada pelo Governo em manifesto conflito de interesses. Provavelmente na história das grandes infraestruturas nacionais não terá havido nenhum caso de captura do Estado por poderosos interesses privados tão obviamente consentida (se não promovida...) pelo próprio Estado.

E assim que se vai esvaindo a confiança pública nas instituições políticas, em proveito do populismo, contribuindo para a preocupante erosão em curso da democracia liberal. 

Adenda
Embora certamente rejubilando com o afastamento de Santarém, que mantém o seu monopólio aeroportuário, a Vinci apressou-se a declarar que, no custo estimado de 8 000 milhões de euros para Alcochete, só lhe cabe suportar 1 200 milhões, ou seja, menos de um sexto, incumbindo o resto ao Estado (para além dos custos dos acessos). É evidente que isto altera tudo: o Governo não pode validar a solução de Alcochete sem esclarecer que os contribuintes de todo o País não vão pagar milhares de milhões de euros em benefício de um poderoso lobby financeiro-imobiliário e do explorador monopólio da Vinci!

O que o PR não deve fazer (41): Ética republicana

1. Não convence a tese de MRS de que no chamado caso das "gémeas brasileiras" se comportou de forma «neutral» e se limitou ao que usa fazer em casos semlhantes, ou seja, reendereçar o pedido ao Governo. 

Primeiro, o pedido vinha do seu próprio filho - que num caso destes não é, manifestamente, um «cidadão como qualquer outro» -, o qual obviamente visava obter o endosso paterno do PR para reforçar a sua "cunha", o que não deveria ter recebido; segundo, além do envio do pedido ao Governo, o MRS deu instruções aos serviços da Presidência para contactarem o Hospital de Santa Maria sobre o assunto, o que não deve ser norma na Presidência, pois os serviços de saúde dependem exclusivamente do Governo (tal como toda a Administração pública...), pelo que não devem ser interpelados diretamente por Belém.

Separação de poderes oblige!

2. Não havendo obviamente na conduta presidencial nada de penalmente ilícito, o mesmo não se pode dizer do respeito da ética republicana, que não é obviamente compatível com a promoção de privilégios de tratamento nos serviços públicos. Ora, parece indiscutível que a intercessão presidencial deve ter ajudado as duas cidadãs a ter acesso, em tempo imbatível, a um tratamento superdispendioso, ao qual um cidadão comum só acederia (se acedesse de todo...) com bem maior demora e diligência.

Sendo MRS o primeiro magistrado da República, esta incúria, ainda que benévola, não lhe fica bem.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Amanhã vou estar aqui (20): 75 anos da DUDH

Amanhã, dia 6 de dezembro, pelas 18:00, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), vou participar, junto com a minha colega da Nova de Lisboa, Profª. Tereza Pizarro Beleza, neste colóquio sobre os 75 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), aprovada pelas Nações Unidas em 1948, três anos após o fim da II Guerra Mundial, cuja tragédia humana (Holocausto à cabeça) motivou a sua aprovação.

A DUDH inaugurou politicamente o processo de universalização dos direitos e liberdades fundamentais, que veio a ser seguido, ao longo das décadas seguintes por numerosas convenções internacionais de direitos humanos, quer de âmbito global (ao nível das Nações Unidas), quer de âmbito regional (a primeira das quais foi a Convenção Europeia de Direitos Humanos, CEDH, de 1950).

Aplauso (30): Subida de divisão

Mercê do bom desempenho orçamental do Governo, Portugal sai do clube dos "países periféricos" da zona euro quanto à fiabilidade da sua dívida pública e entra no clube dos países com juros mais baixos.

Como é bom de ver, esta subida de divisão não se traduz somente num acesso mais fácil ao mercado da dívida, caso seja necessário, mas sobretudo numa substancial poupança nos custos da dívida, cativando menor fatia da despesa pública e proporcionando maior liberdade orçamental aos governos.

Esta notícia é seguramente a melhor resposta ao sectário e infundado ataque do antigo PR, Cavaco Silva, à política orçamental do Governo. Como se vê, as "contas certas" rendem vantagens efetivas para o País!

Adenda
Para Cavaco Silva, as "contas certas" eram uma opção orçamental certa quando a direita precisou de justificar os cortes no Estado social, mas deixaram de o ser quando um Governo de esquerda conseguiu a proeza de as conciliar com avanços no Estado social. Quando o sectarismo político leva a melhor sobre a objetividade, o resultado são teses politicamente mesquinhas como esta.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (13): Compromissos do PSD para as urtigas

1. O magno compromisso de Montenegro para estas eleições era a reiterada garantia de que não faria um acordo de governo com o Chega, o que ele proclamou de forma inequívoca: «não é não». Sucede, porém, que outro membro qualificado do PSD já veio reduzir a nada tal compromisso, ao dizer que «nos Açores não houve nenhum acordo com o Chega»

Portanto, acordos com o Chega são uma questão de semântica e só existem quando o PSD os definir como tal. É demais, realmente. 

2. Igualmente, o outro tonitruante compromisso, de só governar se ganhar eleições, também já foi "para as urtigas", quando Montenegro veio dizer que, afinal, «não quer acorrentar o Partido a uma decisão minha», pelo que não vale nada. Também este compromisso ruiu face às sondagens que continuam a colocar o PSD atrás do PS, apesar das atribulações por que este passa.

Por mim, penso que o PSD, em geral, e Montenegro, em especial, entendem que não podem perder esta oportunidade de voltar ao poder, depois de oitos anos de jejum, pelo que farão tudo o que for preciso para isso, incluindo "ir para a cama com o Chega" e depois negar a evidência.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Em seara alheia (3): Sobre a liderança do PS

1. Perguntam-me porque, sendo um observador interessado da vida política e posicionando-me politicamente na esquerda moderada, não tomo posição na disputa em curso para a liderança do PS, mas a resposta é simples e óbvia: porque ela não me diz pessoalmente respeito e não sou chamado a participar na sua decisão. 

De facto, não sendo filiado e sendo simples simpatizante (por vezes assaz crítico), não faria sentido tomar partido numa disputa que só diz respeito aos membros do Partido, correndo o risco de ver a minha ingerência mal interpretada. De resto, embora o meu distanciamento crítico possa variar, a minha condição de simpatizante e de votante habitual do PS, há mais de três décadas, não depende da sua liderança: os líderes passam, e o Partido fica.

2. Acresce que tenho de constatar que, apesar das diferentes sensibilidades políticas dos candidatos, próprias de um partido plural, como é o caso, nenhum deles sufraga, nos programas que apresentaram, quase nenhuma das propostas que, ainda há pouco tempo, considerei como deverem integrar um programa político do PS

É certo que algumas delas são claramente disruptivas das corporações e interesses de grupo com significativo peso político. Mas, se não for o PS a adotá-las, como alimentar a esperança de um cidadão de esquerda de alguma vez as ver implementadas?  

Adenda
Um militante do PS já com posição tomada entende que o principal critério de escolha é o de «saber que candidato é que pode assegurar melhor a continuação da linha de António Costa, que proporcionou todos estes anos de vitórias políticas do Partido». Omitindo a sua posição concreta, presumo, porém, que é um critério muito relevante para muitos militantes.

Adenda 2
Um leitor recorda que em 2014 tomei clara posição pública, em favor de António Costa. Mas nessa ocasião intervim na qualidade de votante, pois a eleição do SG foi aberta aos simpatizantes, pelo que me inscrevi e votei - o que agora não acontece. Devo acrescentar que, apesar das muitas divergências desde então, a começar com a chamada "geringonça", voltaria a votar nele, se tal se proporcionasse.

Eleições parlamentares 2024 (12): Assim, o PSD não vai lá


Apesar da evidência dos dados disponíveis (quadro acima), um alto dirigente do PSD veio proclamar publicamente que a governação do PS tinha provocado um «aumento da pobreza antes das prestações sociais». O Polígrafo veio provar a falsidade da acusação (apesar da grave crise económica e social da pandemia).

Esta fake news integra a falsa narrativa política de Montenegro, segundo a qual, com os governos do PS, o país teria entrado num "ciclo de empobrecimento" -, o que aquele e outros dados desmentem de todo em todo. Pelo contrário, se o critério eleitoral fosse somente o desempenho económico e social deste Governo, o PS deveria ter a vitória assegurada.

O que surpreende é como o PSD não se dá conta de que só perde credibilidade com tal tentativa de mistificação da realidade, e que o descrédito político só ajuda a consolidar a estagnação eleitoral que as sucessivas sondagens lhe atribuem, sem conseguir tirar partido (pelo contrário!) das presentes atribulações do PS.

[Eliminada uma "adenda", que foi convertida em post autónomo.]

+ União (76): Grande Mario Draghi!

1. Em mais uma das suas ousadas posições sobre a UE, o antigo presidente do BCE e ex-PM italiano veio declarar que a União precisa de se tornar em Estado, para poder enfrentar e vencer os novos desafios com que se depara.

Na verdade, a UE já apresenta grande parte das características típicas dos Estados de tipo federal - nomeadamente os "três elementos" da "teoria geral do Estado" (território, cidadania e poder político próprio), a aplicabilidade direta do direito da União aos seus cidadãos e a primazia sobre os direitos nacionais, a representação diplomática externa, etc. -, faltando-lhe, porém, dois elementos decisivos: a integração da política de defesa e da política externa e, sobretudo, a capacidade para definir as suas próprias atribuições (Kompetenz Kompetenz), sem necessidade do consentimento unânime dos Estados-membros.

2. Nos Estados Unidos, a passagem da confederação (associação de Estados) à federação (Estado federal) demorou apenas dez anos (1777-1787), sob impulso da guerra de independência contra a Grã-Bretanha. Passadas mais de seis décadas desde a sua fundação (Roma, 1957), a UE encontra-se ainda a meio caminho, depois dos grandes avanços de Maastricht (1991) e de Lisboa (2007). 

Resta saber se vão ser necessárias outras tantas décadas para completar o caminho. A declaração de Draghi, com o peso político que ele tem, pode significar que o processo pode precisar de ser acelerado (embora não necessariamente com todos os atuais EEMM).

sábado, 2 de dezembro de 2023

Novo aeroporto (11): Quando os grandes interesses triunfam


Mas o que significa o sacrifício de 1/4 de milhão de sobreiros, face ao grandioso projeto de edificar uma esplendorosa Lisboa II na outra margem do Tejo, promovido por um poderoso lobby financeiro-imobiliário, sem precedentes na história do País, a cujo "comité LNEC/Alcochete" o Governo decidiu entregar a chamada CTI?

Adenda
Um dos mais conspícuos membros do tal "comité LNEC/Alcochete" na CTI, em óbvio conflito de interesses, como antes assinalei, veio não somente descartar sumariamente a questão dos sobreiros, mas também alertar para o risco de o relatório, prestes a sair, vir a ser metido na gaveta pelos decisores políticos. Mas seria esse mesmo o destino merecido de um relatório que há de ficar como exemplo de escola de flagrante violação qualificada do princípio constitucional da imparcialidade na Administração pública em Portugal.

Adenda 2
Um leitor considera inadmissível que um membro da CTI venha «defender implicitamente um dos projetos, a três dias da publicação do relatório, pré-anunciando o seu sentido». Sim, há um termo apropriado para atitudes destas: despudor institucional! 

Adenda 3
Outro leitor pergunta, malevolamente, se a entrega direta da CTI ao grupo LNEC/Alcochete não foi «mais uma "patifaria" do ex-chefe de gabinete do PM, o tal Escária». É bem possível, mas quem nomeou a chefe da CTI e o chefe da "Comissão de Acompanhamento" - ambos notórios "alcochetistas" - foi o Governo, que não podia desconhecer esse óbvio conflito de interesses. 

Adenda 4
Ironizando, um leitor considera que foi muito feliz a decisão do Governo de entregar a CTI diretamente ao grupo de Alcochete, porque assim «poupou muito dinheiro e esforço ao grupo para fazer lobbying por fora e poupou ao Ministério Publico mais uma operação bombástica de tráfico de influências». Fora de qualquer ironia, parece evidente que muito melhor do que fazer lobbying sobre os decisores públicos é obter deles a delegação da própria decisão...

Gostaria de ter escrito isto (32): O "justicialismo antidemocrático"

Saúdo vivamente este artigo de J. Pacheco Pereira no Público de hoje, com o qual concordo inteiramente, desde logo porque ele empresta a voz de um colunista consagrado e respeitado à luta contra o irresponsável e impune legal warfare do Ministério Público contra a "classe política" - transformando a investigação penal em arma de perseguição política -, que venho denunciando há muito, praticamente sozinho na área socialista (por último, AQUI e AQUI), e para o qual já apresentei propostas concretas (por exemplo, AQUI).

O processo Influencer, em que o MP se ultrapassou a si mesmo no manifesto abuso de poder arbitrário, configurando um verdadeiro golpe de Estado (como mostrei AQUI), não pode deixar de ter uma resposta das instituições em defesa da democracia. Julgo que um dos temas prioritários que deve figurar nos necessários "acordos de regime" entre os dois "partidos de governo" nacionais para reforçar o regime democrático deve ser justamente o de extirpar este cancro institucional que há muito corrói os princípios da separação de poderes e da responsabilidade política, inerentes ao Estado de direito democrático.

Adenda
Um leitor objeta que o princípio da separação de poderes «não permite interferências do poder político no poder judicial». Tem razão, mas isso em nada prejudica a minha crítica ao MP. Por um lado, como já aqui expliquei, o poder judicial pertence aos juízes (independentes, imparciais e irresponsáveis) e não ao Ministério Público, instituição judiciária auxiliar, de natureza hierarquizada, que nos julgamentos é parte interessada; a pretensa equipação dos magistrados do MP aos magistrados judiciais, que o sindicato daqueles conseguiu impor, é pura e simplesmente inaceitável. Por outro lado, as minhas propostas não preveem nenhuma interferência governamental no PM, limitando-se a fazer valer a regra constitucional da hierarquia e da responsabilidade interna e o princípio constitucional da prestação de contas externa do PGR pela cumprimento da sua missão constitucional e legal, como é próprio de um Estado de direito democrático.

Adenda 2
Outro leitor argumenta que o MP tem o dever de investigar todos os casos suspeitos, «sem nenhum privilégio para os políticos». Mas não é bem assim. Primeiro, o MP não deve iniciar nenhuma investigação que inclua meios intrusivos (escutas, buscas, etc.) sem um juízo prévio, superiormente aprovado, sobre se a denúncia tem alguma viabilidade; segundo, quando se trate de meios intrusivos na privacidade ou na liberdade dos suspeitos, eles estão obviamente sujeitos aos princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade enunciados no art. 18º da CRP; terceiro, o MP não pode permitir-se, violando o segredo de justiça, pôr nos media amigos notícia das investigações contra políticos, dado o prejuízo imediato, e nunca reversível, do habitual julgamento público para o seu bom nome e reputação pessoal e político e para a confiança dos cidadãos na política. Ou seja, os políticos não devem ter privilégios, mas não podem ser especialmente lesados nos seus direitos constitucionais pelo populismo judiciário antipolíticos prevalecente no MP.

Adenda 3
Um leitor remeteu-me esta lista de políticos socialistas em exercício de cargos públicos que nos últimos anos foram vítimas de investigação penal que veio a ser arquivada ou de acusação, de que vieram a ser judicialmente absolvidos.
O problema é que nem o arquivamento da investigação nem a absolvição da acusação os indemniza da grave lesão da sua honorabilidade pessoal e política durante meses ou anos, por efeito da incompetência, leviandade ou pura má-fé do MP. Esta lista, a que haverá que juntar as vítimas de outros partidos (designadamente do PSD), revela uma intolerável afronta à justiça em Portugal por parte de uma instituição judiciária "em roda livre", à margem de qualquer prestação de contas democrática.

Adenda 4
O ministro João Galamba esteve sob escuta durante quatro anos, ou seja, quatro anos de toda a vida de uma pessoa sob devassa, para no fim o MP conseguir inventar um fútil crime de vantagem indevida, à conta de alguns jantares com lobbyistas! Se isto não é abuso de poder e perseguição política do MP, digam o que é..

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (11): Hipóteses de Governo - um desafio!

1. Parecendo obviamente afastada a hipótese de o partido vencedor das próximas eleições alcançar maioria absoluta, e não estando excluída a hipótese de o campo político adversário somar uma maioria no parlamento, que soluções governativas são de encarar?

Há muito tempo que tenho por boas as seguintes duas teses:

   - o partido vencedor das eleições, mesmo com escassa maioria relativa (seja o PS ou o PSD), tem prioridade em ser chamado a formar Governo pelo PR e a submetê-lo ao escrutínio parlamentar; embora tal regra não resulte diretamente da Constituição, ela sempre foi seguida até aqui, sem exceção;

   - caso esse partido não desista de formar Governo e se apresente perante a AR, o outro "partido de Governo" só deve votar contra ele e impedi-lo de assumir funções, se tiver conseguido negociar um Governo alternativo com maioria parlamentar; foi o que sucedeu em 2015, tendo António Costa declarado, logo que conhecidos os resultados eleitorais, que só votaria contra um Governo PSD-CDS, se houvesse uma solução de Governo alternativa.

2. Pode objetar-se, contra a segunda tese, que se trata de uma espécie de "moção de censura construtiva" de tipo alemão - em que uma moção de censura tem de ser acompanhada necessariamente de uma proposta de governo alternativo acordada entre os partidos proponentes da mesma -, a qual já foi proposta várias vezes em revisões constitucionais, mas nunca foi acolhida.

O facto de não estar prevista na Constituição não impede que os dois partidos de Governo a sigam nas relações entre si, pelo menos na fase de formação dos governos, ou seja, na votação parlamentar do programa de governo. Além da prática constitucional até agora - pois desde 1982, o único governo minoritário rejeitado na apresentação ao parlamento ocorreu em 2015, tendo sido acompanhado da formação de novo Governo -, há um argumento político crucial a favor dessa regra, que é o facto de, constitucionalmente, não poder haver dissolução parlamentar senão passados seis meses, o que sujeitaria o País a um "governo de gestão", aliás rejeitado na AR, por pelo menos mais oito meses.

Penso, por isso, que ambos os "partidos de governo" se deviam comprometer a respeitar essas duas regras, em prol da responsabilidade política própria e da previsibilidade do sistema político. Aqui fica o desafio!

Eleições parlamentares 2024 (10): Não vale tudo

1. Um dos muitos "intelectuais orgânicos da direita" que enchem o espaço mediático veio explicar como é que Montenegro deve vir a ser chefe do Governo, mesmo se não vencer as eleições, mas houver maioria parlamentar das direitas, apesar de o líder do PSD ter reiterado publicamente o compromisso de só governar se ganhar as eleições e que não fará acordos de Governo com o Chega.

Entre os seus argumentos insinua-se o alegado precedente de que António Costa teria feito o mesmo em 2015. Mas não é verdade: não somente Costa não assumiu nenhum compromisso semelhante, como foi deixando indícios claros antes das eleições de que poderia fazer o que veio a ser a "Geringonça" (como mostrei AQUI e importa recordar). Na intervenção dos intelectuais no combate político não vale, pelo menos, falsificar a história.

2. Pelos vistos, o coro dos intelectuais orgânicos de direita que em 2015 achavam um gravíssimo "atentado democrático" "política e moralmente ilegítimo", um "verdadeiro golpe de Estado" (cito frases da altura) o facto de um partido que não tinha ganhado as eleições formar governo, com o apoio parlamentar de "partidos radicais", prepara-se agora, não somente para se mudar de armas e bagagens para a defesa de tal solução, mas também para instruir o líder do PSD a renegar os seus inequívocos compromissos políticos perante os eleitores - isso, sim, um qualificado atentado democrático, que descredibiliza a democracia parlamentar.

Um pouco mais de escrúpulos políticos, sff.

Adenda
Um leitor pergunta qual é a minha opinião sobre essa questão. É a mesma que defendi em 2015, pois, ao contrário dos funâmbulos de direita, não mudei de opinião, só porque podem mudar os protagonistas políticos. É a seguinte: (i) num sistema de governo de tipo parlamentar, como o nosso, o partido vencedor das eleições só tem assegurado o Governo, se tiver maioria parlamentar absoluta, sozinho ou em coligação; (ii) se tal não suceder, é perfeitamente legítima, quer em termos constitucionais quer políticos, a formação de um governo por outro partido (normalmente o segundo partido mais votado) que consiga apoio parlamentar maioritário. O juízo sobre tal solução é puramente quanto ao seu mérito político. Foi por isso que, em 2015, embora defendendo (contra toda a direita) a legitimidade democrática da "Geringonça", manifestei (quase contra toda a esquerda) o meu desacordo político com ela -, no que, aliás, também nunca mudei.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (9): "Abyssus abyssum"

1. Depois de o líder do PSD ter vindo, irresponsavelmente, defender a recuperação de todo o tempo de serviço dos professores não contado durante a intervenção financeira externa (2011-205) para efeito de antiguidade, era difícil esperar que o provável próximo líder do PS não avançasse no mesmo sentido, subindo, aliás, a parada e estendendo a benesse a todos os funcionários públicos

E de facto, mesmo quando se trata de dar vantagens, há que respeitar o princípio da igualdade, abrangendo todos os que se encontram na mesma situação.

2. Contudo, além de deverem apresentar a conta precisa dos encargos financeiros que essas promessas envolvem, o que ambos os líderes partidários vão ter de explicar aos cidadãos em geral, e aos contribuintes em especial, é como se propõem financiar esse dispendioso compromisso eleitoral: cortando noutras despesas públicas (e quais?) ou voltando de novo ao défice orçamental e à dívida pública, com os óbvios efeitos sobre o custo desta? 

Numa democracia responsável, os candidatos dos "partidos de governo", como o PS e o PSD, têm obrigação de esclarecer, antes das eleições, onde vão buscar o dinheiro para pagar os aumentos significativos de despesa pública que propõem.

Adenda
Um leitor observa que sem o bom estado das finanças públicas conseguido pela política de rigor orçamental (excedente orçamental e baixa acentuada da dívida pública), nenhum dos referidos líderes políticos poderia sequer pensar em avançar com «a oportunista generosidade orçamental que agora propõem». Tem razão!

Contra a corrente (3): As maiorias absolutas não são "coisa má"

 1. O comentador político e politólogo André Freire sustenta - suponho que na 1ª qualidade - que o Governo ainda em funções comprova a sua tese de que os governos de maioria absoluta (de um só partido) são por natureza «uma coisa má». Não concordando com a tese em concreto (como defendi AQUI), tampouco a subscrevo em abstrato -, pelo contrário.

Para começar, os governos maioritários têm condições para governar de forma mais previsivel e com mais estabilidade do que os governos minoritários ou de coligação, aqueles porque ficam sempre reféns das oposições e dos grandes grupos de interesse, e os últimos porque o partido "sénior" da coligação fica refém dos partidos "juniores", pelo que ambos os tipos de governo tendem sempre a adiar reformas e a aumentar a despesa pública, para comprar apoios políticos. 

A primeira grande diferença está, portanto, em serem mais coerentes e mais estáveis politicamente, na base do mandato político correspondente ao programa eleitoral submetido aos cidadãos eleitores.

2. Em segundo lugar, os governos de maioria absoluta também são mais reformistas, porque conseguem levar de vencida as corporações instaladas: não é por acaso que, com exceção do Governo de Passos Coelho, sob intervenção externa (2011-2015), os governos mais reformistas desde 1976 foram indubitavelmente os governos maioritários de Cavaco Silva (1997-1995) e de Sócrates (2005-2009).

Por último, mas de primeira importância, os governos maioriários são também mais responsáveis politicamente perante os cidadãos, porque no final do mandato não podem desculpar as suas falhas ou o incumprimento do seu programa nem com a falta de apoio parlamentar nem com os parceiros de coligação. 

Além da instabilidade governativa que lhes é inerente (poucos chegaram ao fim), os governos minoritários e os de coligação tendem também a fugir à responsabilidades política pelo seu falhanço, à margem de um dos grandes princípios da teoria republicana do governo.

3. Além disso, dada a inviabilidade política de soluções de "bloco central" entre nós, as maiorias absolutas tornam-se o único antídoto eficaz contra a tentação de acordos de governo, expressos ou implícitos, dos dois tradicionais partidos de governo (PS e PSD) com os partidos radicais, à sua esquerda ou à sua direita, respetivamente.

Não tenho dúvidas em afirmar que é preferível um governo maioritário do PS a um governo de coligação PS-PCP-BE, ou um governo minoritário dependente desses dois partidos (como foi a chamada "Geringonça"), tal como é melhor ter um governo maioritário do PSD do que um governo de coligação PSD-IL ou PSD-Chega, ou um governo minoritário dependente deles. Ou seja, ao contrário de A. Freire, eu penso que os governos de maioria absoluta são, em princípio, uma "coisa boa". 

O problema é que, em sistemas proporcionais como o nosso, trata-se de um produto com pouca oferta no mercado eleitoral, e parece que destinado mesmo a desaparecer. Ainda haveremos de o lamentar...

Adenda
Um leitor defende que, não havendo em geral maiorias monopartidárias, os governos de coligação são preferíveis aos governos minoritários, os quais têm de negociar todas as suas políticas caso a caso, a começar pelo orçamento, à custa do aumento a despesa pública, e que «podem ser derrotados ou demitidos a qualquer momento por "coligação negativa" das oposições». Tem razão, mas as coligações - que pressupõem um programa de governo comum, governo compartilhado e solidariedade a nível parlamentar -, só resultam, se houver uma suficiente afinidade política entre os partidos coligados (como era o caso das coligações PSD-CDS). Ora, não vejo que "química" política é que pode associar o PS ao PCP e ao BE numa coligação, ou o PSD ao Chega (ou mesmo à IL)... 

Adenda 2
Outro leitor objeta que «a maioria absoluta tende a dar em poder absoluto», pelo que é melhor não haver. Sucede, porém, que se há um regime de tipo parlamentar em que um governo maioritário não corre o risco de abuso de poder dos sistemas parlamentares maioritários (como o Reino Unido ou a Índia) é justamente o nosso, onde são decisivos os limites constitucionais do poder das maiorias absolutas, como já argumentei várias vezes, nomeadamente AQUI.

Adenda 3
Um leitor observa que o principal senão dos governos minoritários, e mesmo dos de coligação, é o "poder de veto" que conferem aos partidos minoritários, «muito acima da sua expressão eleitoral, o que é antidemocrático». De acordo.

Laicidade (14): O caso dos servidores públicos

1. Embora entenda que o princípio da laicidade do Estado - ou seja, a separação entre o Estado e a religião - pode ser tolerante com o uso de vestes ou símbolos religiosos pelos servidores públicos, admito, porém, que, numa atitude mais consequente, as autoridades públicas podem estabelecer a sua proibição, nomeadamente na escola pública, a fim de assegurar uma estrita neutralidade religiosa dos serviços públicos, desde logo perante os cidadãos, como acaba de decidir o Tribunal de Justiça da UE

Ponto é que tal proibição não seja discriminatória, nem na lei nem na prática, devendo abranger os símbolos de qualquer religião, e não especialmente, como sucede por vezes, os símbolos islâmicos, a começar pelo lenço de cabeça.

2. Em contrapartida, continuo a entender que não há nenhuma justificação para estender tal proibição aos próprios utentes dos serviços públicos (como os alunos das escolas públicas), como sucede em França, ao abrigo de uma conceção fundamentalista da laicidade do Estado (como AQUI critiquei).

Não sendo os utentes dos serviços públicos representantes nem servidores do Estado, não se vê como é que é que se pode restringir a sua liberdade religiosa a pretexto da separação entre o Estado e a religião.

Adenda
Um leitor objeta que em Portugal ninguém propõe "códigos de indumentária religiosamente neutra" nos serviços públicos e que isso só viria «criar artificialmente um conflito político e religioso, que só beneficiaria a extrema-direita». Concordo!