quinta-feira, 28 de julho de 2022

Acuso: Património público em ruínas

Os três edifícios do lado direito na foto, localizados no sítio do Farol, ilha da Culatra, à entrada da Barra de Faro - Olhão, são património público, sob jurisdição da Administração dos Portos de Sines e do Algarve, e encontram-se abandonados e em processo de ruína. Há mais dois edifícios nas mesmas condições.

Se o Estado não precisa deles, como parece, porque não os aliena ou concessiona a qualquer entidade de interesse público? O abandono e a ruína é que não são solução. Um Estado que deixa arruinar o património público não merece a confiança, nem os impostos, dos cidadãos.

Adenda 
Um leitor argumenta que «é do interesse do Estado que essa ilha fique tendencialmente desabitada», pelo que «o interesse do Estado é de facto que todos os edifícios na ilha caiam progressivamente em ruína, e não que sejam utilizados». Concordo que a Culatra e demais ilhas-barreira nunca deviam ter sido ocupadas, mas foram-no, havendo na Culatra três núcleos habitacionais, entre eles o Farol. Ora, as tentativas dos governos Sócrates e Passos Coelho de demolir as construções ilegais - que, aliás, não incluíam o núcleo original do Farol, onde se encontram os tais edifícios públicos - falharam de forma humilhante para o Estado. Com os governos de António Costa tal propósito foi esquecido, revelando que, passadas estas décadas, ele se tornou politicamente inviável. De resto, mesmo se fosse intenção do Estado desfazer-se daqueles edifícios, a solução seria demoli-los e renaturalizar o terreno, e não abandoná-los. Não há pior imagem para o Estado do que o património público em ruínas.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (39): "De súbditos a cidadãos"

Acaba de ser publicado, em versão eletrónica (a que se seguirá a versão impressa), o livro De súbditos a cidadãos, do Vintismo à atualidade, que reúne as quatro comunicações apresentadas por outros tantos autores no colóquio com o mesmo nome realizado em outubro de 2020, no âmbito das comemorações dos 200 anos da Revolução Liberal, numa parceria entre a Universidade Lusíada / Porto e o município do Porto.

A essas comunicações os coordenadores juntaram um estudo sobre o primeiro "catecismo constitucional" publicado entre nós, em 1820, cujo texto (de autor anónimo) é igualmente reproduzido, como exemplo de uma prática de educação cívica nos primórdios do constitucionalismo, seguindo o exemplo de França e da Espanha.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Amanhã vou estar aqui (11): Bicentenário da Constituição de 1822, na Feira do Livro de Coimbra

1. Amanhã, sexta-feira, pelas 21:00, vou estar na Feira do Livro de Coimbra - que este ano regressou à Praça do Comércio, na Baixa da cidade (programa completo AQUI) -, para falar do bicentenário do constitucionalismo entre nós, junto com o meu colega e coautor José Domingues, a propósito da Constituição de 1822, saída da Revolução Liberal de 1820, que vai fazer 200 anos em 23 de setembro deste ano e de que a CRP de 1976 é herdeira em muitos aspetos.

Trata-se de um dos grandes bicentenários nacionais a assinalar este ano, junto com a independência do Brasil, a realização das primeiras eleições parlamentares e a morte do principal protagonista da Revolução Liberal e das Cortes Constituintes, Manuel Fernandes Tomás.

2. Fazemos uma história do nascimento dessa nossa primeira Constituiação e descrevemos os seus traços fundamentais no 1º volume da nossa trilogia sobre o Bicentenário da Revolução Liberal I - Da Revolução à Constituição, Lisboa, Porto Editora, 2020 (imagem acima).
Note-se que Coimbra (cidade, câmara municipal e Universidade) é tudo menos alheia a esta história, como mostrámos no nosso livro 'Há Constituição em Coimbra': no bicentenário da Revolução Liberal, Coimbra, CMC, 2020 (imagem abaixo). 
Bem perto da Feira do livro, as ruas Ferreira Borges e Fernandes Tomás e, mais acima, a de Borges Carneiro (da Sé Velha ao Museu Machado de Castro), testemunham a devida homenagem da cidade aos heróis de 1820-22.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Regionalização (9): Não é bem assim!

Com base na opinião de um constitucionalista, e aparentemente com a concordância do Presidente da República, o Público considera que o referendo sobre regionalização já não poderá ter lugar, dado que ele teria de ser precedido de uma lei-quadro que precisa de maioria de 2/3, o que se torna impossível com a oposição do PSD.

Há aqui, porém, um equívoco. Segundo a Constituição, a lei-quadro da regionalização - que, aliás, já existe desde 1991 (aprovada numa AR com maioria absoluta do PSD...) e não foi revogada nem caducou com o referendo de 1998 - só precisa de maioria absoluta. O que precisaria de maioria de 2/3 seria somente o modelo de designação do órgão executivo das autarquias regionais, nos termos resultantes da revisão constitucional de 1997. Todavia, uma disposição transitória dessa mesma revisão (art. 298º) estabelece explicitamente que «até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 3 do artigo 239.º [o que até agora não aconteceu], os órgãos das autarquias locais são constituídos e funcionam nos termos de legislação correspondente ao texto da Constituição na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro», o que obviamente salvaguarda o regime estabelecido para as regiões na referida lei-quadro de 1991. Por conseguinte, só se se pretendesse alterar esse regime (e não se vê porquê...) é que seria necessária uma maioria de 2/3.

Em conclusão, não é por razões jurídicas, mas sim políticas (como argui AQUI), que o referendo sobre a descentralização regional pode ter sido "assassinado" pelo novo líder do PSD (com indisfarçável aplauso do PR)...

Adenda
Um leitor comenta malevolamente que constitucionalista e PR se deixaram «confundir pelo sua fobia anti-regionalização». O problema, quanto ao PR, está em que, incumbindo-lhe velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições da República, ele não pode deixar-se tomar por nenhum fundamentalismo político-doutrinário contra uma instituição prevista na Constituição, tornando-se cúmplice do continuado incumprimento desta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Guerra na Ucrânia (44): Quanto mais longa, mais penosa

1. O Financial Times informa que a Alemanha incorreu em défice comercial externo, pela primeira vez desde há três décadas. Entre as causas deste défice avulta a subida do custo das importações de energia e outras commodities, em consequência da guerra da Ucrânia e das sanções ocidentais à Rússia.

Esta má notícia, particularmente negativa num país habituado a considerar-se uma potência comercial superavitária, vem somar-se a outras, como a inflação também em níveis máximos de décadas, a necessidade de reativação de centrais elétricas a carvão (recuando na transição energética), o anúncio de próximo racionamento de gás. 

O quadro pode tornar-se ainda mais preocupante, se a própria Rússia, revertendo a lógica das sanções, continuar a reduzir o abastecimento de gás aos países da União...   

2. Nestas condições, não será improvável que a opinião pública alemã se torne cada vez menos disponível para ser "vítima colateral" de uma guerra que ameaça prolongar-se indefinidamente e que, quanto mais se prolonga, mais triunfos territoriais proporciona ao invasor e mais custos vai envolver na recuperação pós-bélica da Ucrânia, neste momento já estimada em cerca de 700 000 milhões de euros (que também vai impender em boa parte sobre os contribuintes alemães). 

Se esta evolução negativa se mantiver, vai seguramente acabar por impor-se a alternativa de uma cessação negociada das hostilidades, a fim de interromper a sucessão e acumulação de perdas, cada vez mais dolorosas para a parte vencida.

Amanhã vou estar aqui (10): A política de comércio externo da UE


Amanhã de manhã, vou participar, mais uma vez, no Colóquio de Verão luso-brasileiro, promovido pelo Associação de Estudos Europeus da FDUC, intervindo no painel sobre Economia e Comércio Internacional (programa do evento, que hoje se inicia, na página referida). 
Proponho-me falar sobre os mais recentes desenvolvimentos da política de comércio externo (e de IDE) da UE, que acompanho regularmente, e em particular sobre o importante acordo UE-Mercosul, cuja ratificação está em risco.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Regionalização (8): Assassinato a frio

Não deixa de ser surpreendente que o novo líder do PSD tenha anunciado friamente a "morte" da regionalização no Porto, provavelmente a cidade mais favorável ao avanço da descentralização regional (incluindo nas hostes do PSD e entre os seus "autarcas" municipais) e a que mais teria a ganhar com ela, como capital da região Norte. 

Claramente, além de denegar a Costa a hipótese de um enorme trunfo político nesta legislatura, Montenegro paga o preço da necessária simpatia do inquilino de Belém, assim como de Cavaco Silva (conhecidos adversários da regionalização), e da inclusão na sua equipa dirigente de intransigentes inimigos da criação de autarquais regionais. 

Também para o PSD, o poder está em Lisboa e, para o conquistar, não se pode hostilizar a capital.

Adenda
Um leitor objeta que nem a lei das regiões nem a convocação do referendo precisam do voto do PSD, bastando a maioria absoluta do PS, sem contar com outros partidos adeptos da descentralização regional. Sendo isso verdade, não é menos verdade que, com a oposição política do PSD, o referendo seria muito provalmente negativo, sendo, portanto, irresponsável convocá-lo. Só se fosse para arrumar definitivamente a questão e apagar esse capítulo constitucional, há quase meio século por cumprir

Outras causas (7): Contra o império do automóvel

1. Na quinta-feira passada, ao final da tarde, demorei quase uma hora no trânsito supercongestionado do Porto, para ir de Aldoar à estação de Campanhã, tendo perdido o comboio para Coimbra. 

O motorista da Uber, brasileiro, comentava sobre a irracionalidade do regresso em força do automóvel à cidade, depois da pandemia, apesar da enorme subida do preço dos combustíveis, e dos seus custos em tempo e poluição ambiental. 

Lamentavelmente, em vez de aproveitar a subida da cotação internacional dos combustíveis para impulsionar medidas contra o uso do automóvel e pela poupança de combustível, em prol da agenda climática, da qualidade de vida urbana e da balança comercial externa, o Governo optou por reduzir a carga fiscal, aliviando o seu impacto sobre o consumo de combustíveis. Além de socialmente regressivo, esse bónus fiscal não contribui para a redução do uso do automóvel e para a necessária poupança de combustível.

2. Como venho comentando há muitos anos, existe entre nós uma manifesta relutância em tomar as medidas necessárias para travar a invasão automóvel das cidades, que hoje são comuns em muitos países, nomeadamente as seguintes:

    - aumentar o IUC anual, tornando a posse de automóvel mais custosa;

    - acabar com o estacionamento gratuito, a começar nos estabelecimentos públicos, devendo o custo do estacionamento passar a entrar na equação de custos da posse de automóvel;

    - alargar as áreas vedadas ao trânsito nos centro das cidades e multiplicar as faixas e vias reservadas a transportes públicos;

    - melhorar os transportes públicos, incluindo itinerários gratuitos entre parques de estaciomento na periferia e o centro das cidades, e favorecer a solução dos automóveis partilhados;

    - introduzir portagens eletrónicas no acesso às cidades e no acesso aos centros urbanos.

O combate ao império do automóvel nas cidades passa necessariamente por tornar mais onerosa a sua posse e utilização, enfrentado o comodismo individual e o poderoso lobby automóvel. Trata-se, aliás, da única solução equitativa, indemnizando a coletividade pelas pesadas "externalidades negativas" geradas pela utilização do automóvel individual.

Adenda
É incompreensível que, nestas recomendações para Portugal, o FMI proponha ao aumento do IMI (imposto anual sobre as casas) e não faça o mesmo para o IUC (imposto anual sobre os automóveis), apesar das enormes "externalidades negativas" destes.

sábado, 2 de julho de 2022

Antes que seja tarde (3): A questão da sustentabilidade do SNS

1. Não deixa de ser curioso que, numa conjuntura crítica de alguns serviços de saúde, a ministra da Saúde esteja a ser acusada de "coveira" do SNS por comentadores e políticos da direita que nunca morreram de amores por ele e que, pelo contrário, sempre defenderam, por razões político-doutrinárias, um sistema de saúde alternativo, baseado na liberdade de escolha dos utentes entre prestadores dos setores público, social e privado.

Não faltam também os habituais comentários críticos à esquerda, segundo os quais tudo se resume a falta de pesssoal e ao subfinanciamento do SNS, em consequência da maléfica opção do PS por uma política de rigor orçamental e de contenção do défice e da dívida pública, sem se quererem dar conta de que o substancial aumento de pessoal e do financiamento dos últimos anos não resultou em aumento correspondente de consultas, exames e cirurgias.

A questão, a meu ver, é que o SNS padece crescentemente de problemas estruturais geradores de ineficiência e de desperdício, que não são resolúveis nem com medidas de contingência avulsas nem com "despejar dinheiro" sobre eles.

2. Como tenho defendido anteriormente em várias ocasiões (nomeadamnte na série de artigos sobre os 40 anos do SNS aqui no Causa Nossa), entre os referidos fatores contam-se os seguintes:
    - acumulação no Ministro da Saúde da política de saúde e da gestão do SNS, sobre quem recaem todos os problemas e dificuldades deste, politizando-os;
    - deficiente contratualização de cuidados e de custos entre a gestão central do SNS e as entidades prestadoras (hospitais, etc.) e inconsequência do incumprimento dos contratos;
    - falta de avaliação de desempenho de gestores, serviços e profissionais, incluindo para efeitos de remuneração diferenciada; 
    - insuficência dos cuidados primários e transformação das urgências hospitalares em porta de entrada massiva dos utentes no sistema de saúde;
    - inexistência de uma base nacional de dados de todos os utentes, o que gera repetição redundante de exames e tratamentos;
    - irrefletida redução do horário semanal de trabalho na função pública para as 35 horas, que privou o SNS de milhões de horas de trabalho normal por ano e desarranjou os ciclos de turnos de serviço; 
    -  acumulação generalizada de emprego no setor privado, que faz com que em muitos hospitais, as salas e equipamentos de cirurgia só funcionem de manhã, com evidente subutilização de recursos; 
    - instrumentalização dos hospitais como serviços de apoio social a pessoas que já não carecem de internamento, mas que não dispõem de apoio familiar;
   - acumulação de funções de direção de serviços no SNS e em empresas de saúde privadas, em manifesto conflito de interesses, a que se tem somado recentemente a despudorada participação de alguns deles em campanhas publicitárias das respetivas empresas privadas (como referido em post anterior);
    - complacência do Estado com o malthusianismo e com o abuso de poderes das ordens profissionais, especialmente da Ordem do Médicos, transformadas em sindicatos oficiais das respetivas profissões, à custa das suas missões públicas de fiscalização e de disciplina profissional;
    - papel deletério da ADSE, gerida pelo próprio Estado, como exemplo de um sistema de saúde alternativo ao SNS, baseado no autofinancimento, na separação entre a entidade financiadora e os prestadores dos cuidados de saúde, na liberdade de escolha dos utentes e na prontidão dos cuidados de saúde.

É fácil ver que a maior parte deste fatores derrotam a vontade reformista de qualquer ministro da Saúde, por maior que ela seja - o que, aliás, não tem sequer abundado há muito tempo! 

3. Com o tempo, tenho vindo a ponderar se um SNS de tipo britânico como o nosso, de gestão centralizada e baseado no papel tendencialmente exclusivo do Estado como financiador e prestador de cuidados (agravado pelo imprudente abandono das PPP) é compatível com a idiossincrasia nacional relativa à tradicional ineficiência da gestão pública, ao débil sentido da ética do serviço público e da separação entre interesse público e interesses privados, ao hipercorporativismo profissional das ordens, ao abuso irresponsável do que é gratuito, como se não custasse dinheiro, etc.

Forçoso é constatar que o SNS vai reduzindo a sua base social de utentes, correndo o risco de, a breve prazo, ser o serviço de saúde apenas dos que não beneficiam da ADSE ou de seguros de saúde, cada vez mais numerosos. A prosseguir este desenvolvimento, o SNS arrisca-se a perder apoio social e político como serviço supostamente universal financiado pelos impostos de quem o não utiliza.

4. Votei militantemente o SNS na Constituinte de 1975/76 e a sua criação legislativa em 1979; como juiz do Tribunal Constitucional ajudei a salvar o SNS da tentativa de extinção por um Governpo da AD (PSD e CDS) nos anos 80; tenho pugnado ao longo dos anos pela sua consolidação e pelo seu aperfeiçoamento. Mas, como se retira deste post, estou a ficar cada vez mais cético quando à viabilidade do modelo vigente.

Quanto mais tarde se assumir que existe uma questão de sustentabilidade social e política (e não somente orçamental) do SNS, mais penosa será a sua reforma.


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Antes que seja tarde (2): Reduzir a inflação

1. A inflação continua a sua escalada na Europa e em Portugal, batendo records de há muitos anos e aprofundando o seu impacto negativo sobre o poder de compra, o valor das poupanças, as rendas e os preços da habitação, a confiança na economia, etc.

Proporcionada por uma prolongada política monetária facilitista do BCE e por políticas orçamentais expansionistas nacionais, apesar da forte retoma económica, e estimulada pela guerra da Ucrânia (subidas dos combustíveis e de commodities alimentares), a escalada dos preços exige medidas efetivas, quer na frente monetária (que o BCE só agora iniciou, e timidamente), quer na frente das políticas de rendimentos, sob pena de criação de um espiral inflacionista sem controlo.

2. O facto de a guerra da Ucrânia estar para durar não permite alimentar ilusões sobre a persistência prolongada de fatores favoráveis à subida dos preços nem sobre o risco sério do seu agravamento endógeno, pela pressão para a atualização de salários e pensões em função da inflação. 

Quanto mais tardias forem essas medidas (subida dos juros, travagem nas subidas de salários e pensões, restrição do crédito ao consumo, etc.), mais duras elas terão de ser no futuro e mais penosas serão as suas consequências, designadamente a eventualidade de uma recessão económica.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não dá para entender (25): A "salsada" aeroportuária

1. Poucas semanas depois de "convidar" o PSD a indicar a solução para o novo aeroporto, o Governo veio anunciar uma solução-surpresa, sem sequer informar previamente o líder do PSD, que só no final desta semana assume o seu cargo, expondo-se à justa crítica deste.

Um pouco mais de consistência era bem-vinda!

2. Quanto à solução agora adotada, o Governo retoma a solução Portela+Montijo, mas não como alternativa ao novo aeroporto, como tinha sido proposto pela ANA/Vinci, sendo agora uma solução temporária, enquanto o novo aeroporto, agora ressuscitado, e a localizar em Alcochete, não estiver operacional, substituindo Lisboa.

Para além de não prevista no contrato de concessão, a adoção de uma solução transitória (Montijo) vai fazer acrescer os respetivos custos aos do novo aeroporto. O País vai pagar um pesado investimento adicional, por irresponsável demora política na decisão sobre o novo aeroporto.

3.  A decisão de optar por Alcochete, também do outro lado do Tejo, para a localização do novo aeroporto, faz certamente rejubilar o lobby financeiro-imobiliário que desde o início apostou nessa solução para instalação de uma "sucursal" da capital, com proveitos de milhares de milhões de euros, mas condena definitivamente o País a uma solução aeroportuária territorial e demograficamente descentrada e que arrasta consigo a necessidade de um gigantesco investimento nos acessos rodo-ferroviários, incluindo uma nova travessia sobre o Tejo.

Em vez de reduzir a "salsada" política do novo aeroporto, esta nova decisão só serve para a aumentar.

Adenda (1/7)
Embora condenando o Ministro pela precipitada decisão à revelia do Primeiro-Ministro e das prometidas negociações com a oposição, um leitor lamenta a revogação da nova solução, por concordar com o «regresso à ideia de um aeroporto de raiz para substituir a Portela» e por lhe parecer que é necessária uma solução transitória para responder ao enorme congestionamento de Lisboa que aí vem. Estou inteiramente de acordo com a retoma da ideia de um novo aeroporto, que nunca deveria ter sido abandonada, em favor da alternativa Portela+Montijo que a ANA/Vinci atravessou por interesse próprio e que o Governo Costa I erradamente validou -, para agora abandonar, perdidos mais cinco anos. O que tenho por seguro é que, na enorme "salsada" política em que o problema se transformou, o Governo não pode avançar com nenhuma solução sem tentar um acordo com o PSD, incluindo a abertura a uma eventual alternativa à errada solução de Alcochete para o novo aeroporto.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Concordo (22): Acabar com a água a baixo custo

Concordo inteiramente com esta proposta do regulador público setorial para alinhar o preço da água pelo menos pelos seus custos, acabando com a sua subsidiação, como sucede em muitos municípios, excepto o apoio às famílias de menores recursos, por se tratar de um «serviço de interesse económico geral» (SIEG), a que todos devem ter acesso, independentemente dos recursos económicos.

Para além de a subsidiação geral fomentar o desperdício de água, que se vai tornando um bem escasso, à medida que a seca se agrava, não se comprende que os municípios gastem recursos financeiros a subsidiar a água de quem não precisa e depois invoquem falta dinheiro para financiar outras tarefas coletivas (transportes públicos, escolas, etc.).

Como há muito defendo, ressalvadas as tarifas sociais, nas public utilities o princípio deve ser o do utilizador-pagador.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Não dá para entender (24): Fraude impune no SNS

Não se compreende porque é que um caso de fraude no registo de falsas presenças de médicos em estabelecimentos do SNS, alegadamente cometidas em 2019 - o que constitui tripla infração (criminal, disciplinar e deontológica) - ainda está por apurar e por punir três anos depois.

O que é estranho é que médicos possam dar-se fraudulentamente como presentes ao serviço, sem deixarem rasto de nenhuma atividade (consultas, exames, cirurgias, visita a doentes, simples reuniões, etc.), o que quer dizer que os estabelecimentos do SNS não procedem a nenhum controlo diário da atividade do seu pessosal. Depois admiremo-nos com a lamentável e onerosa ineficiência do SNS!

Assim, o SNS não vai sobreviver!

Guerra na Ucrânia (43): Escalada

A CNN dá conta de uma investigação do New York Times, segundo a qual agentes da CIA e comandos dos Estados Unidos e de outros países da Nato estão na Ucrânia, atuando «no terreno, com objetivo de coordenar o fornecimento de armas e informação à Ucrânia, bem como treinar as forças de Kiev para a frente de batalha»
Não é preciso sublinhar os riscos desta escalada de intervenção ocidental no conflito, desmentindo, aliás, as garantias dadas até agora às opiniões públicas sobre os limites externos da ajuda ocidental. Por um lado, essas forças podem tornar-se alvo de ataques russos; por outro lado, com o avanço da invasão russa no território e as crescentes perdas das forças ucranianas, pode ser irresistível a tentação de intervenção direta das forças especiais ocidentais em operações de combate. 
Qualquer das hipóteses poderia constituir o rastilho para um temível confronto militar entre a Rússia e Nato, que obviamente não ficaria contido dentro dos limites da Ucrânia.

Adenda
Um leitor considera que, havendo um explícito compromisso ocidental de «não deixar cair a Ucrânia», a intervenção militar da Nato se torna inevitável quando for claro que a Kiev está mesmo a perder a guerra e que não há nenhuma esperança realista de reversão da situação. Ominosa perspectiva...

Adenda
Há também a registar a escalada na violência da invasão russa contra alvos civis. O bombardeamento de um centro comercial em Kremenchuk, mesmo que este pudesse alojar combatentes, ultrapassa o tolerável em operações bélicas. Com atos destes, a Rússia não aprofunda somente a condenação ocidental da invasão, arriscando-se também a mobilizar a condenação em países por esse mundo fora, que até agora se têm mantido à margem da guerra.

domingo, 26 de junho de 2022

Corporativismo (24): Linha vermelha

1. Ao anunciar publicamente que, por discordar da lei da eutanásia, não irá nomear um representante para a Comissão de monitorização da aplicação da lei, a Ordem do Médicos ultrapassa uma linha vermelha que o Estado não pode consentir. 

De facto, é a autoridade do Estado, na sua forma mais elementar, que fica em cheque, se uma instituição pública, criada pelo Estado para o exercício de poderes públicos, se recusar a cumprir uma estrita obrigação estabelecida por lei da República.

Esta provocação da OM não pode vingar!

2. Estranhando que este despautério da OM não tenha suscitado nenhuma reação oficial, como se fosse irrelevante, parece óbvio que neste caso, dada a sua gravidade extrema, o Governo não pode "assobiar para o ar", como tende a fazer quando a autoridade do Estado é desafiada por poderosas corporações, tendo de atuar de forma exemplar (como já fez anteriormente, ao ordenar, pela primeira vez,  uma inspeção à Ordem dos Enfermeiros).

Se, chegado o momento, a OM concretizar a sua ameaça, há duas vias separadas ou conjuntas para lidar com a situação: (i) solicitar ao Ministério Público que, no uso do seu poder (e obrigação) de defesa da legalidade, recorra à justiça administrativa para obrigar a Ordem a cumprir a lei, mediante injunção judicial; (ii) equacionar a hipótese extrema de extinção legal da Ordem, por desafio à ordem democrática.

Vai sendo tempo de meter na ordem as ordens fora da lei.

Adenda
Um leitor objeta que «a OM foi criada para certas funções, e o Estado não a pode forçar, retroativamente, a também cumprir outros objetivos, pelo que o Estado não tem o direito de impor à OM novas obrigações, que não estejam previstas na lei da sua fundação; estar representada na [tal] comissão é um direito, e não um dever, da OM». Discordo em absoluto. Mesmo que se tratasse de novas funções - o que não é o caso, pois as ordens sempre foram chamadas a aconselhar o Estado na sua área de atuação -, as entidades públicas têm as atribuições definidas por lei, que as pode alterar livremente. Uma tarefa imposta por lei a uma entidade pública não é um direito - é uma obrigação! 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (42): União Europeia sofre e erra

1. Como era de temer, a UE transformou-se, por desígnio próprio, na principal "vítima colateral" da guerra por interposta Ucrânia entre a Rússia e a Nato. 

A última "baixa em combate" parece ser a política de transição energética da União. Perante a redução de fornecimento do gás, que a própria Rússia decidiu, em contra-ataque às sanções europeias, vários países europeus (Alemanha, Áustria e Países Baixos) decidiram retomar ou reforçar a produção de eletricidade a partir da queima de carvão. Como não há nenhuma perspetiva de a guerra e as sanções e contrassanções terminarem a curto prazo, o mais provável é que este regresso ao carvão venha afetar seriamente as metas e o calendário de descarbonização estabelecidas pela União.

Um sério contratempo.

2. Mais grave pode ser o caso da imprudente restrição aplicada pela Lituânia ao trânsito de mercadorias entre a Rússia e o seu território separado de Kalininegrado (no mar Báltico).

Alegadamente em cumprimento das sanções aplicadas pela União, essa restrição viola, porém, um sólido princípio de direito comercial internacional sobre a liberdade de trânsito de mercadorias entre territórios descontínuos de um país através de terceiros Estados interpostos. Ora, as sanções comerciais da União contra a Rússia visavam naturalmente a importação de produtos russos para dentro da União, o que não é o caso. 

Compreende-se mal, por isso, este impulso para suscitar mais uma escalada no confronto com a Rússia, que pode levar esta a declarar a situação como um casus belli, de imprevisíveis consequências, seguramente nefastas.

Adenda
Pelo que digo acima (2.), concordo obviamente com esta opinião, no DN de hoje, sexta-feira, de que a UE deve «rever, sem demoras, a sua posição em relação a este bloqueio parcial» do trânsito para Kalininegrado. Pior que errar é não retificar prontamente os erros. Dar à Rússia razões de queixa legítimas nesta guerra é um erro crasso.

Adenda (2)
A Alemanha denunciou como «ataque económico» a redução do fornecimento de gás pela Rússia, mas a acusação não faz nenhum sentido. Quem desencadeou a guerra económica contra a Rússia, reagindo à invasão russa da Ucrânia, com sanções económicas sem precedentes, incluindo a ameaça de corte total de importação de energia, foi a UE (junto com os EUA e outros países da Nato); por isso, a Alemanha não pode vir queixar-se, se a Rússia responde no mesmo plano. Tal como na invasão da Ucrânia, em relação à Rússia, também nas sanções económicas, "quem vai à guerra, dá e leva".


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Era o que faltava! (4): Direito à greve em forças de segurança?

O diretor nacional da PSP terá declarado que o pessoal do SEF que seja integrado na PSP mantém o direito à greve.

Lê-se e é difícil acreditar! Que os agentes do SEF gozassem de tal direito, era grave, tratando-se de uma polícia, e admitindo expressamente a Constituição que serviços e forças de segurança não gozem desse direito (mesmo quando tenham sindicatos). Mas, que depois de extinta aquela polícia e de integrados os seus membros na PSP, estes mantenham tal direito, quando os agentes originários desta polícia não dispõem (e bem!) dele (salvo o pessoal civil), criando uma dualidade de regimes dentro da mesma força, é um contrassenso.

O mais grave disto tudo é que, vários dias depois de emitidas, estas declarações não mereceram nenhum comentário ministerial. Há alguma coisa que nos escapa, ou queremos mesmo pôr em causa a segurança pública nas fronteiras?!

Era o que faltava! (3): A Ordem dos Advogados acima da lei?!

Não sendo advogado, não me tinha dado conta de que o Boletim da Ordem dos Advogados informa que «não adopta [sic] o novo Acordo Ortográfico», apesar de este estar em vigor desde 2015, sendo de presumir que a Ordem também o não faz na sua correspondência oficial e nos processos administrativos, disciplinares, judiciais, etc., em que intervém. O site da Ordem insere a mesma rejeição do AO (imagem acima)

Considero uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República por parte de uma entidade pública, criada pelo Estado e encarregada do desempenho de tarefas públicas de regulação e disciplina da profissão de advogado. Nem sequer pode ser invocado o facto de não haver sanção prevista para o incumprimento da ortografia oficial, sobretudo tratando-se de um organismo público empenhado na observância do Estado de direito, sabendo-se que a ordem jurídica, a começar pela Constituição, inclui outras normas "imperfeitas", desprovidas de sanção, sem que isso torne menos ilícita a sua violação.

Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?

Adenda
Um leitor bem-humorado comenta que, para ser coerente, a OA deveria passar a usar a ortografia vigente em 1926, aquando da sua criação. Observo, porém, que nessa altura, já a ortografia tinha sido objeto de uma "abusiva" norma oficial em 1911, pelo que a Ordem deveria, sim, regressar à ortografia livre anterior à República... 

Adenda 2
Pergunta provocatória de um leitor: «como é que os advogados podem exigir nos tribunais o cumprimento da lei, se eles próprios se recusam a cumpri-la?» Boa!

Adenda 3
Outro leitor objeta que o AO «não é uma lei», pelo que a crítica não se justificaria. Vê-se logo que não se trata de um jurista, pois, se o fosse, saberia bem que os acordos internacionais vigoram diretamente na ordem interna e criam direitos e obrigações, sem necessidade de transposição legislativa. Mais, de acordo com a interpretação dominante, os acordos internacionais prevalecem sobre lei interna incompatível com eles, assim respeitando o compromisso do Estado com terceiros países. Por isso, o AO nem sequer pode ser validamente afastado por uma lei, o que torna o seu incumprimento ainda mais grave do que se se tratasse de uma lei interna. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Corporativismo (23): Até a IL se retrai?

1. Penso que faz sentido esta proposta da IL, de suprimir, pura e simplesmente, uma parte das ordens profissionais, por nenhum interesse público de regulação e disciplina profissional as justificar, não passando de entidades de representação e de defesa oficial de interesses profissionais, que não devem ter lugar numa democracia liberal e numa economia de mercado baseada na liberdade profissional, na liberdade de associação e na concorrência na prestação de serviços profissionais.

Não deixa de ser estranho que o fim do corporativismo oficial do chamado Estado Novo em 1974 não só não tenha sido acompanhado da supressão das organizações de representação corporativa oficiais, mas antes tenha dado lugar à sua proliferação continuada, sem princípios nem coerência, às mãos das maiorias políticas do PS e do PSD, sem distinção. Um contrassenso político e doutrinário!

2. Atualmente, entendo, porém, que não basta suprimir umas quantas ordens profissionais injustificáveis. 

Ao fim destas décadas de descabelado malthusianismo, protecionismo e monopólio corporativista das ordens profissionais em geral, assim como de ingerência em reivindicações laborais, como se sindicatos fossem, perdi qualquer esperança - que me esforcei por alimentar durante muito tempo -, de conciliar a representação e a defesa oficial de interesses profissionais - que caracteriza as atuais ordens - com a liberdade profissional, a concorrência no mercado de serviços e os direitos dos clientes. 

Tal conciliação tem-se revelado impossível na prática, dado o manifesto conflito de base entre o interesse público na regulação e disciplina profissional e a representação e defesa corporativa / sindical de interesses profissionais, sempre empenhada no protecionismo e no alargamento do exclusivo profissional.

3. Por isso, entendo que, mesmo nos poucos setores onde, numa economia de mercado, se justifica a regulação e disciplina pública especial das profissões - aqueles onde há "falhas de mercado" qualificadas e / ou que operam na prestação de "serviços de interesse económico geral" (SIEG) -, as ordens devem deixar de ter funções de representação e defesa de interesses profissionais  - que numa democracia liberal devem caber a associações de iniciativa dos interessados (como nas demais profissões) -, devendo, por isso, ser reconvertidas em autoridades de regulação independente (em relação ao Governo e em relação às profissões), em que os profissionais não devem ter mais do que uma representação minoritária.

É essa metamorfose estrutural das ordens que penso que devia ser coerentemente defendida hoje em dia.

Adenda
A mais ridícula ordem profissional é, a meu ver, a Ordem dos Economistas, criada em 1998, visto ser evidente que não há nenhuma "falha de mercado" nesse setor de serviços profissionais, nem as empresas precisam de nenhuma proteção especial contra os seus economistas. É um escandaloso caso de "desvio do poder" legislativo e de instrumentalização do poder público para a proteção de interesses profissionais. O certo, porém, é que houve um Governo que a instituiu e um PR que a promulgou sem, ao menos, o protesto de um veto político.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Ai, Portugal! (8): O desastre anunciado do SNS


1.
Estes dois gráficos, reproduzidos do Público de hoje, deveriam provocar um sobressalto em todos os que continuam a acreditar que o SNS constitui uma peça essencial do Estado social e uma condição de vida decente entre nós.

Eles  mostram porque é que o SNS se afunda, apesar da continuada injeção de mais dinheiro e de mais recursos, desmentindo todos os que pensam, sobretudo à esquerda, que os seus problemas se resolvem com mais investimento e mais meios humanos. 

A questão é simples: apesar do expressivo acréscimo de recursos humanos nos últimos anos, com o inerente aumento de encargos orçamentais, a produtividade (serviços por profissional) diminuiu mais de 1/4  e, consequentemente, o custo médio dos serviços aumentou exponencialmente (para além da perda de capacidade de resposta à procura). 

Como é bom de ver, não é possível manter este rumo, nem em termos sanitários nem em termos orçamentais!

2. Entre as causas desta evolução negativa não se pode descontar o peso da mal-avisada redução do horário de trabalho semanal no setor público para as 35 horas em 2015, a qual, além da perda de milhões de horas de trabalho por ano, desarranjou os critérios de turnos e de escalas de serviço.

Mas, como tenho assinalado muitas vezes, o fator determinante da atávica ineficiência do SNS está obviamente na sua deficiente gestão central e na falta de avaliação regular de gestores, de serviços e de profissionais, com consequências sobre a manutenção nos cargos e sobre a  remuneração. Organizações cujo financiamento e remuneração dos seus profisonais não dependem do seu desempenho estão condenadas à ineficiência e ao desperdício de recursos.

Ou o SNS leva uma volta na sua organização e gestão, ou a sua crise não tem solução.

3.  Quem beneficia da degradação da eficência no SNS e da diminuição da sua capacidade de resposta é evidentemente o setor privado, que vê subir continuamente a sua quota de cuidados de saúde prestados. Aposto que no setor privado a produtividade não diminuiu, pelo contrário!

O problema maior é que, à medida de que o SNS aliena utentes e reduz a base social dos seus beneficiários, há cada vez mais pessoas que, continuando a financiar com os seus impostos o SNS, que não utilizam, suportam também os custos dos seus cuidados de saúde privados. Não é difícil imaginar que esta evolução não favoreve o apoio social e político ao SNS. 

Quanto esta situação ultrapassar uma determinada margem, o SNS estará perdido.

Este País não tem emenda (30): Indignidade humana

1. Julgava em que em matéria tauromáquica já bastava a tourada em si mesma, como espetáculo degradante da dignidade humana, enquanto exercício de tortura sangrenta de animais para gáudio sádico da populaça ululante. Mas estava enganado. 

O lobby ganadeiro inventou agora as touradas com anões a fazer de toureiros, numa exibição sumamente indigna da condição humana. O curioso é que este género de espetáculo foi introduzido entre nós por uma associação de bombeiros voluntários, que, além de associação humunitária", goza de apoios públicos e que, à partida, não consta que tenha competência para organizar espetáculos tauromáquicos!

2. Não me surpreende que haja gente tão insensível, que aprecie estes espetáculos grotescos e degradantes, com pessoas fisicamente anómalas, sujeitas ao ridículo público.

Todavia, num país cuja Constituição diz ser «uma República baseada na dignidade da pessoa humana» (art. 1º da CRP), como é possível que tal espetáculo tenha sido irresponsavelmente organizado por uma entidade social de interesse público e burocraticamente licenciado pela autoridade administrativa competente, e que o Ministério Público não tenha interposto imediatamente uma providência cautelar para o proibir, como era sua obrigação!

Alguém vai responder por tanta leviandande?

Adenda
Discordo em absoluto desta tese de J. M. Tavares, no Público de hoje, segundo a qual «devemos sempre evitar impor os nossos conceitos de dignidade humana a pessoas que não consideram que a sua dignidade esteja a ser ferida». Por essa ordem de ideias, não deveríamos considerar como incompativel com a dignidade humana a mutilação genital feminina das crianças na Guiné e noutros países africanos, cujas mães consideram tal prática um digna obrigação cultural e religiosa; nem o humilhante tratamento das mulheres no radicalismo islâmico, só porque a maior parte delas o aceita sem protesto, como um mandamento religioso; ou, entre nós, a prostituição de berma de estrada (uma das miseráveis consequências do não reconhecimento legal da profissão), só porque a maior parte delas não a consideram indigna. Um tal relativismo da noção de dignidade humana seria meio caminho andado para tolerar os piores abusos dela.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Ética republicana (2): Ao serviço do SNS ou do mercado de saúde privado?

1. Em Coimbra, como mostram as imagens (pirateadas do FB de Rui Pato), um grupo privado de saúde lançou uma campanha publicitária (outdoors) com o retrato das suas "estrelas" médicas e o slogan "Eu estou aqui!" (ou seja, na tal instituição). 

Nada a objetar, obviamente, à publicidade comercial no mercado de saúde privado, se não fosse, porém, o caso de alguns dos protagonistas nesta campanha de imagem serem conhecidos diretores de serviços nos Hospitais da UC, ou seja, do SNS, ao qual devem a sua formação e o seu prestígio profissional, estando, portanto, a utilizar o seu cargo público para publicitar a sua empresa privada concorrente. 

Trata-se, antes de mais, de uma operação de baixa concorrência desleal, que nenhuma companhia privada admitiria. Parece óbvio que nenhum deles o poderia fazer, sob pena de despedimento com justa causa, se se tratasse de acumulação entre dois grupos privados. Porque é que é diferente, quando se trata de acumulação com o serviço público?

2. Há muito que defendo que há um manifesto conflito de interesses na acumulação de cargos de direção de serviços públicos e em instituições privadas concorrentes, especialmente no SNS e sobretudo na mesma cidade (facilitando a fagocitação de utentes e a parasitação de recursos públicos em benefício dos privados), e que tal acumulação não deveria ser permitida, a troco de uma adequada remuneração adicional pela exclusividade. 

Em qualquer caso, acrescentar à controversa acumulação de cargos de direção a publicidade do emprego privado, prevalecendo-se do renome alcançado no público, constitui uma escandalosa falta de pudor profissional em termos de ética do serviço público, que integra o núcleo duro da ética republicana (que não vale somente para os políticos). 

Tenho, aliás, defendido que os funcionários públicos em geral deveriam subscrever, na tomada de posse, uma declaração de princípios de ética do serviço público (integridade, zelo profissional, assiduidade, defesa do património público, serviço aos utentes, etc.) e de fidelidade ao serviço público.

Não deixa de ser estranho que nem o SNS nem a Ordem dos Médicos tenham até agora reagido à insólita situação em Coimbra.

Adenda 
Comentário desencantado de um leitor: «O público é de todos, logo não é de ninguém....». Por isso, não tem quem o defenda, mesmo da pirataria mais rasca dos seus servidores. Contra o público vale tudo!

Adenda 2
Um leitor gostaria de saber duas coisas: a) se os HUC vão ignorar esta óbvia «infidelidade laboral» e, caso contrário, se vão ou não abrir o competente procedimento displinar; b) se a Ordem dos Médicos consente que os médicos façam «publicidade comercial das empresas onde trabalham» e, caso contrário, se vai ou não desencader o competente procedimento disciplinar. Penso que estas perguntas exigem respostas claras das duas entidades públicas visadas, não podendo cair em saco roto, sob pena de patente conivência com a infração.

domingo, 19 de junho de 2022

Campos Elíseos (10): Um revés político para Macron

1. Como se previa, segundo as estimativas eleitorais, a coligação eleitoral de Macron vence as eleições parlamentares de hoje em França, mas longe da confortável maioria absoluta que tinha na legislatura cessante, perdendo um terço dos deputados, em benefício da extrema-esquerda de Mélenchon (NUPES) e da extrema-direita de Le Pen (RN). Embora também perdendo deputados, os Republicanos (LR) aguentam melhor do que o esperado. 

Ou seja, sem maioria parlamentar absoluta e com um parlamento e um País politicamente mais extremados, Macron tem agora um segundo mandato bem mais árduo, tanto mais que a direita republicana já anunciou que vai manter-se na oposição, recusando qualquer coligação governativa. Trata-se de um claro revés político do Presidente. 

2. Nos próximos cinco anos, se não houver eleições antecipadas, o Palácio do Eliseu (residência oficial do Presidente) vai ter de ceder espaço político ao Palácio Bourbon (sede da Assembleia Nacional) e ao Hôtel Matignon (residência do primeiro-ministro). 

Mesmo que, como se espera, mantenha o protagonismo na política europeia e internacional, sua reserva de poder constitucional, a nível interno o monopólio político de Macron acabou.

[Alterada a rubrica inicial do post]

Adenda
As declarações triunfalistas de Mélenchon são perfeitamente ridículas. Para além do óbvio naufrágio (que já era óbvio na 1ª volta) da sua pretensão de a coligação das esquerdas (NUPES), por ele liderada, vencer as eleiçoes e ele tornar-se primeiro-ministro, sucede que o seu partido, a França Insubmisssa, fica em terceiro lugar na Asssembleia Nacional, com apenas 75 deputados, bem atrás da União Nacional, de Le Pen, que, essa sim, pode reclamar um notável triunfo eleitoral, ao passar de 6 para 89 deputados!

sábado, 18 de junho de 2022

Este País não tem emenda (29): O aeroporto de Santa Engrácia

1. A admissão do Ministro das Infraestruturas de que no próximo ano o acanhado aeroporto de Lisboa pode ter de recusar voos, por limitação de capacidade, apesar das dezenas de milhões de euros gastos nos últimos anos para ampliar a infraestrutura, vem tornar incontornável um problema que a pandemia escondeu nos dois últimos anos.

Passadas décadas sobre o equacionamento de um novo aeroporto, continuamos sem solução sequer para sua localização: depois do abandono precipitado (e nunca bem explicado) da Ota e do posterior afastamento de Alcochete a favor de Montijo, como solução de recurso (antevisão na imagem), é também esta opção que vem a ser submetida a uma "avaliação de impacto ambiental estratégico" (recolocando Alcochete na liça), cuja demora vai atrasar ainda mais todo o processo de decisão.

A questão do aeroporto revela exemplarmente o atávico défice de planeamento estratégico e de capacidade de decisão política do País.

2. Pior do que o atraso na decisão é que qualquer das localizações em consideração, ambas a sul do Tejo, está longe de ser recomendável, pois, como sempre defendi, não se compreende a lógica de localizar o aeroporto na periferia geográfica da sua potencial procura, que está sobretudo a norte do rio, desprezando a natureza nacional do aeroporto e tornando o acesso mais demorado e mais dispendioso para a maior parte dos seus utentes.

Além disso, se o Montijo não tem condições suficientes para um aeroporto intercontinental e é vulnerável a um arriscado e demorado contencioso ambiental, a nível nacional e da UE, Alcochete envolve o enorme custo adicional dos necessários acessos rodoviário e ferroviário, o que torna a solução muito mais onerosa para o País, em benefício da enorme operação de especulação imobiliária que essa opção desde o início comporta.

Eis como, além do irrecuperável atraso na decisão, o País se deixou encurralar entre duas  alternativas controversas, o que torna a decisão politicamente muito mais árdua, mesmo para um Governo de maioria absoluta.

Adenda
Secundando o Primeiro-Ministro, Pedro Nuno Santos veio reiterar a proposta do Governo ao PSD para um "consenso" tão depresssa quanto possível sobre a localização do novo aeroporto. Além de politicamente sensata, a ideia de corresponsabilizar o líder da oposição na difícil decisão tornará esta menos suscetível de contestação política. Curioso é o facto de nem o PM nem o Ministro terem condicionado o consenso interpartidário ao resultado da tal "avaliação ambiental estratégica", que vai levar o seu tempo...

Adenda 2

Um leitor observa que quem vai decidir a questão são os interesses próprios dos lisboetas e dos franceses da ANA e que uns e outros preferem a solução Portela+Montijo, «independentemente dos interesse gerais do País e das objeções ambientais», até por ser mais rápida e mais barata. Também há mais de um ano eu próprio insinuei a preferência de Lisboa pela solução de «um aeroporto no seu quintal e outro no quintal do vizinho». Porém, para além das evidentes insuficências dessa solução sob o ponto de vista aeroportuário, não vejo como é que ela poderia resistir ao risco de uma prolongada contestação ambiental.

Adenda 3

Comenta um leitor que não está a ver o PSD a dar a mão ao Governo para o ajudar a "descalçar esta bota", em vez de explorar politicamente as dificuldades de António Costa neste dossiê. Entendo que isso depende do estilo de oposição que o novo líder do PSD vá escolher, não esquecendo que foi o contrato de privatização da ANA com a Vinci no Governo de Passos Coelho, em 2012, que delimitou o quadro de opções quanto ao novo aeroporto, pelo que Montenegro não pode "fazer de Pilatos" no assunto...

Adenda 4
Na sua coluna de hoje no DN, o ex-secretário de Estado, José Mendes, defende que para resolver o magno problema habitacional de Lisboa, a opção Alcochete para o aeroporto permitiria construir uma nova cidade junto dele, para descongestionar a capital, com uma "ligação rápida" entre ambas. Tudo com dinheiro privado, argumenta (mas sem contabilizar seguramente o custo da tal "ligação rápida" transtagana entre Lisboa I e Lisboa II, de aquém e além-Tejo, que só poderia ser rodo-ferroviária). Creio que o poderoso lobby financeiro-imobiliário que alimenta a campanha por Alcochete, desde o afastamento da Ota, não tem opinião diferente. Em todo o caso, como sempre, vistos de Lisboa, os problemas do País passam sempre pelos interesses da capital.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (41): O pior cenário e a "fadiga da guerra"

1. Nada indica neste momento que a guerra não está para durar indefinidamente nem que haja perspetivas de negociações para um cessar-fogo. A Rússia ainda não atingiu todos os seus prováveis objetivos (ocupação de todo o Donbass no Leste e avanço para Odessa); a Ucrânia continua a alimentar a ficção quixotesca de que, com o apoio político e militar da NATO, ainda pode reverter o curso da guerra e recuperar o território perdido.

O pior que pode suceder é, uma vez atingidos os objetivos da invasão russa, chegar-se a um impasse militar, consolidando-se as posições no terreno, mantendo-se a situação indefinidamente, sem avanços para uma solução negociada, que obviamente implicaria cedências territoriais do lado ucraniano. Ou seja, corremos o risco de um situação coreana na Europa.

2. Entretanto, embora sem ser formalmente parte beligerante, a UE sofre os pesados custos económicos e financeiros da guerra, tanto mais pesados quanto mais ela durar, quer nos elevados custos financeiros dos refugiados, quer no surto inflacionista, alimentado sobretudo pelos custos da energia. 

Tendo o BCE demorado a reagir à subida da inflação, é provável que o fim do programa de compra de dívida pública e o início da subida dos juros de referência vá ter um forte impacto negativo no crescimento económico e no custo da dívida pública, complicando a gestão orçamental dos países mais vulneráveis, com a Grécia e a Itália à cabeça. 

Não é de excluir, portanto, que à medida que a guerra e os seus efeitos se prolongam, se gere um sentimentro de cansaço da guerra, se quebre o consenso dentro da União quanto a ela e se verifique uma pressão da opinião pública para um cessar-fogo negociado. O problema é isso vir a verificar-se mais tarde do que cedo...

[Alterada a rubrica do post.]

Adenda
Por coincidência, o Público de hoje dá conta de uma sondagem promovida pelo Conselho Europeu de Relações Internacionais, segundo a qual os europeus se encontram profundamente divididos sobre a guerra da Ucrânia, havendo no entanto uma substancial maioria relativa (incluindo em Portugal) a favor de uma paz imediata. A minha previsão é que essa opinião se vai expandir, à medida que progredir a "fadiga da guerra", obrigando os governos europeus a colocarem pressão sobre a Ucrânia para uma solução negociada.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Campos Elísios (9): O falhanço da pseudogeringonça francesa

1. O empate da coligação das esquerdas liderada por Mélechon (NUPES) com a coligação governamental de Macron na 1ª volta das eleições parlamentares francesas de ontem não esconde o rotundo falhanço da sua aposta em ganhar as eleições e em tornar o seu líder primeiro-ministro, como rezava o seu slogan eleitoral.

Na verdade, como mostra o quadro acima (fonte AQUI), os 25% da coligação das esquerdas em pouco superam a soma dos mesmos partidos há cinco anos e não é provável que o seu score melhore muito na 2ª volta, salvo nos círculos em que concorrem com a extrema-direita, onde a lógica da "frente republicana" pode beneficiar a esquerda.

Felizmente, apesar do aumento dos seus deputados, devido ao efeito da coligação eleitoral, o risco de uma maioria da esquerda antiliberal e antieuropeísta foi esconjurado.

2. Quem perdeu em relação há cinco anos foi claramente a coligação governamental do Presidente Macron (menos 7 pp). Embora seja previsível uma folgada vitória eleitoral na 2ª volta, beneficiando da concentração de votos, ora contra a extrema-direita ora contra a extrema-esquerda, é pouco provável que Macron consiga manter a maioria absoluta que tinha na legislatura cessante.

No caso de falhar a maioria absoluta, Macron terá de obter entendimentos parlamentares para poder governar, provavelmente com a direita republicana, dado o intratável radicalismo das hostes de Mélenchon.

3. À direita, enquanto os Republicanos confirmam o seu declínio, com uma forte descida eleitoral (menos 10 pp!), a extrema-direita de Marine de Le Pen acentua a sua subida (mais 6 pp), sendo na verdade o único partido relativamente ganhador da jornada eleitoral. Resta saber se a lógica da "frente republicana" limita os seus previsiveis ganhos na segunda volta.

Em todo o caso, apesar de um sistema eleitoral hostil e do "cordão sanitário" contra ela, a extrema-direita francesa está em vias de consolidar o seu lugar como força política parlamentar. O parlamento passa a ser mais representativo da sociedade política francesa.

Adenda
Um leitor pergunta porque designo por "pseudogeringonça" a coligação das esquerdas. Porque me parece que ela difere da "geringonça" portuguesa em vários aspetos: (i) porque é dominada pela extrema-esquerda da LFI (Mélenchon), enquanto em Portugal foi organizada sob a égide do PS; (ii) porque se trata de uma coligaçao eleitoral, enquanto em Portugal era uma espécie de protocoligação governamental, sendo impensável uma coligação eleitoral; (iii) porque é claramente antiliberal e antieuropeísta, o que em Portugal não foi, nem poderia ter sido. Se não apoiei a "geringonça" portuguesa, muito menos poderia apoiar a pseudorréplica francesa.

terça-feira, 7 de junho de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (38): Um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo liberal

1. Ontem intervim nesta sessão pública de lançamento do livro de um investigador brasileiro (L. F. Munaro) sobre a imprensa da emigração portuguesa em Londres entre 1808 e 1822, que, através da crítica da monarquia absoluta, ajudou a preparar o terreno para a Revolução Liberal (1820). 

Promovida pela Comissão Liberato - que visa resgatar a obra de José Liberato Freire de Carvalho, o mais proeminente dos jornalistas emigrados, que ficou conhecido simplesmente por José Liberato (aliás, um apelido adotivo) -, a sessão permitiu pôr em relevo justamente o fundador do Campeão Português em Inglaterra (1819-1821), o mais influente dos jonais da emigração, quando passam 250 anos sobre o seu nascimento.

2. Pela minha parte, centrei-me na doutrina político-constitucional de Liberato, tal como exposta nesse jornal, que considero não somente a mais bem informada crítica do absolutismo, mas também a mais completa formulação de um projeto de constitucionalismo liberal, baseado na soberania da nação, num sistema político representativo (por intermédio das Cortes), na separação de poderes e nas liberdade individuais.

Nessa perspetiva, considerei Liberato como um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo moderno em Portugal e o primeiro deputado constituinte avant la lettre.

Em alguns aspetos menos radical do que veio a ser o vintismo constitucional (por exemplo, quanto a um parlamento bicamaral e à atribução ao rei de um "poder moderador" próprio, incluindo um poder de veto legislativo), Liberato antecipou alguns traços do futuro "cartismo" constitucional (Carta Constitucional de 1826), por sinal o mais duradouro período na nossa história constitucional.

domingo, 29 de maio de 2022

Praça da República (68): Uma questão constitucional

1. Aparentemente, uma das razões que levou o Governo a afastar a via de uma revisão ad hoc da Constituição, para resolver o problema suscitado pela declaração de inconstitucionalidade da lei  sobre o registo dos metadados das comunicações pessoais para efeitos de investigação ciminal, foi a ideia de que a abertura do processo de revisão constitucional abriria uma "caixa da Pandora", sem possibilidade de limitar o objeto da reforma constitucional a esse tema

Não tenho por convincente esse argumento. Julgo que, mesmo passados os cinco anos sobre a última revisão constitucional ordinária (que ocorreu em 2004), a AR pode em qualquer momento abrir um processo de revisão extraordinária, com objeto previamente limitado, prescindindo de uma revisão ordinária, sem objeto previamente circunscrito, desde que tal seja decidido por maioria de 4/5 dos deputados. A Constituição diz que a AR pode assumir poderes de revisão extraordinária «em qualquer momento», e não somente para antecipar a revisão, quando ainda não tenham passado cinco anos desde a última revisão ordinária.

2. Resta, obviamente, saber se haveria essa maioria de 4/5 (184 deputados) para desencadear uma revisão extraordinária. 

Bastando o apoio do PS e do PSD, que somam 197 deputados, só por irresponsável caprichismo político é que o PSD poderia opor-se a uma tal revisão limitada da Constituição, tanto mais que as revisões extraordinárias não afetam o calendário da revisão ordinária, que se manteria em aberto.

O único problema é que, a meu ver, existem outras mudanças pontuais da Constituição tão necessárias quanto essa, cuja inclusão poderia complicar a definição da agenda da revisão constitucional.

sábado, 28 de maio de 2022

Ética republicana: Custos públicos, vantagens privadas

A confimar-se, esta notícia de que deputados utilizaram carros e motoristas da AR para deslocação e a um evento partidário é muito grave e não pode ficar impune. Impõe-se um inquérito da AR e a aplicação das devidas sanções financeiras e políticas.

Antes de ser ilegal, esse abuso de funções políticas constitui uma miserável violação de um dos mais elementares princípios da ética republicana, a que todos os titulares de cargos políticos devem sentir-se moralmente vinculados: não utilizar os recursos públicos postos à sua disposição para o exercício do mandato público para fins alheios a esse mandato.

É lamentável que os responsáveis por estas inadmissíveis condutas não se deem conta do prejuízo que causam à dignidade e prestígio da política junto dos cidadãos, alimentando a alienação política e a revolta populista contra a elite política.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Eleições (5): Adicionar a representação do território?

1. Nesta conferência sobre reforma do sistema eleitoral foi apresentado um estudo para a hipótese de, seguindo o exemplo norueguês, repartir o número de deputados pelos círculos eleitorais, tendo em conta não somente o número de eleitores, como hoje sucede, mas também a respetiva dimensão territorial -, o que permitiria beneficiar os círculos de baixa densidade populacional, como, por exemplo, Beja e Bragança, à custa dos de maior densidade, como Lisboa e Porto.

Por mais generosa que a ideia pareça, entendo que ela não tem pés para andar entre nós. 

2. São as seguintes as principais objeções:

   - a teoria do "governo representativo" e do parlamento nasceu para representar os cidadãos e não os territórios, como sucedia nas Cortes do Antigo regime;

   -  a CRP define a AR como "assembleia representativa de todos os cidadãos portgueses», não falando em territórios;

   - um dos princípios essenciais das eleições democráticas é o da igualdade de voto, o que seria contrariado ao dar-se aos cidadãos daqueles círculos o direito de eleger mais deputados do que os que lhes cabem em função do número de eleitores;

   - a CRP é explícita ao determinar que a repartição dos deputados pelos círculos eleitorais é feita exclusivamente em função do número de eleitores;

  - se se quer dar representação política própria aos territórios, a solução clássica é a instituição de uma segunda câmara no parlamento para esse efeito, como sucede nos Estados federais e em vários Estados unitários.

Em conclusão, uma tal solução iria contra os princípios da democracia representativa.

Adenda
A idea de "discriminação positiva" dos círculos eleitorais do interior foi há algum tempo avançada pelo então líder do PSD, Rui Rio, mas não se chegou a conhecer a sua formulação concreta. Todavia, parece que ela assentava em dar à partida dois deputados a cada círculo e repartir os demais proporcionalmente ao número de eleitores, como sucede em Espanha. Mas também esta ideia carece de cabimento constitucional.

Adenda 2
Uma pequena reforma que poderia melhorar a distribuição territorial dos deputados, embora marginalmente, consistiria em abandonar o método de Hondt na repartição dos deputados pelos círculos eleitorais, que a Constituição não impõe e que favorece os grandes círculos, substituindo-o por outro método mais amigo dos pequenos circulos.