Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
terça-feira, 10 de maio de 2022
Guerra na Ucrânia (37): Há vozes sensatas
segunda-feira, 9 de maio de 2022
+ Europa (62): Uma iniciativa para repetir
1. "Parlamento Europeu à sua porta" - eis uma maneira original de celebrar o dia da União (9 de maio), por iniciativa da delegação nacional do Parlamento Europeu, a instituição mais expressiva da democracia europeia.
O bem-conseguido evento em Coimbra - que foi precedido de iniciativas semelhantes noutras cidades - incluiu um debate entre três eurodeputadas, todas conimbricenses, em representação de três diferentes grupos políticos no Parlamento Europeu (PPE, S&D e Esquerda). Os temas introduzidos no animado debate entre as três europutadas pelo moderador (um jornalista do Expresso) e pela assistência versaram em geral sobre temas concretos de interesse para os cidadãos europeus, e não somente sobre a guerra da Ucrânia e suas implicações para a UE.
São realizações destas que podem ajudar a aproximar os cidadãos europeus das instituições da União, designadamente daquela que os representa politicamente.
2. Curiosa foi a unanimidade das três eurodeputadas - que a nível partidário nacional integram o PS, o PSD e o BE - na rejeição da ideia "ultrafederalista" de um círculo eleitoral pan-UE nas eleições do PE, com listas transnacionais, sobreposto aos atuais círculos nacionais ou infranacionais, tema que agora ressurgiu num relatório sobre a reforma eleitoral aprovado no Parlamento Europeu e no relatório final da Conferência sobre o Futuro da Europa, hoje apresentado em Estrasburgo.
Essa posição consensual permite antecipar que, mesmo que essa ideia passe no Parlamento Europeu, o Governo português deve ser um dos que se lhe vão opor no Conselho da União, inviabilizando-a, visto que a lei eleitoral carece da unanimidade dos Estados-membros. Ainda bem que fica na gaveta, como AQUI defendi!
Este País não tem emenda (28): Não ao estacionamento gratuito
1. Esta manhã, pretendendo assistir a um evento na Praça da República, em pleno centro urbano de Coimbra, só à segunda e lenta volta ao perímetro de ruas circundantes é que consegui encontrar um lugar de estacionamento regular.
A verdade que os numerosos lugares de estacionamento disponíveis em todas essas ruas são de utilização gratuita, o que permite a sua ocupação por tempo indefinido, reduzindo a sua rotatividade. E tanbém não existem na zona parques de estacionamento pago.
Há muito que defendo que uma cidade que queira reduzir o congestionamento automóvel e aumentar a qualidade de vida urbana não pode ter estacionamento gratuito, muito menos nas zonas centrais. De resto, ao contrário do que muita gente pressupõe, entre os direitos fundamentais não consta o direito à ocupação automóvel gratuita do espaço público.
2. Hoje em dia, passo uma parte do tempo em Bruxelas, onde não existe estacionamento gratuito e onde, portanto, quem não disponha de estacionamento privativo tem de incorporar o custo do estacionamento no preço de ter carro, o que constitui um forte desincentivo à aquisição e à utlização de automóvel.
Em Portugal, pelo contrário, as pessoas julgam que a aquisição de um automóvel lhes dá direito automático a estacionamento gratuito e mobilizam-se ativamente contra a introdução de estacionamento oneroso, como alguns municípios têm vindo, arrastadamente, a fazer. Ao desmazelo da generalidade dos municípios junta-se a irresponsabilidade cívica e a prevalência do interesse individual sobre o interesse coletivo.
3. É por isso que vejo com tristeza que entre os motivos da moção de censura apresentada pelo PS de Setúbal à respetiva câmara municipal se conta, ao lado do caso dos refugiados ucranianos, também a acusação contra o «estacionamento tarifado em grande parte da cidade».
Como resulta do que acima digo, a referida atuação da CM de Setúbal não é de censurar, como lamentavelmente entende o PS local, mas sim de louvar. Prouvera que a CM de Coimbra, e outras cidades do País, seguissem o mesmo caminho.
domingo, 8 de maio de 2022
Livro de reclamações (25): Onde o Simplex não entrou
1. Foi assim:
a) Há tempos dirigi-me à delegação de Coimbra do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) para recuperar o livrete de um atrelado automóvel emprestado por um familiar, documento que me fora retido pela GNR, por eu não ter feito prova do competente seguro. Tendo exibido a prova do seguro e sendo confirmado que o documento se encontrava ali, fui porém informado que não podia reavê-lo, por não ser o proprietário do veículo, de nada me valendo argumentar que o livrete tinha sido apreendido a mim e que não era por acaso que ele tinha sido remetido pelo próprio IMT para Coimbra, minha residência.
b) Eis-me de novo no serviço, devidamente munido de uma procuração do proprietário, residente no Porto. Mas continmuei sem poder recuperar o livrete, desta vez por falta de um requerimento do próprio a pedi-lo, sendo em vão que me propus fazer eu o dito requerimento, no uso de "todos poderes necessários", que a procuração me oferecia. Era "o regulamento" - argumentava a zelosa funcionária em frio burocratez!
c) E foi só à terceira deslocação, somando horas perdidas e respetiva despesa, que consegui resgatar o miserável e oneroso livrete!
Julguei que o programa Simplex tinha chegado a todos os serviços na Administração Pública, mas, pelos vistos, estava enganado.
3. Que em 2022, muitos anos depois do arranque dos programa Simplex, visando a simplificação dos serviços administrativos em prol da comodidade dos cidadãos, seja necessário passar por estas barreiras para recuperar um simples documento de identificação automóvel, quando tudo se tornou fácil e expedito no caso dos documentos de identificação pessoal (cartão de cidadão e passaporte), mostra que, em contracorrente, há silos na Administração imunes a qualquer modernização administrativa.
De resto, com os atuais meios tecnológicos, não existe nenhuma razão para que os documentos automóveis não revistam forma digital, com acesso direto da polícia de trânsito aos mesmos, e que os assuntos a eles respeitantes não passem por um procedimento digital, sem necessidade de deslocação física dos interessados aos serviços. Infelizmente, há lugares onde os velhos procedimentos burocráticos e a desconsideração pelos utentes dos serviços públicos prevalecem. Até quando?
sábado, 7 de maio de 2022
Era o que faltava!: A "estupefação" de Rui Rio
Não tem razão de ser a "profunda estupefação" do ainda Presidente em exercício do PSD contra o facto de o PS ter obstado na AR a uma audição do Presidente da CM de Setúbal sobre o polémico caso da receção aos refugiados ucranianos.
Na verdade, os chefes de governo municipal, tal como os chefes de governo regional, não podem ser chamados a dar explicações na AR, pela simples razão de que não são responsáveis perante ela, só respondendo politicamente perante as respetivas assembleias municipais e os respetivos eleitores locais. É fácil ver que uma tal possibilidade daria ao partido maioritário na AR a possibilidade de "chamar a capítulo" e de "chatear" politicamente as câmaras municipais dos partidos da oposição.
Não estando obviamente prevista na Cosntuiação, uma tal eventualidade representaria, em qualquer caso, uma subversão do regime constitucional de autonomia municipal e do sistema de responsabilidade política entre nós.
quinta-feira, 5 de maio de 2022
Regionalização (7): Com conceitos errados não vamos lá
1. Que na linguagem corrente haja uma descabida distinção entre "descentralização" e "regionalização", reduzindo a primeira à transferência de tarefas do Estados para os muncípios, é mau. Que a própria Ministra competente perfilhe essa errada perspetiva, é péssimo para o processo de regionalização, ou seja, de instituição das autarquias regionais em falta desde 1976, cuja retoma o PS e Governo assumiram explicitamente para esta legislatura.
Com efeito, quer sob o ponto de vista teórico, quer constitucional, a descentralização territorial abrange, ao mesmo título, tanto a transferência de competências do Estado para os municípios e CIM (descentralização municipal) como para as autarquias regionais (descentralização regional). A diferença está em que para haver a segunda é preciso criar as competentes autarquias regionais.
2. Essa falta de rigor conceptual só ajuda os adversários da regionalização, que reduzem a verdadeira e própria descentralização à autonomia municipal, tornando dispensável ou supérflua a regionalização.
Um discurso pró-regionalização deve, pelo contrário, sublinhar que as autarquias regionais (designação preferível à anódina noção constitucional de "regiões administrativas") são uma forma de descentralização e que sem elas continuará incompleto o programa de descentralização territorial no Continente previsto na Constituição, prestes a completar meio século.
terça-feira, 3 de maio de 2022
Bloquices (20): De acordo
Sendo um "partido de protesto" por natureza, que não "suja as mãos" nas coisas de governo - que é um negócio de cedências à realidade -, a "Geringonça" só podia ter sido um equívoco capítulo transitório, que o BE encerrou com alívio.
segunda-feira, 2 de maio de 2022
+Europa (60): Federalismo, mas nem tanto!
1. Por culpa da pandemia e, ultimamente, da guerra na Ucrânia, a Conferência sobre o Futuro da Europa - que mobilizou durante um ano representantes das instituições europeias, dos parlamentos nacionais e de painéis de cidadãos -, não teve infelizmente a visibilidade nem a cobertura mediática, e não só em Portugal, que os seus trabalhos mereciam.
Prestes a terminar a sua agenda, a comissão executiva vai apresentar o relatório final às instituições europeias no próximo dia 9 de maio, dia da União, no Parlamento Europeu em Estrasburgo. No entanto, as conclusões não devem afastar-se das muitas propostas aprovadas na sessão plenária, no mesmo local, na semana passada, em geral no sentido de aprofundar a integração e a democracia europeia.
Não é por falta de propostas que a CFE poderá ser criticada.
2. Embora a Conferência não tenha sido consensual, pois as conclusões tiveram a oposição da direita antieuropeia e mais eurocética, ela colheu um amplo apoio, incluindo, surpreendentemente, o grupo da Esquerda Europeia, cujos partidos integrantes em alguns países, incluindo Portugal, são bem pouco favoráveis, se não mesmo hostis à integração europeia.
Ora, entre as conclusões aprovadas - muitas das quais requerem alteração dos Tratados - contam-se algumas bem ousadas, de teor "ultrafederalista", como a proposta de um círculo eleitoral pan-UE, sobreposto aos atuais círculos nacionais (ou infranacionais), que se manteriam, ou a de convocação de referendos ao nível da União. Resta saber se tais propostas conseguem vir a figurar num projeto de revisão dos Tratados e passar, primeiro, na necessária "Convenção" a convocar para o efeito e, depois, na "conferência intergovernamental", que as tem de aprovar por unanimidade, antes da sua ratificação nacional.
Um longo caminho para alterar o atual configuração constitucional da UE.
3. No final do plenário da Conferência, em entusiasmado membro terá saudado o advento do "Estado federal" europeu, o que me parece excessivamente temerário, apesar de convictamente adepto de um aprofundamento federalista da União (que, a meu ver, aliás, já só pode ser corretamente lida numa "chave" federal).
De facto, a ideia de um Estado federal supõe a passagem de toda a soberania para o nível federal, privando dela as unidades federadas (os atuais Estados-membros), o que não parece viável, enquanto vigorar a regra básica de que a União não tem competência para definir a sua própria competência - que depende das atribuições conferidas pelos Estados-membros.
Federalismo europeu, sim, mas nem tanto!
sábado, 30 de abril de 2022
Eleições (3): "Morte" do método de Hondt?
1. Há quem defenda a supressão do método de Hondt como regra de atribuição de mandatos parlamentares no nosso sistema eleitoral proporcional, por alegadamente produzir resultados insuficientemente proporcionais, favorecendo os partidos mais votados e sendo responsável por em muitos círculos eleitorais somente os dois maiores partidos conseguirem eleger deputados, fazendo desperdiçar os votos nos demais partidos.
Sem contestar que outros métodos eleitorais poderiam melhorar o "índice de proporcionalidade" do sistema eleitoral, entendo, porém, que ele não é o principal responsável, nem pela "majoração" da representação parlamentar de que beneficiam os partidos mais votados, nem pela elevada percentagem de votos "desperdiçados", por não chegarem a contar para eleger deputados, prejudicando sobretudo os pequenos e médios partidos com representação parlamentar.
Como já anteriormente referi, a principal responsabilidade por ambos esses dados do nosso sistema eleitoral está nos círculos eleitorais de pequeno tamanho, em que o partido vencedor obtém sempre uma percentagem de deputados muito superior à sua percentagem de votos. Com o atual mapa territorial dos círculos eleitorais, a eventual substituição do método de Hondt por outro pouco alteraria em geral.
2. Há vários fatores que aconselham especial cautela quanto a antecipar um próximo fim do reinado do método do matemático belga do século XIX entre nós: (i) não se trata propriamente de uma exceção nacional, vigorando em vários outros países democráticos (Espanha, Bélgica, Países Baixos, Áustria, Finlândia, etc.); (ii) foi estabelecido logo nas eleições constituintes de 1975 e está consagrado na Constituição, desde o princípio do regime democrático, o que torna a sua substituição pouco fácil; (iii) convém aos partidos de governo, ao moderar uma proporcionalidade excessiva, pelo que não é provável que eles prescindam desse pequeno fator de governabilidade.
Em suma, parafraseando Mark Twain, a notícia da próxima "morte do método de Hondt" é seguramente muito exagerada.
quinta-feira, 28 de abril de 2022
Eleições (2): Proposta imprestável
1. A proposta de revisão eleitoral que a IL quer apresentar no Parlamento, tal como exposta no seu programa eleitoral, não tem condições para vingar, desde logo por ser desconforme com a Constituição.
É incompatível com a Constituição quanto a dois pontos cruciais: (i) quando suprime os atuais círculos eleitorais subnacionais, que são constitucionalmente obrigatórios, como base principal de eleição e repartição proporcional dos deputados; (ii) quando admite que os partidos mais votados elejam nos círculos uninominais mais deputados do que os que lhe cabem na repartição proporcional nacional, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente imposto.
Esta última incompatibilidade constitucional é especialmente grave, pois não pode ser superada por via de revisão constitucional, por lesar um limite material de revisão - a proporcionalidade eleitoral -, que integra o núcleo essencial da CRP.
2. Esta proposta de revisão do sistema eleitoral também é de rejeitar sob o ponto de vista político, pelas seguintes razões: (i) por prever a eleição de 150 deputados em microcírculos uninominais, por maioria simples, os quais, além do impraticável desenho geográfico, criariam o risco de os deputados passarem a considerar-se representantes dos seus microterritórios, e não dos cidadãos em geral, como requer a teoria da democracia representativa; (ii) por criar duas categorias de deputados, os deputados eleitos em círculos uninominais, dotados de legitimidade eleitoral pessoal, e os deputados eleitos por via das listas nacionais dos respetivos partidos; (iii) por prever um chamado "círculo de compensação", de nível nacional, o que baixaria o limiar de eleição de deputados para cerca de 1%, o que iria multiplicar o número de partidos com representação parlamentar, estimulando uma ulterior proliferação partidária, dada a facilidade em entrar no Parlamento.
Seria uma excelente receita para a instabilidade política, para facilitar as cisões partidárias e para a corrida de qualquer grupo de interesse para obter representação parlamentar.
Só se o PS e o PSD tivessem ensandecido politicamente é que poderiam sufragar esta bizarra reforma eleitoral.
quarta-feira, 27 de abril de 2022
+ Europa (60): Nem pensar!
1. Segundo este inquérito de opinião em vários países europeus, uma grande maioria dos inquiridos manifestou-se a favor da eleição direta do presidente da Comissão Europeia, substituindo, portanto, a sua atual eleição pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu.
A sondagem não deixa de ser surpreendente, primeiro, porque a eleição direta do chefe de governo, típica do presidencialismo, só se verifica em dois dos Estados-membros da UE (Chipre e França) e, segundo, porque essa ideia colheu apoio em vários países, incluindo Portugal, em que, dada a sua pequena dimensão populacional, os respetivos cidadãos pouco peso teriam em tal eleição direta.
É evidente que, felizmente, tal opção não tem a mínima viabilidade na UE, pois a necessária revisão dos Tratados nunca passaria, por exigir a unanimidade dos Estados-membros.
2. Na verdade, a opção presidencialista daria a centralidade política na União a essas eleições e à Comissão, em prejuízo da atual diarquia representativa, assente no Parlamento Europeu (que representa diretamente os cidadãos europeus, na sua pluralidade política) e no Conselho (que representa os governos dos Estados-membros) e entregaria a escolha do Presidente aos maiores países da União (Alemanha, França, Itália), dado o seu peso populacional.
Se o presidencialismo em geral não encontra muito eco na Europa, muito menos o tem nos Estados federais europeus (com exceção da... Rússia). Não é por acaso que no único presidencialismo federal historicamente bem-sucedido, os Estados Unidos, o Presidente não é eleito diretamente pelo conjunto dos cidadãos federais, mas sim por um colégio composto por membros eleitos ao nível da cada estado federado, e cuja composição não reproduz a repartição populacional da federação, favorecendo relativamente os pequenos estados.
Seria lamentável que, mesmo que viesse a optar serodiamente por um presidencialismo governativo, a União esquecesse a lúcida lição dos pais-fundadores dos Estados Unidos.
3. Note-se que, embora pareça conduzir também a uma "eleição direta" do Presidente da Comissão, tal não sucede efetivamente com a proposta dos Spitzenkandidaten ("cabeças de lista") defendida pelo PE nas últimas legislaturas, segundo a qual o presidente da Comissão seria, em princípio, o candidato previamente indicado pelo partido europeu que vença as eleições para o Parlamento Europeu, como sucede na prática a nível nacional na generalidade das democracias parlamentares europeias.
Continuando a ser eleito pelo PE, o Presidente da Comissão teria também a legitimidade própria da sua eleição como eurodeputado, enquanto candidato do partido vencedor (ou do partido em melhores condições para formar uma coligação de governo). Por conseguinte, ao contrário da eleição direta em sentido próprio, do que se trata aqui é de aumentar a centralidade das eleições parlamentares e de reforçar a natureza parlamentar do sistema de governo da União.
Guerra na Ucrânia (35): Investigue-se!
Só pode merecer todo o apoio esta exigência do SG das Nações Unidas de uma investigação independente aos possíveis crimes de guerra cometidos na guerra da Ucrânia.
Por um lado, só assim se fundamentam devidamente as várias acusações, sobretudo da parte ucraniana contra as forças russas, distinguindo as que merecem crédito das que fazem parte da eficaz "guerra mediática" ucraniana, paralela à guerra no terreno; por outro lado, mesmo que tais crimes não possam a ser submetidos à julgamento e condenação do TPI, como deviam, sempre resta a punição política e moral, e o registo para memória futura, não menos importante.
Que essa exigência do Guterres não se fique por um voto sem eco nem consequências.
terça-feira, 26 de abril de 2022
+ Europa (59): E a economia da UE?!
Ora, economicamente a UE é um mercado único integrado, com uma política económica coordenada, e uma união aduaneira, com uma pauta aduaneira e uma política comercial externa comum, sem falar na moeda única e na política monetária única, que abrange a maior parte da economia da União.
Neste quadro, as relações económicas transfronteiriças dentro da União não estão sujeitas às regras do comércio internacional e do investimento direto estrangeiro, mas sim às suas próprias regras internas (as regras do mercado único), não sendo por isso relações económicas internacionais em sentido próprio.
2. Por conseguinte, é de aplaudir o ranking seguinte, que coloca a economia integrada da União no seu devido lugar (m segundo lugar, entre os EUA e a China), embora mantendo a indicação separada dos países que a integram:
Guerra na Ucrânia (34): Dois "enfraquecidos"
O propósito dos Estados Unidos de prolongar a guerra para "enfraquecer a Rússia para que ela deixe de ser uma ameaça para a Europa" tem dois problemas: (i) não se vê como é que, apesar das perdas militares e dos custos económicos da guerra, a Rússia deixa de ser uma "ameaça", permanecendo uma grande potência nuclear; (ii) o prolongamento da guerra e das sanções ocidentais não enfraquecem economicamente só a Rússia, mas também a UE, em termos de inflação e travagem do crescimento (sem falar no indispensável apoio aos refugiados).
Sob o ponto de vista militar e político, quem tira mais proveito do prolongamento da guerra, sem grande impacto económico negativo, são os Estados Unidos.
segunda-feira, 25 de abril de 2022
Campos Elíseos (10): A anomalia francesa
1. Os resultados da 1ª volta das eleições presidenciais francesas confirmaram e consolidaram uma paisagem político-partidária sem paralelo em nenhuma outra grande democracia europeia, estruturada em três grandes opções políticas: (i) a opção centrista vencedora, "liberal-social", pró-UE; (ii) a opção da direita nacionalista, antiliberal e antieuropeia, acima dos 20%; (iii) a opção da esquerda radical, igualmente antiliberal e antieuropeia, também acima dos 20%.
Ou seja, a vitória da opção centrista de Macron implicou o apagamento dos partidos de centro-direita e de centro-esquerda, que durante décadas governaram alternadamente a França, sendo alternativa uma à outra. O PSF foi varrido em 2017 e os Republicanos foram aniquilados agora. A maior parte dos seus quadros e eleitores juntaram-se a Macron, mas outra parte foi engrossar respetivamente a direita nacionalista e a esquerda radical, ou a abstenção. Deixou de haver alternativa política dentro do quadro liberal-democrático e europeísta em França.
2. Razão tiveram entre nós os líderes do PS e do PSD, que, com exceção da situação excecional de 1983-85, afastaram a solução de "bloco central", com o argumento de que tal fórmula governativa iria favorecer a contestação radical à esquerda e à direita. Por isso, nem a esquerda soberanista nem a direita nacionalista têm entre nós a expressão política que revelam em França - longe disso.
É de admitir que as eleições parlamentares de junho permitam aos dois partidos de governo tradicionais recuperar algum espaço político, mas a polarização que as presidenciais evidenciaram não deixam grande margem de correção. O mais provável, apesar do sistema eleitoral adverso, é vermos um reforço da representação parlamentar dos dois partidos extremistas (o RN e o LFI), à custa daqueles (no gráfico acima, a composição política da legislatura cessante, eleita em 2017).
A polarização política ao centro pode alimentar a polarização radical, à esquerda e à direita.
domingo, 24 de abril de 2022
Campos Elíseos (9): "Uma pedra no sapato"
1. Com uma ampla vantagem superior a 17 pontos sobre a candidata da extrema-direita, Macron foi reeleito para a presidência da República Francesa. É um triunfo claro dos valores republicanos e da União Europeia - frontalmente postos em causa por Le Pen -, que merece ser devidamente saudada e festejada, e não somente na França.
Embora seja a terceira vitória presidencial mais folgada na V República, depois do magno triunfo de Chirac há vinte anos e da sua própria vitória há cinco anos, a confortável reeleição de Macron regista também o melhor resultado de sempre da direita nacionalista e populista, revelando uma profunda clivagem política e sociológica em França, apesar do bom nível de vida e da elevada proteção social - um intrigante "mal francês".
Neste quadro político, não vai ser fácil governar a França sem o risco de forte polarização e contestação política e social.
2. Apesar do sistema de governo de tendência fortemente presidencialista (em parte, à mergem da Constituição), a governabilidade da França depende ainda as eleições parlamentares, a realizar em junho.
A dinâmica da vitória presidencial de Macron e o sistema eleitoral francês - eleição dos deputados em círculos uninominais por maioria absoluta na primeira volta e, caso tal não se verifique, uma segunda volta limitada aos candidatos que tenham atingido os 12,5% na primeira votação - favorecem uma maioria parlamentar absoluta do partido presidencial, podendo antever-se a formação de uma maioria republicana contra os candidatos da extrema-direita e uma maioria liberal contra os candidatos da esquerda radical em muitos círculos eleitorais na segunda volta.
Mas o quadro político saído das eleições presidenciais, incluindo a robustez revelada pelo bloco nacionalista à direita e pelo bloco liderado por Mélenchon à esquerda e a incógnita do PS e dos Republicanos, pode pôr em risco a maioria parlamentar que Macron ambiciona. Ora, uma maioria presidencial sem maioria parlamentar só pode aprofundar as clivagens políticas e sociais existentese e tornar mais árduo o mandato.
sábado, 23 de abril de 2022
Gostaria de ter escrito isto (29): Condecorações a esmo
«Na verdade, o mal [das condecorações a esmo] já vem de muito antes: começou com Mário Soares, continuou com Cavaco, seguiu com Jorge Sampaio e, quando se imaginaria que já não houvesse ninguém mais para condecorar, não abrandou com Marcelo.
Começaram por se condecorar todos os ‘antifascistas’ existentes e antes que morressem, depois os exilados, os irmãos da maçonaria, as forças vivas da província, os financiadores dos partidos e das campanhas presidenciais, todos os desportistas que ganhassem lá fora qualquer coisa de um terceiro lugar para cima, ministros cessantes, dinossauros autárquicos, magistrados jubilados, militares passados à reserva, diplomatas reformados, artistas vários e também de variedades, todos os cientistas disponíveis, os emigrantes ilustres, os banqueiros e os empresários antes que caídos em desgraça, e mais todos aqueles e aquelas que entraram pela quota das inevitáveis ‘cunhas’ a que nem os Presidentes escapam.»
[M. Sousa Tavares, no Expresso desta semana, acesso eletrónico reservado a assinantes.]
sexta-feira, 22 de abril de 2022
Campos Elíseos (8): Todos votamos Macron!
Não é certamente por solidariedade partidária que os primeiros-ministros de Portugal, Espanha e Alemanha decidiram vir apelar publicamente ao voto em Macron e à rejeição de Le Pen nas eleições presidenciais francesas do próximo domingo -, o que não é um prática comum.
Como explicam no seu texto, a razão fundamental da sua tomada de posição está em que estas eleições se tornaram também num referendo francês à integração europeia, dadas as propostas da candidata da extrema-direita de estabelecer uma regra de "preferência nacional" contra os residentes (e produtos) estrangeiros e de afastar a primazia do direito da União na ordem interna, o que choca frontalmente com três das traves-mestras da ordem constitucional da UE, a saber, (i) a liberdade de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais em todo o território da União, (ii) a igualdade de tratamento nacional de todos os cidadãos da União e (iii) a vinculação de todos os Estados-membros ao cumprimento das suas obrigações perante a União, sem poderem invocar contra elas o seu direito nacional, o que lhes permitiria furtar-se a elas.
É evidente que, mesmo que Le Pen declare que não pretende fazer sair a França da União, trata-se de um puro farisaísmo político, pois, se fosse eleita, aquelas decisões levariam necessariamente à saída da União, criando uma crise de gravidade inimaginável na integração europeia, dada a importância central da França. Por isso, estas eleições francesas interessam a todos os europeus e no próximo domingo todos os europeístas "votamos" Macron.
No bicentenário da Revolução Liberal (37): Uma distinção
Tive ocasião de agradecer pessoalmente a distinção da nossa obra pelo júri - tanto mais gratificante, quanto é certo que não se trata de uma obra literária nem sobre assuntos literários, mas sim de uma biografia intelectual de um dos grandes protagonistas da Revolução de 1820 e do liberalismo em Portugal -, fazendo questão de felicitar calorosamente a vencedora do prémio, Maria Filomena Mónica, também presente, pela sua magnífica obra sobre a "estranha amizade" entre Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.
Este reconhecimento público por uma prestigiada instituição anima-nos a prosseguir o projeto de investigação sobre a implantação do constitucionalismo entre nós, que vai prosseguir com a publicação, dentro em breve, de uma monografia sobre as primeiras eleições parlamentares ordinárias, faz este ano dois séculos (agosto de 1822).
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Praça da República (66): Juízes fora da política, pois claro!
1. Não podia concordar mais com a posição ontem defendida pelo Presidente do STJ na inauguração tardia do ano judicial, segundo a qual os juízes que optam pelo desempenho de cargos políticos devem deixar a magistratura.
Além de defender há muito essa posição (por exemplo, AQUI), entendo que ela decorre da própria Constituição, nomeadamente dos princípios da separação de poderes e da independência dos juízes (que postula a sua independência e isenção política, obviamente inquinadas pela assunção de responsabilidades políticas).
2. Concordo também com outras posições defendidas pelo orador, designadamente quanto ao espalhafato populista da cobertura jornalística das decisões judiciais (porém, facilitado por algumas infelizes decisões judiciais e pela deficiente comunicação judicial) e quanto às reformas legislativas apressadas sob pressão de casos individuais mediaticamente explorados.
No entanto, é de sublinhar sobretudo a denúncia da miserável impunidade do crime de violação do segredo de justiça, e o consequente julgamento definitivo dos visados na praça pública, antes sequer de qualquer acusação judicial. Apesar de se tratar da proteção penal de um direito protegido constitucionalmente, o próprio Ministério Público decidiu expurgá-lo de facto do Código Penal, com aplauso da imprensa e da televisão tablóide, como tenho denunciado ao longo dos anos (por exemplo, AQUI e AQUI).
Eis uma das maiores falhas do Estado de direito entre nós, com a complacência de sucessivos governos e parlamentos.
quarta-feira, 20 de abril de 2022
Não dá para entender (33): Faltam "senadoras" no PS?
1. Depois do brilharete da paridade entre homens e mulheres na composição ministerial do novo Governo, o PS dá uma cambalhota no que respeita à igualdade de género no desempenho de cargos políticos, propondo na AR somente candidatos masculinos ao Conselho de Estado (acrescentando agora Sampaio da Nóvoa aos repetentes Carlos César e Manuel Alegre).
É caso para dizer que as mulheres interessam para os pesados cargos governamentais, onde a imagem do Governo conta politicamente, mas já são descartáveis quando se trata de honras e sinecuras institucionais.
2. A questão óbvia que se coloca é a de saber se no Largo do Rato existe alguma desconhecida norma de "reserva de masculinidade" quanto à composição do Conselho de Estado ou se não existe em todo o PS nenhuma "senadora" com perfil adequado para aquela discreta função consultiva do Presidente da República.
Curioso vai ser saber se as deputadas do PS vão endossar politicamente esta surpreendente desconsideração do princípio por que tanto se tem batido o Partido (e as mulheres socialistas em especial)...
Guerra na Ucrânia (33): Más notícias na frente económica
1. Duas notícias preocupantes para a economia alemã: (i) a acentuada descida na previsão de crescimento pelo FMI para este ano, agora reduzida para 2,3% (a mais baixa das economias desenvolvidas, como mostra a tabela acima); (ii) a enorme subida dos preços na produção, a maior de que há registo estatístico há décadas, o que prenuncia um agravamento da inflação, que já vai em mais de 7%.
Atribuída essencialmente ao aumento da energia e das matérias-primas oriundas da Rússia e da Ucrânia, por causa da guerra e das sanções, esta degradação da situação económica na Alemanha, torna cada vez mais improvável o boicote à importação de gás russo, como Kiev exige, para o qual não existe alternativa num curto prazo.
2. Sendo a maior da UE, a evolução desfavorável do desempenho da economia alemã quanto a crescimento e inflação - aliás, também verificada no caso da França e da Itália - não pode deixar de repercutir-se nas demais, dada a sua profunda integração no mercado interno.
Por isso, são de esperar duas consequências: (i) uma revisão das perspetivas orçamentais nacionais na generalidade dos países, ou seja, menos receita e mais despesa pública e, portanto, mais défice e mais dívida pública e (ii) maior pressão sobre o BCE para a "normalização" da política monetária e para aumento da taxa de juro, a fim de travar a escalada inflacionista, o que vai contribuir para reduzir o crescimento económico.
As más notícias para a Alemanha (e outras grande economias europeias) são também más para Portugal, tornando problemático o enquadramento macroeconómico do orçamento ainda pendente de aprovação na AR.
3. O prolongamento da guerra, sem fim à vista, e o agravamento das sanções à Rússia não permitem mais considerar como conjuntural e passageira a deterioração da situação económica na UE, apesar da cornucópia de fundos do PRR. Como aqui se tem assinalado, fora os beligerantes, a União é a principal "vítima colateral" da guerra, enquanto os Estados Unidos e a China se contam entre os principais beneficiários.
O que é estranho é que, em vez de pressionar para uma solução política negociada do conflito - única forma de lhe pôr termo -, a UE continue a acicatá-lo e a apostar numa derrota da Rússia por «falência económica», por efeito das sanções, o que, mesmo que não seja pouco provável, não está seguramente para ocorrer a breve trecho (as projeções do FMI acima referidas não apontam para aí...), tendo também um preço elevado para a União, tanto maior quanto mais durar a guerra.
domingo, 17 de abril de 2022
Ainda bem! (7): Se não geramos, importemos portugueses
1. Neste gráfico, retirado do Expresso desta semana, mostra-se que mais de 5% dos estrangeiros residentes em Portugal se naturalizam portugueses, somando mais de 30 000 em 2020, com brasileiros à cabeça, seguidos de cabo-verdianos, ou seja, cidadãos de países de língua portuguesa. É uma percentagem muito acima da média da União Europeia, só superada pela Suécia.
Trata-se de uma boa notícia, comprovando o bom desempenho do mecanismo da naturalização entre nós (lei e prática).
2. Há dois aspetos positivos nesta situação.
Por um lado, sendo a taxa de natalidade em Portugal muito baixa (uma das mais baixas da Europa), a naturalização de estrangeiros (residentes ou descendentes de portugueses) ajuda a conter a perda de população nacional e modera a taxa de envelhecimento, que coloca em risco o sistema de pensões; acresce que esses novos portugueses têm em geral mais filhos do que os portugueses originários. Por outro lado, com esses novos portugueses oriundos de outras geografias, Portugal fica mais plural, étnica e culturalmente, contrariando a estúpida teoria racista sobre a origem "caucasiana" dos portugueses.
Se não produzimos originarimente portugueses em número suficiente, ao menos que saibamos importá-los.
sábado, 16 de abril de 2022
Guerra na Ucrânia (32): Abastardamento bélico da linguagem
1. Costuma dizer-se que a primeira vítima das guerras é a verdade, mas há outra vítima não menos evidente, que é o abastardamento bélico de noções carregadas de sentido acusatório, como sucede hoje em dia, na guerra da Ucrânia, com a banalização da noção de genocídio.
Instrumentalizada primeiro pela Rússia para justificar a invasão da Ucrânia, com base numa alegado "genocídio" da minoria russa no Dombass, a noção é agora utilizada como arma de guerra ideológica por Kiev e por Washington, com base numa alegado "genocídio" do povo ucraniano às mãos do invasor.
Ora, por maior que tenha sido a flagelação ucraniana da minoria russófona no Dombass desde 2014 e por maior que seja a violência das tropas russas sobre a população ucraniana nas cidades sob ataque, a verdade é que nenhuma dessas situações preenche a noção de genocídio.
2. Com efeito, no seu significado corrente "genocídio" designa a destruição (ou tentativa) de uma etnia ou grupo nacional; e na definição do correspondente "tipo legal de crime" no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e na lei penal nacional a noção significa os atos de violência contra civis «praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso, enquanto tal».
Sublinhei as palavras "intenção", "grupo" e "enquanto tal", porque eles são essenciais na definição, não deixando dúvidas sobre os casos históricos mais dramáticos, como o genocídio judaico às mãos do nazismo alemão, que vitimou milhões de pessoaos, por serem judeus, ou o genocídio no Ruanda, em 1994, que vitimou mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi.
Ora, parece evidente que nem no caso ucraniano nem no caso russo se verificam os referidos elementos da noção de genocídio, pois nem a Ucrânia visava aniquilar a minoria russófona, enquanto tal, mas sim submetê-la politicamente, nem a Rússia se propõe dizimar o povo ou a nação ucraniana, enquanto tal, mas sim conseguir do governo ucraniano concessões políticas bem identificadas.
Entre os malefícios da guerra, bastam a destruição de vidas, de haveres e de património, não sendo preciso acrescentar o abuso ou a banalização de conceitos bem tipificados, que só perdem força ao serem descaracterizados.
sexta-feira, 15 de abril de 2022
Aplauso (23): A disciplina orçamental é de esquerda
1. Até há poucos anos, a frase do novo Ministro das Finanças, hoje em manchete no Expresso, de que «ter contas certas é uma política de esquerda», seria uma enorme heresia política, na boca de um dirigente socialista.
Houve tempos em que 11-em-cada-10 pesssoas de esquerda consideravam o rigor orçamental e a disciplina das finanças públicas como dogmas da direita, com que a esquerda não podia alinhar, e em que a direita acusava as políticas de esquerda de só poderem ser financiadas com défice orçamental e com dívida pública, pondo em causa a estabilidade financeira do País.
Sempre considerei essa tese ultrajante para a esquerda, cabendo aos governos socialistas desmenti-la na prática, provando, pelo contrário, que a responsabilidade orçamental é vital para uma política de esquerda.
2. Desde 2015, primeiro com Centeno e depois com Leão como ministros das Finanças, os governos do PS, apesar da "Geringonça", fizeram do equilíbrio orçamental e da diminuição da dívida pública condições essenciais para a redução dos encargos do financiamento do Estado e da economia. Um extraodinário desafio, globalmente bem sucedido, que a pandemia abalou mas não reverteu, como mostra o défice inferior a 3% no ano orçamental de 2021.
Além de se propor respeitar e coninura a seguir essa linha estratégica, Fernando Medina tem o mérito de a explicitar publicamente como credo doutrinário assumido da gestão financeira do PS no Governo. Uma frase para a história da esquerda-de-governo em Portugal.
Agora, há que assegurar que a prática respeita a teoria e que a consolidação orçamental é para prosseguir com determinação.
quinta-feira, 14 de abril de 2022
Guerra na Ucrânia (31): Ideias estapafúrdias
O partido Livre descobriu a pólvora para uma alternativa ao embargo às importações de combustíveis russos (gás, petróleo, etc.), que a UE não pode equacionar, por oposição de vários países (a começar pela Alemanha), que não podem prescindir dessas importações, sob pena de profunda recessão: o deputado Rui Tavares vem propor que a Europa deixe de pagar essas importações à Rússia e o dinheiro seja depositado numa conta que depois poderia vir a servir para pagar reparações de guerra à Ucrânia.
Um verdadeiro ovo de Colombo! Como é que até agora nenhum líder europeu se tenha lembrado dessa? Pois não é óbvio que o Conselho Europeu vai aprovar essa brilhante ideia a correr? Está-se mesmo a ver que a Rússia continuaria a fornecer gratuitamente o petróleo e o gás, aceitando tranquilamente o confisco do seu pagamento!
O curioso é a proposta invocar em seu favor o Direito Internacional, como se os contratos internacionais de fornecimento pudessem ser livremente incumpridos por uma das partes, sem que a outra rescinda licitamente o contrato. Que se saiba, a União ainda não declarou guerra à Rússia...
Com esta brilhante ideia, o Livre candidata-se ao prémio da ideia mais estapafúrdia para punir a Rússia pela invasão da Ucrânia!
quarta-feira, 13 de abril de 2022
Antologia do nonsense político (19): "Austeridade", acusa o PSD
1. A acusação do candidato a líder do PSD sobre a alegada "austeridade" da proposta do orçamento para o corrente ano merece figurar numa seleção de despropósito político, tanto mais que aquela noção tem um sentido bem marcado entre nós, com referência ao período de assistência externa da troika (2011-2014), equivalendo a corte profundo na despesa pública (investimento e serviços públicos) e "aumento brutal de impostos", redução de pensões, de remunerações e de prestações sociais, etc.
Por isso, é uma contradição qualificar como "austeritário" um orçamento que faz justamente o contrário: aumenta a despesa e o investimento público, reduz a carga fiscal (IRS), eleva as pensões, amplia prestações sociais (abono de família, creches gratuitas, etc.), sobe as dotações para saúde, a educação e a cultura e toma um conjunto de medidas de apoio, no valor de várias centenas de milhões de euros, às empresas e aos consumidores para atenuar o atual surto inflacionista (combustíveis) e para apoiar o rendimento das famílias mais vulneráveis.
Como "prova de vida" do principal partido da oposição, deixa muito a desejar.
2. O que o orçamento não faz - porque nenhum Governo minimamente responsável (que, pelos vistos, não é o caso do PSD!) o faria - é aumentar remunerações e pensões antecipadamente, em função da inflação prevista, como alguns propõem, porque uma tal medida, para além do seu impacto orçamental e sobre a dívida pública, colocaria ainda maior pressão sobre os preços, podendo gerar um espiral inflacionista, de que, no final, trabalhadores e pensionistas seriam as principais vítimas.
No final do ano orçamental saber-se-á o verdadeiro nível da inflação verificada e ter-se-á uma perspetiva mais fiável sobre a sua evolução, cabendo ao(s) orçamento(s) do(s) ano(s) seguintes(s) prever as medidas necessárias para ir recuperando o poder de compra perdido, sem pôr em causa o controlo da inflação e a consolidação orçamental.
Guerra na Ucrânia (30): As outras vítimas
A Organização Mundial do Comércio (OMC/WTO) baixou em um terço a previsão de crescimento do comércio internacional de bens para este ano e alerta para a gravidade do aumento das cotações dos combustíveis e dos bens agrícolas (trigo, óleos vegetais, etc.) na situação alimentar dos países mais pobres, sobretudo em África, muito dependentes das importações desses bens da Rússia e da Ucrânia. A Organização chega a dizer que, a prolongar-se esta situação, ela poderá causar «fome generalizada» nos países em desenvolvimento.
Entretanto, com exceção da Turquia, não se veem esforços exteriores aos beligerantes, especialmente da UE (também vítima indireta da guerra), a favor de negociações para uma solução política para o conflito, entretanto suspensas, enquanto os confrontos se intensificam no Leste do país. Preparemo-nos para o prolongamento da guerra e para o agravamento dos seus efeitos, tanto na Europa, como especialmente nos países mais pobres.
terça-feira, 12 de abril de 2022
Campos Elíseos (8): O voto da extrema-esquerda na extrema-direita
1. Como se mostrou aqui, a sorte das eleições presidenciais francesas, a decidir na 2ª volta, a 24 de abril, está nas mãos dos eleitores de Mélenchon, o candidato da extrema-esquerda que ficou en 3º lugar na 1ª volta, com mais de 20%.
Ora, há já estimativas de que apenas cerca de 1/3 desses eleitores se propõem votar em Macron, enquanto cerca de 23% (quase um em cada quatro) tencionam mesmo votar na candidata da extrema-direita, Le Pen, optando a metade restante pela abstenção ou pelo voto branco ou nulo. O que é que pode explicar que tantos eleitores de Mélenchon apoiem Le Pen ou se recusem a contribuir para a sua derrota, não tomando partido?
A explicação só poder ser esta: para esses eleitores o que une a extrema-esquerda à extrema-direita - ou seja, o antiliberalismo e o protecionismo (aversão à União Europeia e à globalização) - é mais forte do que aquilo que as separa.
2. Neste quadro, o que se decide no próximo dia 24 em França não é uma vulgar questão de alternância governativa numa democracia constitucional, mas sim uma verdadeira opção de regime, entre a democracia liberal, a economia de mercado e a integração europeia, de um lado, e o autoritarismo, o intervencionismo estatal e o recuo na integração europeia, do outro.
Por isso, não é só somente o futuro próximo da França que está em jogo, mas também o da União Europeia e o lugar da França no Mundo.
segunda-feira, 11 de abril de 2022
Guerra na Ucrânia (29): Duplicidade de Washington não ajuda
1. Os esforços de Washington para levar Putin a julgamento no Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra na Ucrânia padecem de uma fatal contradição que não ajuda a credibilizá-los.
De facto: (i) os EUA (tal como a Rússia) não ratificaram o Tratado que instituiu o TPI, não aceitando a sua jurisdição; (ii) aprovaram uma lei a proibir qualquer financiamento ou apoio às atividades do Tribunal; (iii) pressionaram vários países que ratificaram o Tratado a excluirem a jurisdição do Tribunal sobre casos envolvendo americanos; (iv) chegram a aplicar sanções ao procurador e a outros oficiais do TPI contra iniciativas de investigação de eventuais crimes de guerra na Palestina e no Afeganistaão.
Embora no Conselho de Segurança das Nações Unidas Washington tenha apoiado a investigação e acusação de certos crimes de guerra no TPI, fizeram-no sempre seletivamente, excluindo Israel, além de que nunca naturalmente permitiriam a acusação de um nacional seu.
2. Por isso, ao contrário dos países europeus, incluindo Portugal, que ratificaram convictamente o Tratado e financiam o seu funcionamento, a agressiva hostilidade de Washington ao TPI não lhe dá nenhuma credibilidade para exigir o julgamento de Putin e dos seus generais na Haia (o que, aliás, sempre estaria excluído, por a Rússia também não estar vinculada ao Tratado).
Em matérias sensíveis como estas, a duplicidade política não ajuda. Uma potência não tem legitimidade para exigir a submissão de outra à justiça internacional que ela própria rejeita.