quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guerra da Ucrânia (39): Porque falham as sanções?

1. Ao contrário do pretendido, as sanções comerciais à Rússia não conseguiram arruinar as suas exportações nem muito menos afundar o rublo, levando a economia russa "à falência", como uma vez anunciou a presidente da Comissão Europeia. Pelo contrário, como mostra o recorte de imprensa de ontem (no Jornal de Negócios), o excedente comercial aumentou e a cotação do rublo recuperou.

A razão está, por um lado, em que, tirando a UE e os Estados Unidos e seus aliados mais chegados, os demais países não decretaram sanções comerciais, incluindo grandes economias como a Índia, a África do Sul e o Brasil; e, por outro lado, a própria UE não tem sido capaz de implementar o boicote à importação de crude e, muito menos, de gás natural, que importa pesadamente da Rússia. Ora, como a insegurança dos mercados tem levado a um aumento das cotações, Moscovo acaba por cobrar mais caro e receber mais dinheiro -, daí o aumento do excedente comercial.

Até agora, um verdadeiro tiro pela culatra, o das sanções...

2.  Compreensivelmente, a economia que se está a efetivamente a afundar, em consequência da guerra, é a da Ucrânia, não somente pela redução da atividade económica nos territórios onde decorrem os combates, mas sobretudo pela impossibilidade de utilizar a tradicional via marítima para as principais exportações ucranianas - que são as da fileira agrícola -, dada a ocupação russa de alguns portos e a ameaça sobre outros, incluindo Odessa, e dadas as limitações da via terrestre. 

Por isso, é de recear, como analisa o The Economist, que o prolongamento indefinido da guerra, mesmo que sem uma clara vitória militar russa, imponha incomportáveis custos económicos, em termos de recessão, défice comercial, inflação, etc. 

A ajuda financeira ocidental, sobretudo dos EUA, pode atenuar esses custos, mas não constitui uma solução duradoura nem infinita.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Concordo (22): O FMI tem razão

Ao criticar a redução da tributação dos combustíveis, o FMI vem agora dar-me razão, quando há algumas semanas me manifestei contra a redução da tributação dos combustíveis, defendendo que a majoração da receita fiscal resultante da subida do preço do crude deveria servir sobretudo para subsidiar as famílias de menores rendimentos, mais atingidas pela inflação do preço do "cabaz de compras".

A contenção dos preços dos combustíveis por via de redução tributária apresenta-se como triplamente nociva: (i) é socialmente regressiva, beneficiando quem tem automóvel e as viaturas que mais gastam; (ii) é manifestamente contrária à descarbonização da economia, por via da redução do consumo e da substituição do automóvel particular pelo transporte coletivo; (iii) sendo os combustíveis importados, subsidiar o seu consumo apenas agrava o défice da balança comercial nacional e o endividamento externo do País. Nada disto me parece propriamente conforme a um programa de governo socialista...

A meu ver, nas atuais circunstâncias, os impostos sobre os combustíveis nunca são excessivos

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Social-democracia (9): Cogestão empresarial?

1. Em França, onde a social-democracia representada pelo Partido Socialista está pelas ruas da amargura e se viu forçada a uma humilhante aliança política sob a égide do líder da esquerda radical, Mélenchon, para as próximas eleições parlamentares, um grupo de socialistas acaba de lançar um manifesto pelo "renascimento da social-democracia" francesa.

Entre as principais ideias desse manifesto consta a da cogestão empresarial, envolvendo a representação dos trabalhadores no "conselho representativo" das empresas de maior dimensão, junto com os acionistas, um modelo que tem tradição na Alemanha e noutros países nórdicos, permitindo superar a lógica confrontacional típica do velho sindicalismo nas "relações industriais", e sendo um elemento essencial da noção de "economia social de mercado"

2. Tenho pessoalmente defendido esse modelo entre nós desde há anos (por exemplo, AQUI), junto com a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas resultantes de aumentos da produtividade, não deixando de estranhar porque é que o PS continua a descartá-lo, sem o fazer aplicar mesmo nas empresas públicas, onde é constitucionalmente obrigatório. 

Claramente, apesar do seu empenho (a meu ver, excessivo) na "concertação social" ao nível macro das políticas sociais, o PS mantém-se fiel ao modelo tradicional das relações entre o capital e o trabalho ao nível das empresas, que continuam a ser coutadas dos seus acionistas de referência, longe das modernas preocupações sobre o "stakeholder capitalism" (que não envolve somente os trabalhadores).

domingo, 15 de maio de 2022

Praça da República (67): Reacionarismo constitucional

Como mostra a terrível hipótese de o Supremo Tribunal dos EUA, na peugada da direita evangélica  "trumpiana", vir a revogar a decisão Roe v Wade, que desde há décadas reconhece às mulheres norte-americanas o direito à interrupção da gravidez, tornando inconstitucional a sua penalização, a força das Constituições depende essencialmente do entendimento do respetivo juiz constitucional sobre elas. 

Por isso, é inquietante a hipótese de ver cooptado para o nosso TC um jurista que deixa entender que não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa, de condenação geral do aborto e da sua despenalização. Não vejo como é que uma nomeação tão radical pode ser coonestada, não somente pela esquerda constitucional, mas também pela direita constitucional que defende posições de humanismo penal, nomeadamente contra o excesso da repressão penal, sobretudo quando estão em causa questões de dignidade humana, como a autodeterminação da mulher. 

Reabrir entre nós, tal como nos Estados Unidos, uma questão constitucional sobre a despenalização geral do aborto seria um retrocesso civilizacional.

Adenda
Um leitor objeta que «o aborto em Portugal não é um assunto constitucional, mas sim legal, pelo que, as posições que em 1984 alguém exprimiu sobre o aborto não têm qualquer relevância atual». Discordo, em absoluto. A despenalização legal do aborto sempre teve opositores, em nome da Constituição, tendo sido submetida ao TC várias vezes, e nada impede que a questão seja recolocada, se houver a ideia de que a oposição à legalização do aborto pode ter mais apoio agora, como sucedeu nos Estados Unidos. Por isso, as antigas declarações de Almeida Costa têm toda a relevância, se ele as mantém, como parece.
 
Adenda 2
Outro leitor questiona a minha legitimidade para discutir o assunto, por entender que «a escolha dos juízes cooptados é uma questão interna do TC, que não deveria vir para a praça pública». Mais uma vez, discordo de todo em todo. Primeiro, num Estado constitucional, entendo que a nomeação dos juízes do TC, que têm o poder de "dizer a Constituição", interessa a qualquer cidadão, e que os nomes propostos deveriam ser objeto do mesmo escrutínio curricular dos juízes eleitos pela AR. Não é por acaso que, tanto quanto me é dado saber, já mais do que uma vez nomes sugeridos vieram a ser rejeitados. Em segundo lugar, a questão da despenalização do aborto não é uma questão de lana caprina, tendo sido objeto de várias decisões do TC, tendo eu próprio sido relator numa delas, pelo que sou especialmente sensível a este tema e ao risco da reversão da jurisprudência do TC.

sábado, 14 de maio de 2022

Barbárie tauromáquica (12): Lamentável declaração ministerial

Não fica bem a um ministro socialista justificar as touradas com o respeito pelas "práticas culturais"

É de todo despropositado, em pleno século XXI, qualificar como cultura a tortura sangrenta dos bichos na arena para gáudio público. Citando António Vitorino de Almeida, "se a tourada é cultura, a antropofagia é gastronomia". Se a tourada não pode ser condenada, por ser uma "prática cultural", então como se pode condenar a mutilação genital feminina na Guiné ou a lapidação pública das mulheres adúlteras em sociedades muçulmanas mais tradicionais, fenómenos que também pertencem à "cultura" desses países?

É tempo de afastar as touradas da noção de cultura, que elas conspurcam. Nenhuma conceção humanista da cultura pode ser complacente com o sacrifício de seres sensíveis para satisfazer o atávico sadismo da populaça

Adenda
Aplaudindo este post, um leitor sublinha que a declaração do novo Ministro se afasta substancialmente da posição da anterior Ministra, Graça Fonseca, a qual, quando acusada de "censurar os gostos" dos portugueses, ao recusar-se a descer o IVA sobre as touradas, ripostou secamente, que não era «uma questão de gosto, mas de civilização» - posição que aplaudi AQUI. O que mudou - acrescenta - foi que, com a maioria absoluta, o PS deixou de precisar do PAN e o poderoso lobby taurino recuperou toda sua influência. Não vejo como contestar esta análise...

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Assim vai a política (11): O Bloco da direita

1. É evidente que, se o PSD fosse Governo, NUNCA se proporia atualizar as remunerações da função pública em função da inflação prevista, por ser uma medida supinamente irresponsável, quer pelo seu enorme custo orçamental, quer sobretudo porque o pior que se pode fazer numa situação inflacionista é fomentar a procura, gerando mais pressão inflacionista. 

Não ter proposto igual aumento para as pensões, também elas vítimas da inflação, deve ter sido esquecimento. Mas a incoerência e a discriminação são óbvias. De resto, para não privilegiar a função publica (mais do que já é...), o PSD deveria propor também uma atualização automática equivalente dos salários do setor privado...

2. Sempre defendi que os partidos de vocação governamental, como o PS e o PSD, devem defender na oposição as posições que adotariam se estivessem no Governo, sob pena de perderem credibilidade e ajudarem à desconfiança dos cidadãos na política. 

Pelos vistos, porém, em vez de trabalhar para vir a regressar ao Governo a seu tempo, o PSD decidiu comportar-se como partido de protesto, uma espécie de Bloco da direita. Deve ser por isso que as sondagens lhe dão o humilhante resultado que dão. 

Os genuínos partidos de protesto, como o Bloco e o PCP, são mais credíveis nesse papel. Na competição com eles, o PSD perde.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Ai o défice: Contas da saúde

Um especialista que sabe do que fala afirma que o SNS não precisa de mais milhões de euros, mas sim de melhor gestão do muito dinheiro que já recebe do orçamento. Mas quando o Governo decide acabar quase integralmente com as taxas moderadoras - de que estavam isentas todas as pessoas de menores rendimentos -, que valem mais de 30 milhões de euros, então é evidente que o orçamento tem de continuar a abrir os cordões à bolsa...

Quando os ricos deixam de pagar taxas (no SNS, nas autoestradas, no ensino superior...), são os contribuintes, incluindo os de menores rendimentos, que têm de pagar a diferença.

Adenda
Embora favorável às taxas moderadoras, um leitor observa que, contabilizando os atuais custos de sua cobrança (pagamento em dinheiro, falta de trocos nos serviços, etc.), elas causam provavelmente prejuízo. Observo que não há nenhuma razão para toda essa ineficiência no processo de cobrança, salvo o atavismo burocrático dos serviços, e que, independentemente da receita financeira, as taxas moderadoras se justificam por duas razões não financeiras: (i) pelo efeito dissuasor que possam ter contra o abuso no recurso aos cuidados de saúde e (ii) pelo efeito simbólico de significar aos utentes que o SNS custa dinheiro. O que é grátis tende a ser banalizado. Por isso, defendo há muito que o SNS deveria informar os utentes sobre o custo efetivo de cada serviço recebido.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Amanhã vou estar aqui (8): Novos desafios da regulação dos média

Amanhã, na Faculdade de Direito da UC, Colégio da Trindade, mesa redonda com os jornalistas Jorge Castilho, Carlos Magno e Henrique Monteiro.

Adenda
Pode ver-se AQUI o registo em vídeo da conferência, por sinal bem animada.

O que o Presidente não deve fazer (30): Tagarelices presidenciais

Mesmo que haja algum exagero jornalístico neste relato da audiência do PR com os partidos da oposição, MRS não fica bem na fotografia.

Em primeiro lugar, esta informal e especulativa "conversa de café" no relacionamento oficial com os partidos da oposição não condiz com a natureza do cargo. É surpreendente como MRS pode alternar o mais exigente e bem construído discurso de Estado - como normalmente sucede - com esta maledicente tagarelice política. Em segundo lugar, não fica bem ao PR fazer queixas do Governo em audiências privadas com partidos da oposição, como se fosse o seu coach. O Presidente recebe os partidos para os ouvir e não para se fazer ouvir. Tendo queixas contra o Governo, deve transmiti-las ao próprio Primeiro-Ministro ou expô-las publicamente. E uma questão de "lealdade institucional", que Presidente e Governo devem observar nas suas relações.

Não era de esperar que MRS, atenta sua conhecida idiossincrasia pessoal, mantivesse o estilo de distanciamento e reserva, e mesmo de "majestade" institucional, dos seus antecessores. Mas era bom que observasse a contenção e a discrição institucional que a magistratura presidencial requer.

terça-feira, 10 de maio de 2022

Guerra na Ucrânia (38): Muito longo, o caminho de Kiev para Bruxelas

1. Quando António Costa afirma, sem poupar nas palavras, que a adesão da Ucrânia à UE será um «processo "longo, difícil e exigente"», é evidente que ele vem opor-se frontalmente à precipitada proposta dos países do Leste europeu - interessados em puxar a União geograficamente mais para Leste e politicamente mais para direita, como AQUI assinalei - de instituir um fast track para Kiev, proposta a que a Presidente da Comissão levianamente emprestou credibilidade.

Aliás, o chefe do Governo português não está só nessa posição, como revela o discurso do Presidente francês no dia 9 em Estrasburgo, onde Macron chegou a falar em "décadas", antes de a Ucrânia poder entrar na União. 

Não é crível que os dois líderes políticos não tenham concertado posições.

2. Felizmente, não foram precisas muitas semanas para que alguém responsável viesse denunciar a irresponsabilidade política de prometer à Ucrânia uma entrada expedita na União, quando esse país está longe de cumprir os critérios mínimos de adesão, nem está em condições de os vir a cumprir a curto prazo, e não pode esquecer-se a má experiência de deixar entrar prematuramente as países do Leste europeu em 2004, entre os quais a Polónia e a Hungria, com os graves problemas que tais países hoje colocam.

A verdade é que a entrada na União não pode ser um lenitivo pelos custos da invasão e que, uma vez obtida a entrada, não há meio de fazer sair um país, por mais impreparado que ele se revele depois.

Adenda
Também o Governo alemão fez saber que não há "atalhos" para a adesão da Ucrânia à União.

Adenda 2
Sobre este tema vale a pena ler este bem informado texto.

Guerra na Ucrânia (37): Há vozes sensatas

«Presidente francês diz que a paz terá de ser construída sem "humilhar" a Rússia».
O problema é que desde o colapso da União Soviética, há três décadas, o desporto preferido de alguns líderes ocidentais, designadamente do lado dos Estados Unidos, tem sido a humilhação política da Rússia, com a complacência da Europa, transformada, neste dossier, em "apêndice" da política externa norte-americana (exceção feita à Alemanha e à França), apesar de principal interessada em integrar Moscovo num quadro de cooperação política pacífica pan-europeia.
Eis o que, com a invasão da Ucrânia, transformada numa guerra entre a Rússia e a Nato por interposta Ucrânia, parece afastado por longos anos. A Rússia parece definitivamente perdida para a Europa - e não é pequena perda...

segunda-feira, 9 de maio de 2022

+ Europa (62): Uma iniciativa para repetir


1. "Parlamento Europeu à sua porta" - eis uma maneira original de celebrar o dia da União (9 de maio), por iniciativa da delegação nacional do Parlamento Europeu, a instituição mais expressiva da democracia europeia. 

O bem-conseguido evento em Coimbra - que foi precedido de iniciativas semelhantes noutras cidades - incluiu um debate entre três eurodeputadas, todas conimbricenses, em representação de três diferentes grupos políticos no Parlamento Europeu (PPE, S&D e Esquerda). Os temas introduzidos no animado debate entre as três europutadas pelo moderador (um jornalista do Expresso) e pela assistência versaram em geral sobre temas concretos de interesse para os cidadãos europeus, e não somente sobre a guerra da Ucrânia e suas implicações para a UE. 

São realizações destas que podem ajudar a aproximar os cidadãos europeus das instituições da União, designadamente daquela que os representa politicamente.

2. Curiosa foi a unanimidade das três eurodeputadas - que a nível partidário nacional integram o PS, o PSD e o BE - na rejeição da ideia "ultrafederalista" de um círculo eleitoral pan-UE nas eleições do PE, com listas transnacionais, sobreposto aos atuais círculos nacionais ou infranacionais, tema que agora ressurgiu num relatório sobre a reforma eleitoral aprovado no Parlamento Europeu e no relatório final da Conferência sobre o Futuro da Europa, hoje apresentado em Estrasburgo.

Essa posição consensual permite antecipar que, mesmo que essa ideia passe no Parlamento Europeu, o Governo português deve ser um dos que se lhe vão opor no Conselho da União, inviabilizando-a, visto que a lei eleitoral carece da unanimidade dos Estados-membros. Ainda bem que fica na gaveta, como AQUI defendi!

Este País não tem emenda (28): Não ao estacionamento gratuito

1. Esta manhã, pretendendo assistir a um evento na Praça da República, em pleno centro urbano de Coimbra, só à segunda e lenta volta ao perímetro de ruas circundantes é que consegui encontrar um lugar de estacionamento regular. 

A verdade que os numerosos lugares de estacionamento disponíveis em todas essas ruas são de utilização gratuita, o que permite a sua ocupação por tempo indefinido, reduzindo a sua rotatividade. E tanbém não existem na zona parques de estacionamento pago.

Há muito que defendo que uma cidade que queira reduzir o congestionamento automóvel e aumentar a qualidade de vida urbana não pode ter estacionamento gratuito, muito menos nas zonas centrais. De resto, ao contrário do que muita gente pressupõe, entre os direitos fundamentais não consta o direito à ocupação automóvel gratuita do espaço público.

2. Hoje em dia, passo uma parte do tempo em Bruxelas, onde não existe estacionamento gratuito e onde, portanto, quem não disponha de estacionamento privativo tem de incorporar o custo do estacionamento no preço de ter carro, o que constitui um forte desincentivo à aquisição e à utlização de automóvel. 

Em Portugal, pelo contrário, as pessoas julgam que a aquisição de um automóvel lhes dá direito automático a estacionamento gratuito e mobilizam-se ativamente contra a introdução de estacionamento oneroso, como alguns municípios têm vindo, arrastadamente, a fazer. Ao desmazelo da generalidade dos municípios junta-se a irresponsabilidade cívica e a prevalência do interesse individual sobre o interesse coletivo.

3. É por isso que vejo com tristeza que entre os motivos da moção de censura apresentada pelo PS de Setúbal à respetiva câmara municipal se conta, ao lado do caso dos refugiados ucranianos, também a acusação contra o «estacionamento tarifado em grande parte da cidade».

Como resulta do que acima digo, a referida atuação da CM de Setúbal não é de censurar, como lamentavelmente entende o PS local, mas sim de louvar. Prouvera que a CM de Coimbra, e outras cidades do País, seguissem o mesmo caminho.

Adenda 
Um leitor de Setúbal argumenta que o que se passou recentemente foi a colocação de parquímetros em locais onde não existia falta de lugares de estacionamento nem estacionamento abusivo, tratando-se, no entender de muitos deputados municipais e dele próprio, apenas de criar mais uma «fonte de financiamento bastante injusta para os cidadãos». Na minha resposta argumentei que, hoje em dia, o pagamento do estacionamento deve ser uma regra geral, para reduzir o tráfego automóvel nas cidades, por razões urbanísticas e ambientais, e que os municípios têm toda a legitimidade para rentabilizar a utilização particular do espaço público, como sucede com outros usos, fortalecendo o orçamento municipal.

domingo, 8 de maio de 2022

Livro de reclamações (25): Onde o Simplex não entrou

1. Foi assim:

    a) Há tempos dirigi-me à delegação de Coimbra do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) para recuperar o livrete de um atrelado automóvel emprestado por um familiar, documento que me fora retido pela GNR, por eu não ter feito prova do competente seguro. Tendo exibido a prova do seguro e sendo confirmado que o documento se encontrava ali, fui porém informado que não podia reavê-lo, por não ser o proprietário do veículo, de nada me valendo argumentar que o livrete tinha sido apreendido a mim e que não era por acaso que ele tinha sido remetido pelo próprio IMT para Coimbra, minha residência.

    b) Eis-me de novo no serviço, devidamente munido de uma procuração do proprietário, residente no Porto. Mas continmuei sem poder recuperar o livrete, desta vez por falta de um requerimento do próprio a pedi-lo, sendo em vão que me propus fazer eu o dito requerimento, no uso de "todos poderes necessários", que a procuração me oferecia. Era "o regulamento" - argumentava a zelosa funcionária em frio burocratez!

    c) E foi só à terceira deslocação, somando horas perdidas e respetiva despesa, que consegui resgatar o miserável e oneroso livrete!

Julguei que o programa Simplex tinha chegado a todos os serviços na Administração Pública, mas, pelos vistos, estava enganado. 

3. Que em 2022, muitos anos depois do arranque dos programa Simplex, visando a simplificação dos serviços administrativos em prol da comodidade dos cidadãos, seja necessário passar por estas barreiras para recuperar um simples documento de identificação automóvel, quando tudo se tornou fácil e expedito no caso dos documentos de identificação pessoal (cartão de cidadão e  passaporte), mostra que, em contracorrente, há silos na Administração imunes a qualquer modernização administrativa.

De resto, com os atuais meios tecnológicos, não existe nenhuma razão para que os documentos automóveis não revistam forma digital, com acesso direto da polícia de trânsito aos mesmos, e que os assuntos a eles respeitantes não passem por um procedimento digital, sem necessidade de deslocação física dos interessados aos serviços. Infelizmente, há lugares onde os velhos procedimentos burocráticos e a desconsideração pelos utentes dos serviços públicos prevalecem. Até quando?

sábado, 7 de maio de 2022

Era o que faltava!: A "estupefação" de Rui Rio

Não tem razão de ser a "profunda estupefação" do ainda Presidente em exercício do PSD contra o facto de o PS ter obstado na AR a uma audição do Presidente da CM de Setúbal sobre o polémico caso da receção aos refugiados ucranianos.

Na verdade, os chefes de governo municipal, tal como os chefes de governo regional, não podem ser chamados a dar explicações na AR, pela simples razão de que não são responsáveis perante ela, só respondendo politicamente perante as respetivas assembleias municipais e os respetivos eleitores locais. É fácil ver que uma tal possibilidade daria ao partido maioritário na AR a possibilidade de "chamar a capítulo" e de "chatear" politicamente as câmaras municipais dos partidos da oposição.

Não estando obviamente prevista na Cosntuiação, uma tal eventualidade representaria, em qualquer caso, uma subversão do regime constitucional de autonomia municipal e do sistema de responsabilidade política entre nós.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Regionalização (7): Com conceitos errados não vamos lá

1. Que na linguagem corrente haja uma descabida distinção entre "descentralização" e "regionalização", reduzindo a primeira à transferência de tarefas do Estados para os muncípios, é mau. Que a própria Ministra competente perfilhe essa errada perspetiva, é péssimo para o processo de regionalização, ou seja, de instituição das autarquias regionais em falta desde 1976, cuja retoma o PS e Governo assumiram explicitamente para esta legislatura.

Com efeito, quer sob o ponto de vista teórico, quer constitucional, a descentralização territorial abrange, ao mesmo título, tanto a transferência de competências do Estado para os municípios e CIM (descentralização municipal) como para as autarquias regionais (descentralização regional). A diferença está em que para haver a segunda é preciso criar as competentes autarquias regionais.

2. Essa falta de rigor conceptual só ajuda os adversários da regionalização, que reduzem a verdadeira e própria descentralização à autonomia municipal, tornando dispensável ou supérflua a regionalização.

Um discurso pró-regionalização deve, pelo contrário, sublinhar que as autarquias regionais (designação preferível à anódina noção constitucional de "regiões administrativas") são uma forma de descentralização e que sem elas continuará incompleto o programa de descentralização territorial no Continente previsto na Constituição, prestes a completar meio século.

Adenda
É pena que Ramalho Eanes, normalmente tão ponderado nas suas declarações públicas, se tenha vindo alistar entre os adversários da regionalização, com o velho e relho argumento de que o debate pode dividir o País, num momento como o atual, em que se impõe a unidade nacional. Primeiro, não existe ainda nenhum calendário político para reabrir o processo legislativo, nem muito menos para o referendo constitucionalmente previsto, que só pode avançar depois daquele; segundo, o que divide mais o País, sem que Lisboa queira ver, é o contínuo processo de concentração de recursos na capital e de definhamento do resto do território. Vai-se tornando cada vez mais óbvio que a decentralização regional terá de vencer a oposição de Lisboa. Quando se tem o monopólio do poder, ninguém gosta de o partilhar.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Bloquices (20): De acordo

Por vezes, embora poucas, acontece estar de acordo com o Bloco de Esquerda, como no que respeita à orientação estratégica definida no seu conclave partidário de há dias: «Aqui estamos, pois, na oposição. Não poderia ser de outra forma». 

Sendo um "partido de protesto" por natureza, que não "suja as mãos" nas coisas de governo - que é um negócio de cedências à realidade -, a "Geringonça" só podia ter sido um equívoco capítulo transitório, que o BE encerrou com alívio.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

+Europa (60): Federalismo, mas nem tanto!

1. Por culpa da pandemia e, ultimamente, da guerra na Ucrânia, a Conferência sobre o Futuro da Europa - que mobilizou durante um ano representantes das instituições europeias, dos parlamentos nacionais e de painéis de cidadãos -, não teve infelizmente a visibilidade nem a cobertura mediática, e não só em Portugal, que os seus trabalhos mereciam.

Prestes a terminar a sua agenda, a comissão executiva vai apresentar o relatório final às instituições europeias no próximo dia 9 de maio, dia da União, no Parlamento Europeu em Estrasburgo. No entanto, as conclusões não devem afastar-se das muitas propostas aprovadas na sessão plenária, no mesmo local, na semana passada, em geral no sentido de aprofundar a integração e a democracia europeia.

Não é por falta de propostas que a CFE poderá ser criticada.

2. Embora a Conferência não tenha sido consensual, pois as conclusões tiveram a oposição da direita antieuropeia e mais eurocética, ela colheu um amplo apoio, incluindo, surpreendentemente, o grupo da Esquerda Europeia, cujos partidos integrantes em alguns países, incluindo Portugal, são bem pouco favoráveis, se não mesmo hostis à integração europeia.

Ora, entre as conclusões aprovadas - muitas das quais requerem alteração dos Tratados - contam-se algumas bem ousadas, de teor "ultrafederalista", como a proposta de um círculo eleitoral pan-UE, sobreposto aos atuais círculos nacionais (ou infranacionais), que se manteriam, ou a de convocação de referendos ao nível da União. Resta saber se tais propostas conseguem vir a figurar num projeto de revisão dos Tratados e passar, primeiro, na necessária "Convenção" a convocar para o efeito e, depois, na "conferência intergovernamental", que as tem de aprovar por unanimidade, antes da sua ratificação nacional.

Um longo caminho para alterar o atual configuração constitucional da UE.

3. No final do plenário da Conferência, em entusiasmado membro terá saudado o advento do "Estado federal" europeu, o que me parece excessivamente temerário, apesar de convictamente adepto de um aprofundamento federalista da União (que, a meu ver, aliás, já só pode ser corretamente lida numa "chave" federal).

De facto, a ideia de um Estado federal supõe a passagem de toda a soberania para o nível federal, privando dela as unidades federadas (os atuais Estados-membros), o que não parece viável, enquanto vigorar a regra básica de que a União não tem competência para definir a sua própria competência - que depende das atribuições conferidas pelos Estados-membros.

Federalismo europeu, sim, mas nem tanto!

Adenda
Um leitor pergunta se se justifica entrar num complexo e demorado debate sobre a revisão dos Tratados no atual clima de incerteza política criado pela guerra da Ucrânia e pelo contencioso acerca do Estado de direito entre a União e Polónia e Hungria, que tenderão a ameaçar vetar qualquer revisão. Penso que tem razão e que valeria a pena aguardar.

sábado, 30 de abril de 2022

Eleições (3): "Morte" do método de Hondt?

1. Há quem defenda a supressão do método de Hondt como regra de atribuição de mandatos parlamentares no nosso sistema eleitoral proporcional, por alegadamente produzir resultados insuficientemente proporcionais, favorecendo os partidos mais votados e sendo responsável por em muitos círculos eleitorais somente os dois maiores partidos conseguirem eleger deputados, fazendo desperdiçar os votos nos demais partidos.

Sem contestar que outros métodos eleitorais poderiam melhorar o "índice de proporcionalidade" do sistema eleitoral, entendo, porém, que ele não é o principal responsável, nem pela "majoração" da representação parlamentar de que beneficiam os partidos mais votados, nem pela elevada percentagem de votos "desperdiçados", por não chegarem a contar para eleger deputados, prejudicando sobretudo os pequenos e médios partidos com representação parlamentar.

Como já anteriormente referi, a principal responsabilidade por ambos esses dados do nosso sistema eleitoral está nos círculos eleitorais de pequeno tamanho, em que o partido vencedor obtém sempre uma percentagem de deputados muito superior à sua percentagem de votos. Com o atual mapa territorial dos círculos eleitorais, a eventual substituição do método de Hondt por outro pouco alteraria em geral.

2. Há vários fatores que aconselham especial cautela quanto a antecipar um próximo fim do reinado do método do matemático belga do século XIX entre nós: (i) não se trata propriamente de uma exceção nacional, vigorando em vários outros países democráticos (Espanha, Bélgica, Países Baixos, Áustria, Finlândia, etc.); (ii) foi estabelecido logo nas eleições constituintes de 1975 e está consagrado na Constituição, desde o princípio do regime democrático, o que torna a sua substituição pouco fácil; (iii) convém aos partidos de governo, ao moderar uma proporcionalidade excessiva, pelo que não é provável que eles prescindam desse pequeno fator de governabilidade.

Em suma, parafraseando Mark Twain, a notícia da próxima "morte do método de Hondt" é seguramente muito exagerada.

Adenda
Onde a lei poderia substituir o método de Hondt é na repartição dos 226 deputados pelos 20 círculos eleitorais do território nacional, visto que a Constituição não o impõe, e outro método poderia eventualmente favorecer, ainda que marginalmente, os círculos com menos população, atenuando a concentração nos círculos mais populosos (a começar por Lisboa e Porto).

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Eleições (2): Proposta imprestável

1. A proposta de revisão eleitoral que a IL quer apresentar no Parlamento, tal como exposta no seu programa eleitoral, não tem condições para vingar, desde logo por ser desconforme com a Constituição.

É incompatível com a Constituição quanto a dois pontos cruciais: (i) quando suprime os atuais círculos eleitorais subnacionais, que são constitucionalmente obrigatórios, como base principal de eleição e repartição proporcional dos deputados; (ii) quando admite que os partidos mais votados elejam nos círculos uninominais mais deputados do que os que lhe cabem na repartição proporcional nacional, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente imposto.

Esta última incompatibilidade constitucional é especialmente grave, pois não pode ser superada por via de revisão constitucional, por lesar um limite material de revisão - a proporcionalidade eleitoral -, que integra o núcleo essencial da CRP.

2.  Esta proposta de revisão do sistema eleitoral também é de rejeitar sob o ponto de vista político, pelas seguintes razões: (i) por prever a eleição de 150 deputados em microcírculos uninominais, por maioria simples, os quais, além do impraticável desenho geográfico, criariam o risco de os deputados passarem a considerar-se  representantes dos seus microterritórios, e não dos cidadãos em geral, como requer a teoria da democracia representativa; (ii) por criar duas categorias de deputados, os deputados eleitos em círculos uninominais, dotados de legitimidade eleitoral pessoal, e os deputados eleitos por via das listas nacionais dos respetivos partidos; (iii) por prever um chamado "círculo de compensação", de nível nacional, o que baixaria o limiar de eleição de deputados para cerca de 1%, o que iria multiplicar o número de partidos com representação parlamentar, estimulando uma ulterior proliferação partidária, dada a facilidade em entrar no Parlamento. 

Seria uma excelente receita para a instabilidade política, para facilitar as cisões partidárias e para a corrida de qualquer grupo de interesse para obter representação parlamentar.

Só se o PS e o PSD tivessem ensandecido politicamente é que poderiam sufragar esta bizarra reforma eleitoral.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

+ Europa (60): Nem pensar!

1. Segundo este inquérito de opinião em vários países europeus, uma grande maioria dos inquiridos manifestou-se a favor da eleição direta do presidente da Comissão Europeia, substituindo, portanto, a sua atual eleição pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu.

A sondagem não deixa de ser surpreendente, primeiro, porque a eleição direta do chefe de governo, típica do presidencialismo, só se verifica em dois dos Estados-membros da UE (Chipre e França) e, segundo, porque essa ideia colheu apoio em vários países, incluindo Portugal, em que, dada a sua pequena dimensão populacional, os respetivos cidadãos pouco peso teriam em tal eleição direta.  

É evidente que, felizmente, tal opção não tem a mínima viabilidade na UE, pois a necessária revisão dos Tratados nunca passaria, por exigir a unanimidade dos Estados-membros. 

2. Na verdade, a opção presidencialista daria a centralidade política na União a essas eleições e à Comissão, em prejuízo da atual diarquia representativa, assente no Parlamento Europeu (que representa diretamente os cidadãos europeus, na sua pluralidade política) e no Conselho (que representa os governos dos Estados-membros) e entregaria a escolha do Presidente aos maiores países da União (Alemanha, França, Itália), dado o seu peso populacional.

Se o presidencialismo em geral não encontra muito eco na Europa, muito menos o tem nos Estados federais europeus (com exceção da... Rússia). Não é por acaso que no único presidencialismo federal historicamente bem-sucedido, os Estados Unidos, o Presidente não é eleito diretamente pelo conjunto dos cidadãos federais, mas sim por um colégio composto por membros eleitos ao nível da cada estado federado, e cuja composição não reproduz a repartição populacional da federação, favorecendo relativamente os pequenos estados.

Seria lamentável que, mesmo que viesse a optar serodiamente por um presidencialismo governativo, a União esquecesse a lúcida lição dos pais-fundadores dos Estados Unidos.

3. Note-se que, embora pareça conduzir também a uma "eleição direta" do Presidente da Comissão, tal não sucede efetivamente com a proposta dos Spitzenkandidaten ("cabeças de lista") defendida pelo PE nas últimas legislaturas, segundo a qual o presidente da Comissão seria, em princípio, o candidato previamente indicado pelo partido europeu que vença as eleições para o Parlamento Europeu, como sucede na prática a nível nacional na generalidade das democracias parlamentares europeias.

Continuando a ser eleito pelo PE, o Presidente da Comissão teria também a legitimidade própria da sua eleição como eurodeputado, enquanto candidato do partido vencedor (ou do partido em melhores condições para formar uma coligação de governo).  Por conseguinte, ao contrário da eleição direta em sentido próprio, do que se trata aqui é de aumentar a centralidade das eleições parlamentares e de reforçar a natureza parlamentar do sistema de governo da União

Guerra na Ucrânia (35): Investigue-se!

Só pode merecer todo o apoio esta exigência do SG das Nações Unidas de uma investigação independente aos possíveis crimes de guerra cometidos na guerra da Ucrânia

Por um lado, só assim se fundamentam devidamente as várias acusações, sobretudo da parte ucraniana contra as forças russas, distinguindo as que merecem crédito das que fazem parte da eficaz "guerra mediática" ucraniana, paralela à guerra no terreno; por outro lado, mesmo que tais crimes não possam a ser submetidos à julgamento e condenação do TPI, como deviam, sempre resta a punição política e moral, e o registo para memória futura, não menos importante.

Que essa exigência do Guterres não se fique por um voto sem eco nem consequências.

Adenda
Um leitor observa que as vítimas civis e a destruição de edifícios civis não são necessariamente prova de crimes de guerra, visto que a Ucrânia decretou o armamento generalizados dos civis, o que os torna "combatentes" à face das leis da guerra, assim como os edifícios em que se encontrem. Eis o que só uma investigação independente pode deslindar.

terça-feira, 26 de abril de 2022

+ Europa (59): E a economia da UE?!

1. Este ranking das dez maiores economias em 2020 inclui três países da UE, mas omite a economia global da própria União.

Ora, economicamente a UE é um mercado único integrado, com uma política económica coordenada, e uma união aduaneira, com uma pauta aduaneira e uma política comercial externa comum, sem falar na moeda única e na política monetária única, que abrange a maior parte da economia da União. 

Neste quadro, as relações económicas transfronteiriças dentro da União não estão sujeitas às regras do comércio internacional e do investimento direto estrangeiro, mas sim às suas próprias regras internas (as regras do mercado único), não sendo por isso relações económicas internacionais em sentido próprio

2. Por conseguinte, é de aplaudir o ranking seguinte, que coloca a economia integrada da União no seu devido lugar (m segundo lugar, entre os EUA e a China), embora mantendo a indicação separada dos países que a integram:

De facto, é tempo de pôr a economia da UE nos mapas da economia mundial!

Guerra na Ucrânia (34): Dois "enfraquecidos"

O propósito dos Estados Unidos de prolongar a guerra para "enfraquecer a Rússia para que ela deixe de ser uma ameaça para a Europa" tem dois problemas: (i) não se vê como é que, apesar das perdas militares e dos custos económicos da guerra, a Rússia deixa de ser uma "ameaça", permanecendo uma grande potência nuclear; (ii) o prolongamento da guerra e das sanções ocidentais não enfraquecem economicamente só a Rússia, mas também a UE, em termos de inflação e travagem do crescimento (sem falar no indispensável apoio aos refugiados).

Sob o ponto de vista militar e político, quem tira mais proveito do prolongamento da guerra, sem grande impacto económico negativo, são os Estados Unidos.

Adenda
Este quadro (tirado daqui) mostra que, tirando a grande recessão na Rússia, a economia da Zona euro é a mais afetada segundo as mais recentes previsões de crescimento económico do FMI.


Adenda 2
Outro desenvolvimento preocupante é a acentuada  desvalorização do euro face ao dólar, em mínimos de 2017, o que encarece as importações de petróleo e outras commodities, ajudando à subida da inflação.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Campos Elíseos (10): A anomalia francesa

1. Os resultados da 1ª volta das eleições presidenciais francesas confirmaram e consolidaram uma paisagem político-partidária sem paralelo em nenhuma outra grande democracia europeia, estruturada em três grandes opções políticas: (i) a opção centrista vencedora, "liberal-social", pró-UE; (ii) a opção da direita nacionalista, antiliberal e antieuropeia, acima dos 20%; (iii) a opção da esquerda radical, igualmente antiliberal e antieuropeia, também acima dos 20%.

Ou seja, a vitória da opção centrista de Macron implicou o apagamento dos partidos de centro-direita e de centro-esquerda, que durante décadas governaram alternadamente a França, sendo alternativa uma à outra. O PSF foi varrido em 2017 e os Republicanos foram aniquilados agora. A maior parte dos seus quadros e eleitores juntaram-se a Macron, mas outra parte foi engrossar respetivamente a direita nacionalista e a esquerda radical, ou a abstenção. Deixou de haver alternativa política dentro do quadro liberal-democrático e europeísta em França.

2. Razão tiveram entre nós os líderes do PS e do PSD, que, com exceção da situação excecional de 1983-85, afastaram a solução de "bloco central", com o argumento de que tal fórmula governativa iria favorecer a contestação radical à esquerda e à direita. Por isso, nem a esquerda soberanista nem a direita nacionalista têm entre nós a expressão política que revelam em França - longe disso.

É de admitir que as eleições parlamentares de junho permitam aos dois partidos de governo tradicionais recuperar algum espaço político, mas a polarização que as presidenciais evidenciaram não deixam grande margem de correção. O mais provável, apesar do sistema eleitoral adverso, é vermos um reforço da representação parlamentar dos dois partidos extremistas (o RN e o LFI), à custa daqueles (no gráfico acima, a composição política da legislatura cessante, eleita em 2017).

A polarização política ao centro pode alimentar a polarização radical, à esquerda e à direita.


domingo, 24 de abril de 2022

Campos Elíseos (9): "Uma pedra no sapato"

1. Com uma ampla vantagem superior a 17 pontos sobre a candidata da extrema-direita, Macron foi reeleito para a presidência da República Francesa. É um triunfo claro dos valores republicanos e da União Europeia - frontalmente postos em causa por Le Pen -, que merece ser devidamente saudada e festejada, e não somente na França. 

Embora seja a terceira vitória presidencial mais folgada na V República, depois do magno triunfo de Chirac há vinte anos e da sua própria vitória há cinco anos, a confortável reeleição de Macron regista também o melhor resultado de sempre da direita nacionalista e populista, revelando uma profunda clivagem política e sociológica em França, apesar do bom nível de vida e da elevada proteção social - um intrigante "mal francês".

Neste quadro político, não vai ser fácil governar a França sem o risco de forte polarização e contestação política e social.

2. Apesar do sistema de governo de tendência fortemente presidencialista (em parte, à mergem da Constituição), a governabilidade da França depende ainda as eleições parlamentares, a realizar em junho. 

A dinâmica da vitória presidencial de Macron e o sistema eleitoral francês - eleição dos deputados em círculos uninominais por maioria absoluta na primeira volta e, caso tal não se verifique, uma segunda volta limitada aos candidatos que tenham atingido os 12,5% na primeira votação - favorecem uma maioria parlamentar absoluta do partido presidencial, podendo antever-se a formação de uma maioria republicana contra os candidatos da extrema-direita e uma maioria liberal contra os candidatos da esquerda radical em muitos círculos eleitorais na segunda volta.

Mas o quadro político saído das eleições presidenciais, incluindo a robustez revelada pelo bloco nacionalista à direita e pelo bloco liderado por Mélenchon à esquerda e a incógnita do PS e dos Republicanos, pode pôr em risco a maioria parlamentar que Macron ambiciona. Ora, uma maioria presidencial sem maioria parlamentar só pode aprofundar as clivagens políticas e sociais existentese e tornar mais árduo o mandato.

Adenda
Há outra vitória eleitoral pró-europeia e antipopulista a saudar, esta na Eslovénia, onde o primeiro-ministro cessante, assumidamente pró-Orban e pró-Trump, foi surpreendentemente vencido por um candidato da oposição, de um recém-formado partido de inspiração ambientalista, que pode vir a beneficiar do apoio da esquerda parlamentar para formar governo. Foi um bom domingo eleitoral para a UE!


sábado, 23 de abril de 2022

Gostaria de ter escrito isto (29): Condecorações a esmo

«Na verdade, o mal [das condecorações a esmo] já vem de muito antes: começou com Mário Soares, continuou com Cavaco, seguiu com Jorge Sampaio e, quando se imaginaria que já não houvesse ninguém mais para condecorar, não abrandou com Marcelo. 
Começaram por se condecorar todos os ‘antifascistas’ existentes e antes que morressem, depois os exilados, os irmãos da maçonaria, as forças vivas da província, os financiadores dos partidos e das campanhas presidenciais, todos os desportistas que ganhassem lá fora qualquer coisa de um terceiro lugar para cima, ministros cessantes, dinossauros autárquicos, magistrados jubilados, militares passados à reserva, diplomatas reformados, artistas vários e também de variedades, todos os cientistas disponíveis, os emigrantes ilustres, os banqueiros e os empresários antes que caídos em desgraça, e mais todos aqueles e aquelas que entraram pela quota das inevitáveis ‘cunhas’ a que nem os Presidentes escapam.»

          [M. Sousa Tavares, no Expresso desta semana, acesso eletrónico reservado a assinantes.]

Adenda (26/4)
Um leitor não vê mal nenhum naquilo que chama a "democratização das condecorações", considerando que só a elite que tradicionalmente beneficiava de condecorações pode ser contra, por recear a desvalorização das suas. Observo, porém, que, não aceitando condecorações, por princípio, entendo que a banalização das condecorações degrada a sua função de reconhecimento da República por destaque pessoal eminente. Por definição, as condecorações não podem ser objeto de "democratização".

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Campos Elíseos (8): Todos votamos Macron!

Não é certamente por solidariedade partidária que os primeiros-ministros de Portugal, Espanha e  Alemanha decidiram vir apelar publicamente ao voto em Macron e à rejeição de Le Pen nas eleições presidenciais francesas do próximo domingo -, o que não é um prática comum.

Como explicam no seu texto, a razão fundamental da sua tomada de posição está em que estas eleições se tornaram também num referendo francês à integração europeia, dadas as propostas da candidata da extrema-direita de estabelecer uma regra de "preferência nacional" contra os residentes (e produtos) estrangeiros e de afastar a primazia do direito da União na ordem interna, o que choca frontalmente com três das traves-mestras da ordem constitucional da UE, a saber, (i) a liberdade de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais em todo o território da União, (ii) a igualdade de tratamento nacional de todos os cidadãos da União e (iii) a vinculação de todos os Estados-membros ao cumprimento das suas obrigações perante a União, sem poderem invocar contra elas o seu direito nacional, o que lhes permitiria furtar-se a elas.

É evidente que, mesmo que Le Pen declare que não pretende fazer sair a França da União, trata-se de um puro farisaísmo político, pois, se fosse eleita, aquelas decisões levariam necessariamente à saída da União, criando uma crise de gravidade inimaginável na integração europeia, dada a importância central da França. Por isso, estas eleições francesas interessam a todos os europeus e no próximo domingo todos os europeístas "votamos" Macron.

Adenda
Um leitor pergunta se este apelo não «configura uma intervenção numa eleição de um país estrangeiro - coisa que, em geral, é considerada de mau tom, quando não mesmo um ato hostil». Penso que o argumento é pertinente em geral, mas que no caso da UE, dada a integração política supranacional existente, deixou de haver eleições estritamente nacionais, pois um resultado contra a União num dos Estados-membros afeta todos os demais. Em todo o caso, não é de descartar a possibilidade de um efeito contraproducente, por reação adversa dos eleitores franceses a pressões externas.

Adenda 2
Num certeiro editoral, intitulado «França: Eleiçoes europeias», o El Pais de hoje considera que a candidatura de Le Pen «ameaça o próprio coração da União Europeia».

No bicentenário da Revolução Liberal (37): Uma distinção




O livro sobre a Vida e obra política de José Ferreira Borges, último volume da trilogia sobre o Bicentenário da Revolução Liberal (Porto Editora, 2021), da minha coautoria com José Domingues, acaba de ser distinguido com uma "menção honrosa" pelo Grémio Literário (Lisboa), por ocasião das comemorações do 175º aniversário da sua fundação.

Tive ocasião de agradecer pessoalmente a distinção da nossa obra pelo júri - tanto mais gratificante, quanto é certo que não se trata de uma obra literária nem sobre assuntos literários, mas sim de uma biografia intelectual de um dos grandes protagonistas da Revolução de 1820 e do liberalismo em Portugal  -, fazendo questão de felicitar calorosamente a vencedora do prémio, Maria Filomena Mónica, também presente, pela sua magnífica obra sobre a "estranha amizade" entre Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.

Este reconhecimento público por uma prestigiada instituição anima-nos a prosseguir o projeto de investigação sobre a implantação do constitucionalismo entre nós, que vai prosseguir com a publicação, dentro em breve, de uma monografia sobre as primeiras eleições parlamentares ordinárias, faz este ano dois séculos (agosto de 1822).

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Praça da República (66): Juízes fora da política, pois claro!

1. Não podia concordar mais com a posição ontem defendida pelo Presidente do STJ na inauguração tardia do ano judicial, segundo a qual os juízes que optam pelo desempenho de cargos políticos devem deixar a magistratura

Além de defender há muito essa posição (por exemplo, AQUI), entendo que ela decorre da própria Constituição, nomeadamente dos princípios da separação de poderes e da independência dos juízes (que postula a sua independência e isenção política, obviamente inquinadas pela assunção de responsabilidades políticas)

2. Concordo também com outras posições defendidas pelo orador, designadamente quanto ao espalhafato populista da cobertura jornalística das decisões judiciais (porém, facilitado por algumas infelizes decisões judiciais e pela deficiente comunicação judicial) e quanto às reformas legislativas apressadas sob pressão de casos individuais mediaticamente explorados.

No entanto, é de sublinhar sobretudo a denúncia da miserável impunidade do crime de violação do segredo de justiça, e o consequente julgamento definitivo dos visados na praça pública, antes sequer de qualquer acusação judicial. Apesar de se tratar da proteção penal de um direito protegido constitucionalmente, o próprio Ministério Público decidiu expurgá-lo de facto do Código Penal, com aplauso da imprensa e da televisão tablóide, como tenho denunciado ao longo dos anos (por exemplo, AQUI e AQUI).

Eis uma das maiores falhas do Estado de direito entre nós, com a complacência de sucessivos governos e parlamentos.

Adenda
Por esta altura não faltam propostas de reforma de justiça a esmo, incluindo algumas bem bizarras, como a eleição do PGR pelos próprios agentes do Ministério Público, como se aquele fosse um representante destes e como se uma estrutura hierarquizada pudesse ser chefiada em modo de autogoverno. Nem o sindicato da classe ousaria ir tão longe!